Leitura é o antídoto para o excesso de telas, diz o neurocientista Michel Desmurget

Ensinar as crianças a ler por prazer é o melhor caminho para evitar a "estupidificação das mentes", relata o especialista no livro "Faça-os ler!"; ele defende a leitura compartilhada até a adolescência

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Neurocientista francês Michel Desmurget, autor de faça-os ler!
Para pesquisador, pais têm de investir na leitura com os filhos | Foto: Maxime Jegat
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As crianças precisam ser encorajadas a ler, uma necessidade urgente de desenvolvimento, que traz benefícios sólidos e concretos, afirma o neurocientista e pesquisador francês Michel Desmurget, em seu novo livro Faça-os ler! Para não criar cretinos digitais, lançado no Brasil em 2023 pela editora Vestígio. O autor esplica que a obra, de certa forma, é uma declaração de utilidade pública dos benefícios da leitura por prazer, aquela feita fora das atribuições escolares, apenas para satisfazer o desejo próprio. E diz que “o livro literalmente constrói a criança em sua tripla dimensão intelectual, emocional e social”, e complementa que, desde o surgimento da linguagem, a leitura é a melhor invenção da humanidade para “estruturar o pensamento, organizar o desenvolvimento do cérebro e civilizar nossa relação com o mundo”.  

Desmurget é diretor de pesquisa no Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França e se tornou mais conhecido depois do best-seller A fábrica de cretinos digitais: o impacto das telas para nossas crianças, traduzido para o português em 2021, em que faz um alerta para as graves consequências do uso das tecnologias sem senso crítico. 

Como resposta para evitar a “estupidificação das mentes”, o neurocientista defende a leitura como a melhor arma contra o empobrecimento da linguagem, a dificuldade de concentração e outros problemas causados pelo excesso de telas. Embora muitos vejam o livro como algo arcaico e empoeirado, ele ainda é o meio de aprendizado mais adequado para o funcionamento cerebral. “O leitor é o anticretino digital”, diz. 

Segundo o autor, como indicado em uma pesquisa recente, muitos pais não leem com seus filhos porque não estão cientes da necessidade de fazê-lo, dos enormes benefícios e do prazer que isso proporciona. E mais que criticá-los ou dizer como devem educar seus filhos, ele ressalta a necessidade de fornecer elementos de escolha para que possam atuar de maneira mais eficaz em relação ao desenvolvimento e à promoção da leitura. 

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“Felizmente, no reino dos livros, nada está realmente perdido: não importa a idade, o sexo, as possíveis resistências ou as dificuldades escolares, o acesso aos benefícios (e prazeres) da leitura está sempre aberto, mesmo para supostos leitores esporádicos”, destaca o neurocientista, que porém, orienta a iniciar a prática desde muito cedo. Ele analisa que a leitura é uma herança social, cuja transmissão não tem nada de aleatória e repousa em três pilares: valorizar a prática, promover o prazer pelos livros e limitar o tempo de tela, abrindo assim mais espaço para a literatura.

Em média, 20 minutos de leitura compartilhada por dia, entre 1 e 5 anos, representam 1,6 milhão de palavras ouvidas. Nenhuma outra situação gera uma profusão verbal tão grande, diz Desmurget. Conforme diferentes estudos realizados ao longo de mais de 30 anos, a leitura compartilhada resulta em fluxo oral muito mais volumoso do que todos os seus concorrentes do cotidiano: cuidados, refeições, brincadeiras ou televisão, por exemplo. 

Além de enriquecer o vocabulário e a fala, o neurocientista cita benefícios ao desenvolvimento da atenção, algo que as telas “sistematicamente buscam minar”, e na formação de habilidades socioemocionais, que nos ajudam a regular as emoções, seguir regras sociais comuns e controlar a impulsividade. A leitura compartilhada promove por exemplo a empatia, à medida que os pais estimulam a criança a se colocar no lugar do outro por meio dos personagens das histórias: “Maria está com medo porque se perdeu na floresta; e você ontem ficou com medo quando se perdeu no supermercado?”.  

