A cultura da dieta: por que ela é perigosa para crianças?

Em livro recém-lançado, jornalista norte-americana fala sobre como criar filhos que amam seus corpos - e por que isso realmente importa

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Menina gordinha tem fita métrica pendurada no ombro e segura uma maçã numa mão e hambúrguer em outra
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Quando encorajamos nossos filhos a comerem mais vegetais, quando dizemos que não podem mais comer salgadinhos ou mesmo quando lamentamos que nossas próprias calçam não nos servem mais – todas essas são maneiras sutis, mas importantes, pelas quais ensinamos que estar acima do peso não é bom. 

“Essas lições têm ramificações reais e muitas vezes inesperadas, aumentando o risco de nossos filhos apresentarem distúrbios alimentares e problemas de saúde mental. Embora digamos e façamos essas coisas na esperança de manter nossos filhos saudáveis, conseguimos exatamente o oposto”, afirma a jornalista e colaboradora do jornal The New York Times, Melinda Wenner Moyer. Em sua newsletter semanal, ela publicou uma entrevista com a colega de profissão Virginia Sole-Smith, que lançou esta semana o livro Fat Talk: Parenting In the Age of Diet Culture (Conversa sobre gordura: parentalidade na era da cultura da dieta, em tradução livre), que fala sobre comida e corpos e visa ajudar os pais a aprender a reconhecer seus próprios preconceitos corporais, identificar a cultura da dieta e ensinar aos filhos a que amem seus corpos e saibam se proteger nesse cenário desafiador.

Segundo Virginia, grande parte da variação no peso é determinada geneticamente e menos ligada ao que comemos. A relação entre tamanho do corpo e saúde física também não é tão bem estabelecida quanto muitas pessoas pensam. Ela ressalta ainda que quando a pessoa tem excesso de peso é impossível separar os efeitos disso sobre a saúde do estigma que a pessoa experimenta pelo mesmo motivo.

Na entrevista a seguir, Virginia explica o que a levou a escrever o livro, por que e como a gordofobia em casa leva a uma alimentação desordenada, o que fazer quando o filho diz querer ter uma “barriga de tanquinho” e ainda como lidar com o preconceito existente no universo dos esportes juvenis.

O que a inspirou a escrever Fat Talk?

Desde que escrevi meu primeiro livro, The Eating Instinct (O instinto de comer, em tradução livre), muitos pais me diziam querer que o filho tivesse um bom relacionamento com o corpo e se sentisse seguro com a comida. Mas eles também mostravam preocupação com distúrbios alimentares e ainda com que os filhos engordassem. Você não pode dizer para que as pessoas amem seus corpos apenas se forem magras. Isso me ajudou a entender que, por mais útil que seja falar sobre as nuances de como alimentamos nossos filhos e como a cultura da dieta aparece aí, realmente temos que começar nomeando e entendendo o viés anti-gordura. Essa é a base de toda essa conversa.

Qual a relação entre encorajar as crianças a comer de forma saudável e o desenvolvimento de distúrbios alimentares?

Sempre que tentamos promover uma alimentação saudável – mesmo as maneiras mais gentis de falar sobre moderação e equilíbrio – estamos colocando restrições em nossos filhos em relação à comida. Estamos dizendo que existem alimentos que ficamos felizes que comam, ainda que não sejam os seus favoritos, e há outros que terão barreiras quanto à quantidade e frequência com que estarão liberados.

Quando fazemos isso, imediatamente tocamos em algo que é fundamental para a psicologia humana:  uma vez que você proíbe algo, é o que a criança mais deseja. Esse tipo de restrição, mesmo bem-intencionada e enraizada na saúde, gera fixação e ansiedade sobre os alimentos proibidos. É por isso que é tão comum ver crianças interagindo com esses alimentos de maneiras que parecem desordenadas, porque quando elas têm acesso a esses alimentos, vão querer comer o máximo possível por não saber quando poderão fazê-lo novamente. Elas podem estar propensas a esconder os alimentos ou mentir para você sobre o quanto comeram. E então demonizamos esses comportamentos – nós patologizamos isso, em vez de dizer que essa é realmente uma resposta bastante lógica para quem sofre restrições alimentares. As crianças precisam de estrutura em torno da alimentação. Eles não estão preparadas para assumir toda a responsabilidade de se alimentar. Mas precisamos pensar muito mais em garantir que comam o suficiente, e comam o suficiente dos alimentos que amam, do que no controle e proibição de certos alimentos.

