‘Família não é democracia’: leia a entrevista que fizemos com Mario Sergio Cortella

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    Autor de mais de 30 livros, Mario Sergio Cortella lança pela primeira vez uma publicação sobre família, na qual aborda a importância de priorizar o tempo de convívio, as crianças criadas como “reizinhos” e o papel complementar da escola

    Por Juliana Sodré

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    ‘É preciso ter humildade para saber que a gente não sabe muitas coisas e que precisa aprender com outros’ | Fotos: Nana Higa / Divulgação

    Mario Sergio Cortella possui um extenso currículo: é filósofo, escritor, palestrante, professor, doutor em educação e autor de mais de 30 livros sobre ensino, filosofia, teologia e carreira. Isso sem contar que é extremamente popular: sua página no Facebook, por exemplo, tem mais de 1 milhão de seguidores, que também escutam suas pensatas avidamente, seja no YouTube ou na rádio. Pela primeira vez, ele decidiu escrever sobre o tema “família”. “Porque sou pai e avô, e tenho uma preocupação imensa com a rarefação das relações familiares e com o desconhecimento da geração atual para lidar com a nova geração”, explica. Mais adiante, ele discorre que os pais e as mães também precisam ser educados, não só as crianças: “Autoridade é necessária; autoritarismo, não. Diálogo é importante, submissão não é”. E não poupa o público-alvo de seu discurso: se você não tem tempo para criar seus filhos, é porque eles não são sua prioridade.

    Como se nota de imediato, o paranaense é um disparador de frases fortes e que fazem pensar. E, se “pensar bem nos faz bem”, como ele costuma dizer, seu novo livro, Família: Urgências e Turbulências (ed. Cortez), poderá fazer um bem danado aos leitores que se deparam, diariamente, com questões relacionadas à criação dos filhos. Como estar mais presente na vida dos pequenos? Como equilibrar autoridade e diálogo? Como estabelecer limites para crianças que já estão mimadas? Questões como essas, de respostas nada óbvias, estão no livro de 141 páginas e também são abordadas nesta conversa com a Canguru. Confira.

    O senhor disse que decidiu escrever sobre família porque se preocupa com a diminuição das relações familiares. A que o sr. atribui essa falência das condições de formação e criação dos filhos?

    Mario Sergio Cortella – Os pais vivem hoje um tempo maior no trabalho, e isso fez com que houvesse uma diminuição dos tempos de convivência com as crianças e os jovens e levou a um desconhecimento sobre essa nova geração. Boa parte dos pais e das mães tem dificuldade até de entender como é o mundo de seus filhos a partir de uma determinada idade. Há hoje uma certa estranheza nessa convivência.

    Como fazer com que os pais participem ativamente da educação mesmo quando o filho passa 12 horas por dia numa creche?

    Essa é uma escolha que eles terão que fazer. A grande pergunta que o pai e a mãe têm que se fazer é qual é sua prioridade, e, se é prioridade, vão ter que inventar o tempo. Eles não podem se omitir em relação à educação, porque isso seria irresponsável. A escola é de natureza complementar, e não suplementar, ela não supre a família. A escola é uma estrutura de ensino e aprendizagem; a responsabilidade sobre a educação é da família.

    O senhor fala no livro que é preciso educar os pais, e não só as crianças, e que hoje os pais parecem ter medo de exercer a autoridade. O senhor acha que é um erro os pais repetirem o modelo de educação que tiveram?

    Sim, claro. Os pais e as mães não podem é deixar de ter inspirações naquilo que uma parte do que seus pais fizeram carrega, mas deixando de lado aquilo que era entendido como correto naquele momento – e que era um mero exagero. Por exemplo, a autoridade é necessária; o autoritarismo, não. Diálogo é importante, submissão não é. O diálogo não pode ser entendido como uma relação de igualdade de autoridade com os filhos. Como eu costumo dizer, uma família não é uma democracia. Democracia pressupõe direitos e deveres iguais. Numa família, existem responsáveis aos quais as crianças e os jovens são “sub-ordinados”, estão sob as ordens deles. Nesse sentido, uma família pode ser participativa – e deve sê-lo, enquanto no passado não o era. Uma família deve ser convivente, como foi em outro momento. Alguns dizem que a fratura de alguns valores das crianças e dos jovens se deve ao fato de que falta aquilo que se fazia no passado, que era poder bater, deixar de castigo etc. Esse tipo de modelo não é necessário. É possível fazer uma educação sem recorrer a metodologias de educação que são muito mais voltadas para a organização prisional do que para a estrutura familiar.