Mas, afinal, como incentivar essa leitura? A seguir, confira algumas das sugestões do autor sobre a prática de modo a fazer com que os filhos ganhem desenvoltura e se tornem leitores autônomos.

Iniciar a leitura compartilhada desde muito cedo

A maioria das pesquisas situa entre o primeiro e o terceiro trimestre pós-natal o início da leitura com os filhos. Para o pesquisador, quando se trata de leitura compartilhada, quanto mais cedo, melhor, devido aos benefícios ao desenvolvimento da linguagem. E ele sugere criar o hábito de leitura, entre 20 e 30 minutos diários, e persistir com a prática até a adolescência, pelo menos, até as séries finais do ensino fundamental.

Estudos citados no livro mostram como a falta de leitura pode prejudicar o aprendizado das crianças. Uma das pesquisas indicava que as crianças privadas de leitura compartilhada aos 4, 5 anos de idade, tinham, aos 8,9 anos, dez vezes menos chances de ser leitores avançados. Segundo os autores desse estudo, os pais têm, portanto, um papel importante no desenvolvimento de habilidades de leitura de seus filhos, lendo histórias para eles desde a tenra idade. 

Tomar gosto pelos livros

Qualquer que seja a idade, é importante que exista prazer na leitura, pois se esta for cansativa e dolorosa, a criança não lerá. Os benefícios da leitura compartilhada não serão colhidos com repreensões constantes porque a criança não entende rápido o suficiente, ou passando pelo texto apressadamente como se estivesse se livrando de um incômodo, ou interrompendo a leitura a cada 30 segundos para olhar o celular. “Para que a leitura compartilhada dê frutos, é necessário realizá-la em um ambiente tranquilo, sem hostilidade e cheio de incentivos.” E isso implica que o adulto também sinta prazer com a prática.  

Promover a leitura no ambiente familiar

A escrita é uma linguagem mais rica, diversificada e sutil do que a oral. E a leitura nasce do conhecimento da escrita, da letra e dos sons. Inicialmente, a criança aprende a decodificar conteúdos simples – ao transformar uma sequência de símbolos alfabéticos em palavras -, para depois se apropriar da linguagem, quando passa não só a entender as letras, palavras e frases escritas, mas também interpretá-las. E para atingir esse estágio é preciso muita leitura compartilhada, explica Desmurget, trabalho que, segundo ele, as escolas infelizmente não têm tempo nem recursos para realizar adequadamente. Logo, é no ambiente familiar que têm de ser multiplicados os episódios de leitura para ajudar as crianças a construir os pré-requisitos linguísticos necessários para que avancem até chegar na leitura pessoal. O especialista cita inclusive um estudo americano que mostra que a aquisição de um alto nível de competência na leitura depende menos de um suposto talento e mais de volume, qualidade e diversidade das experiências acumuladas.

Falar muito e com frequência 

Para que as crianças sejam capazes de ler com desenvoltura, é importante que tenham um bom vocabulário. Ou seja, é preciso falar com elas e falar bastante, diz o autor. “Muitos estudos mostram que a criança não se beneficia das palavras de seu entorno que não se refiram a elas. Para aprender, ela precisa que lhe falem diretamente, em uma interação face a face, rica e continuada”.  

Segundo Desmurget, dezenas de estudos científicos já mostraram que quanto mais o ambiente familiar saturar a criança de vocabulário, variações gramaticais, trocas conversacionais, melhor o cérebro se desenvolverá. Por outro lado, diz ele, quando a densidade e a qualidade das interações diminuem, devido, por exemplo, à onipresença de telas recreativas, surgem déficits na estrutura anatômica dos circuitos neuronais. 

“Para aprender, a criança precisa de que os adultos se interessem por ela, nomeiem os objetos que ela observa, respondam às perguntas que ela faz, envolvam-na em histórias mágicas ou comuns, incentivem-na a se expressar, e questionem-na sobre o que ela vê, sente e faz (usando o clássico sexteto: “quem, o quê, onde, quando, como, porquê”)”, diz.  