Seu livro fala sobre preocupações comuns dos pais em relação à nutrição e ingestão de vegetais como o brócolis. O que realmente sabemos sobre alimentação e saúde?


Em entrevista para o meu livro, a nutricionista pediátrica Katherine Zavodni me disse: “O mais importante sobre nutrição é que as crianças comam o suficiente”. Isso é o que mais importa. Claro, há exceções, mas, fundamentalmente, se seu filho for capaz de ingerir calorias suficientes para crescer e prosperar, você não precisa se preocupar com as minúcias da nutrição. Eles provavelmente estão ingerindo proteína suficiente, fibras suficientes, vitaminas e micronutrientes suficientes. Isso porque vivemos em uma época de abundância de alimentos. Portanto, eles não precisam gostar de brócolis, porque podem obter muitas das mesmas vitaminas e minerais nas frutas que adoram. Eles não precisam amar quinoa ou couve.

Mesmo os alimentos processados ​​que todo mundo adora demonizar tendem a ser enriquecidos com as várias vitaminas e minerais de que precisamos. Não é tão urgente quanto pensamos ser obcecado por nutrição, o que nos leva a correr o risco de prejudicar a saúde de nossos filhos. Quando os empurramos para esse lugar de sentir que seus corpos são um problema e que eles precisam buscar a magreza e uma alimentação perfeita, aumentamos drasticamente o risco de transtornos alimentares, que são a principal causa de morte relacionada à saúde mental entre crianças. Isso é um grande problema.

Para proteger a saúde de seu filho, a prevenção de distúrbios alimentares deve estar no topo da lista – mais do que se preocupar com algo como diabetes tipo 2. As estatísticas reais sobre crianças que desenvolvem diabetes tipo 2 são um número muito pequeno. Nomear o viés anti-gordura e diminuir o peso das conversas sobre a saúde de nossos filhos é, na verdade, promover a saúde.

Uma amiga me pediu para lhe perguntar sobre o fato de o filho dela, de 11 anos, estar preocupado em ter “barriga  de tanquinho”. O que dizer às crianças quando eles refletem práticas enraizadas na cultura da dieta?

Instintivamente, nessas horas, dizemos para que não façam isso, pois fazer dieta é ruim e eles são perfeitos do jeito que são. É uma resposta bem-intencionada e verdadeira, mas não dá ao filho a chance de expressar os sentimentos que motivam a necessidade dessas mudanças – o que há por trás disso? Pode ser útil dizer: “O que está deixando você tão interessado em malhar?”, “O que está fazendo você sentir que essas são coisas realmente importantes? Você vê muitas crianças de 11 anos com tanquinhos? Isso é algo que parece realmente importante para você e seus amigos agora?” Apenas crie espaço para a conversa sem se precipitar em julgamentos. Se você chegar e disser: “Você não pode malhar assim, não pode perseguir isso”, o tiro sairá pela culatra. 

Deixe claro que o corpo dele não é o problema e que ele não precisa emagrecer ou ser mais musculoso e definido. Deixe claro a crítica a essa cultura que nos faz sentir que nossos corpos não são bons o suficiente.  Assim, você coloca a culpa no seu devido lugar e pode começar a falar sobre isso como viés anti-gordura – isso é algo que todos nós experimentamos, embora seja mais frequente em pessoas mais gordas do que nas magras . É muito importante nomearmos isso e começarmos a denunciá-lo quando o vemos acontecendo.