    E como fazer? Como ter autoridade sem ser um pai autoritário?

    Há alguns caminhos. Um deles é bastante agradável para mim, que é ele ler meu livro (risos). Autoridade é uma questão de responsabilidade. Normalmente, um pai ou uma mãe têm autoridade no trabalho, sobre um colega, sobre um empregado, sobre um subordinado ou prestador de serviço. Por que então essa dificuldade da autoridade com filhos e filhas? Porque o exercício da autoridade dá muito trabalho, exige que você tenha tempo. E muita gente não quer ter esse trabalho ou acha que não tem tempo para tê-lo. Lembrando o que eu coloco no livro: tempo é uma questão de prioridade. Se você pensa que não tem tempo para algo é porque não é prioritário.

    O senhor fala em seu livro que prioridade não tem plural.

    Sim, eu posso ter uma prioridade, aí eu resolvo e vou para outra. Mas, com duas prioridades concomitantes, nenhuma delas o será. A pessoa que prioriza o trabalho não pode ter um filho? Muitas vezes essa prioridade do trabalho pode ser eventual. Mas alguém que tem apenas o trabalho como sendo sua forma de referência e horizonte precisa pensar muitas vezes antes de ter uma responsabilidade tão estupenda e ao mesmo tempo tão exigente quanto a paternidade e a maternidade.

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    ‘A responsabilidade sobre a educação é da família, não da escola’

    Quais consequências a “divinização das crianças”, que o sr. cita em seu livro, pode trazer para o futuro dessa geração? Vemos hoje filhos e filhas serem tratados como príncipes e princesas até na decoração de seus quartos.

    Toda vez que a criança for tratada como soberana ela se comportará desse modo. A vida não é marcada pela soberania, ela tem que ser marcada pela autonomia. Uma pessoa autônoma é aquela que faz o que ela quer no âmbito da responsabilidade dela, desde que não colida com as outras perspectivas. Uma pessoa que é soberana fala o que deseja e não dá referência e nem atenção a quem não pensa como ela ou quem está à sua volta. Essa soberanização de uma parcela das crianças cria personalidades deformadas para a capacidade de convivências. A soberanização de crianças é malévola para o adulto que virá, e é assim, inclusive, que começa a degradação de valores decentes.

    O senhor diz que desejos não são direitos. Por que é difícil viver em coletividade e entender que temos limites?

    Nesta geração, não há a obrigatoriedade da participação mais direta de crianças e jovens no sustento da família numa parte significativa das classes sociais. Uma parcela dessas crianças e jovens começa a entender que aquilo que deseja tem que a ela vir e que a tarefa de pais e mães é a de serem provedores, e não cuidadores. Há aí uma deturpação do que seria a própria estrutura da convivência familiar. Mais do que isso: confundir desejos com direitos, que é algo que uma parte das crianças faz, é uma responsabilidade dos adultos. Uma parcela de nós foi educada para que, se algo quisesse, fosse buscar com esforço, dedicação, decência e inteligência. Não era algo que você aguardava magicamente, que chegaria e pousaria no teu colo. É necessário que os pais retomem essa perspectiva de que quem deseja algo tem o dever de construí-lo, de elaborá-lo e de utilizar a inteligência e o esforço na obtenção disso.

    E aqueles pais que fazem dos filhos um investimento de longo prazo?

    É absolutamente indecente que um pai ou uma mãe seja capaz de olhar seus filhos como sendo uma aplicação financeira. É preciso que a orientação em relação à profissão do filho não seja uma determinação dos pais. Que, acima de qualquer coisa, se respeite a individualidade, a autonomia que essa pessoa deve ter, e não olhar aquele que mais adiante será apenas uma forma de retorno financeiro.

    O que é preciso fazer para criar filhos melhores para o mundo?

    Primeiro, uma dedicação maior do que aquela que se vem tendo, um esforço maior em relação ao exercício da maternidade e da paternidade. Segundo, humildade para saber que a gente não sabe muitas coisas e que precisa aprender com outros, e não supor que criar filhos seja uma atividade automática. Em terceiro lugar, imaginar que tudo isso requererá a parceria maior entre as pessoas que formam crianças. Os adultos que têm autoridade e responsabilidade não precisam pensar de maneira idêntica, mas têm que agir de maneira unida. Pais e mães, antes de agir em relação aos filhos, precisam conversar entre si e chegar a um consenso. A divisão tem que se dar antes da reflexão, e não na hora da ação.

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