Para tanto, ele sugere aproveitar momentos do cotidiano como a ida ao supermercado, para ensinar novas palavras aos filhos pequenos: “Veja, isso é uma lichia. É uma fruta muito gostosa. Você consegue dizer seu nome, li-chi-a? Parabéns, é isso mesmo, “lichia”. Você quer levar algumas lichias para experimentarmos em casa?”. As repetições, destaca Desmugert, favorecem a memorização. Em casa, a nova palavra pode ser repetida quando servida, conectada a palavras já conhecidas – “a lichia tem a casca dura como a laranja”, sendo citada novamente em uma outra visita ao supermercado, favorecendo assim o desenvolvimento linguístico da criança. 

Promover uma conversa enriquecedora

A leitura compartilhada vai muito além de um cenário em que o adulto lê e a criança ouve, explica Desmurget. O principal, diz, é a partilha, estabelecer uma conversa fecunda e enriquecedora em torno dos elementos do livro. “É preciso questionar a criança sobre o vocabulário, os personagens, a trama. É preciso convidá-la a reformular o texto, a resumi-lo, a conectá-lo com outras histórias que conhece ou com elementos de sua vida pessoal”. 

As abordagens devem ser adaptadas e complementadas de acordo com a idade da criança, a natureza do livro, o tempo disponível, por exemplo, mas sempre com o mesmo objetivo: verificar, aprofundar e enriquecer a compreensão que a criança tem do texto.  

O importante é que, aos poucos, livro após livro, o cérebro acumula todo tipo de conhecimento fundamental. Alimentado pelos feedbacks dos pais, ele também desenvolve gradualmente as bases linguísticas, culturais, de atenção e cognição que, a longo prazo permitirão à criança se tornar uma leitora autônoma e eficaz.  

Observar a qualidade dos livros

Para que seja frutífera, a leitura compartilhada precisa ser mais complexa do que o nível linguístico das crianças, relata Desmurget. Isso quer dizer que mesmo quando iniciada tardiamente, no ensino fundamental, por exemplo, ela poderá impactar o aprendizado, ainda que a criança já leia sozinha, a depender da complexidade dos livros escolhidos. “Com o apoio da fala do adulto, a criança ou o pré-adolescente pode enfrentar conteúdos muito mais ricos do que aqueles a que normalmente teria acesso”.  

Aproveitar o espaço de troca 

A partir dos livros é possível enriquecer o conhecimento prévio de crianças, pré-adolescentes ou adolescentes e abordar com eles todo tipo de questões como amor, morte, amizade, sexualidade, racismo etc. “Desistir muito cedo dessa prática é se privar de um espaço de troca tão poderoso quanto privilegiado”, destaca o neurocientista. 

Reler várias vezes o mesmo livro 

Na idade pré-escolar e no início do ensino fundamental, as crianças adoram ler o mesmo livro repetidas vezes. Embora isso possa parecer contraproducente, se faz necessário para que possam se apropriar das riquezas narrativas e linguísticas do livro. Ao ler várias vezes a mesma história, a memorização aumenta significativamente, diz o autor. E quanto mais palavras a criança conhece daquela história, mais ela consegue se afastar do vocabulário para se concentrar na história.  

Reforçar as palavras aprendidas 

As palavras aprendidas nos livros podem ser inseridas no cotidiano da criança, sendo reutilizadas conscientemente durante as interações, para reforçar a memorização. Se a obra falava em termos como “radiante” ou “astuto”, os pais podem no dia seguinte à leitura compartilhada dizer algo como “eu sou astuto como uma raposa” ou “sou muito habilidoso, estou radiante”, sugere Desmurget. Ele conta que usava um caderno para anotar as palavras a serem relembradas e, depois que a filha as dominava, ela e ele as riscavam juntos, o que deixava a filha muito feliz.  

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Verônica Fraidenraich
Editora da Canguru News, cobre educação há mais de dez anos e tem interesse especial pelas áreas de educação infantil e desenvolvimento na primeira infância. É mãe do Martim, 9 anos, sua paixão e fonte diária de inspiração e aprendizados.

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