Sobre pais e masculinidades, por que os pais às vezes são os maiores defensores da cultura da dieta em casa?

Definitivamente há uma margem maior de erro nos corpos masculinos, como se houvesse um pouco mais de diversidade em termos de tamanho corporal aceitável, e os ideais para as mulheres são mais rígidos. Mas para homens cis brancos e heterossexuais – suas normas corporais são bem rígidas . Está muito ligado, sim, aos músculos, mas também é sobre o seu corpo ser capaz de fazer esses esportes de resistência super intensos. É sobre defender a masculinidade branca e esse ideal do homem como super-herói.

No livro, falo de um médico que monitora o açúcar no sangue ao longo do mês e faz jejuns intermitentes. Parece muito científico e pesado. Damos a ele uma seriedade que nunca daríamos a mulheres fazendo a mesma coisa. Como quando Kim Kardashian ou Gwyneth Paltrow faz uma dieta extrema. Há um padrão duplo claro em termos de como normalizamos isso. Você tem permissão para falar sobre odiar seu corpo como mulher de uma forma que você simplesmente não tem como homem.

Há muitas pesquisas agora começando a mostrar que a maneira como os homens interagem com a comida e o corpo realmente afeta as crianças, e que crianças cujos pais têm hábitos alimentares desordenados provavelmente também têm hábitos alimentares desordenados. Por muito tempo, os pesquisadores pensaram que todas as mães tinham essa influência, o que é claro que têm. Nós tendemos a fazer a maior parte do cozimento e, mesmo que não o façamos, tendemos a fazer a maior parte do planejamento das refeições e das compras de supermercado. As mães são as que seguem todos os influenciadores de comida infantil no Instagram e aprendem sobre a divisão de responsabilidades. E o pai não está fazendo esse trabalho. Mas porque ele é um homem e porque socializamos todo mundo dessa maneira, quando ele se senta à mesa de jantar e diz ao filho: “Não, você tem que terminar seu brócolis antes de comer a sobremesa!” – está tudo bem para ele simplesmente mergulhar com esses pronunciamentos naquela maneira tradicional e desatualizada de pensar sobre comida. Então essa parte realmente me irrita também – tipo, eles não estão fazendo o dever de casa, mas ainda estão aparecendo e esperando ter uma participação igual na conversa.

Como evitar que as crianças sofram com a gordofobia e a cultura da dieta nos esportes?

Eu acho que há duas partes. Existe o trabalho que você pode fazer como pai para pesquisar a atividade e, a parte ainda mais importante, é como você fala com seu filho sobre isso. Sabemos por pesquisas que os esportes juvenis são, infelizmente, um grande impulsionador de distúrbios alimentares e insatisfação corporal. E essa é uma realidade que os pais precisam conhecer. É uma questão de quando, não se, seu filho encontra a cultura da dieta e o viés anti-gordura neste espaço.

Especialmente em esportes como ginástica, dança e natação é preciso perguntar como eles falam sobre comida ou quão inclusivos são os tamanhos dos uniformes. Distúrbios alimentares têm uma taxa muito alta de transmissão quando estão acontecendo em um contexto de equipe, então qual é o protocolo deles se um membro da equipe desenvolver sinais de distúrbio alimentar? O que eles estão fazendo para ajudar aquela criança e proteger o resto da equipe? Todas essas coisas, você pode perguntar. E dizer à criança para que informe se ouvir algo que a faça sentir-se desconfortável ou insegura com seu corpo. Deixe claro que você é o espaço seguro dela e se ela for pressionada de uma forma que não pareça segura, você estará lá e a apoiará.

Para ler a entrevista completa com a jornalista Virginia Sole-Smith acesse a newsletter Is my kid the asshole?

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Verônica Fraidenraich
Editora da Canguru News, cobre educação há mais de dez anos e tem interesse especial pelas áreas de educação infantil e desenvolvimento na primeira infância. É mãe do Martim, 9 anos, sua paixão e fonte diária de inspiração e aprendizados.

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