‘Está na família (e não nas redes sociais) a competência de criar filhos’

Para a terapeuta relacional Adriana Amaral, apesar do excesso de informações sobre parentalidade na web, não é ali que os pais aprendem a educar seus filhos

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Casal de crianças está no colo dos pais
Especialista diz ser urgente acolher e ouvir a família, trabalhando em conjunto e incluindo-a de verdade
Buscador de educadores parentais
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Por Adriana Amaral* – Dia desses, no salão de beleza que frequento, prestei atenção na conversa entre uma cliente e a cabeleireira. O tema era rede social, tecnologia digital e as “marias que vão com as outras influencers” pelos becos escuros do Instagram e TikTok

Logo me veio à mente o livro “Maria vai com as outras”, da Sylvia Orthof, uma das minhas autoras infantis favoritas.

Na história, A ovelha Maria faz tudo que seu grupo faz, come o que comem e anda por onde andam, sem fazer qualquer reflexão sobre seus verdadeiros desejos e valores. Demora a perceber que pode, na verdade, ser a Maria com Ideias Próprias, competente para tomar decisões pautadas em suas escolhas, e por isso quase se mete em enrascadas.

Marias, Marios e Maries, somos todos vulneráveis ao movimento dos grupos dos quais fazemos parte. Na década de 1960, o psicólogo canadense Albert Bandura, desenvolveu a Teoria Social da Aprendizagem (TSA), que defende que uma parte expressiva do que aprendemos se dá através das nossas relações sociais. Ele é autor de um estudo empírico famoso, o “Experimento do João Bobo” (disponível no YouTube). Para ele a aprendizagem é bidirecional:  aprendemos com o ambiente e o ambiente aprende e se modifica graças às nossas ações. 

Bandura quis confirmar sua hipótese diante da agressividade no experimento citado e, para isso, de forma muito resumida aqui, organizou as crianças em três grupos, expondo um deles à agressividade de um adulto-modelo direcionada a um boneco, outro sem agressividade direcionada e outro ainda sem nenhum direcionamento ao boneco. O psicólogo concluiu que as crianças são passíveis de reprodução do comportamento agressivo, ainda mais quando o adulto-modelo se assemelha em gênero (isso fica para um próximo texto). Somos ativos diante do que vivemos, sempre, e não meros espectadores. Isso nos influenciará para o mal, mas também nos protegerá. Por incrível que pareça. 

Temos escolhas, caminhos que nos são próprios, mas assim como a grama do vizinho é mais verdinha para quem vê de longe, os caminhos alheios parecem mais seguros, talvez rápidos e fáceis. E assim quase que se dana toda a coitada da chapeuzinho vermelho. Atalhos em meio à complexidade podem se transformar em terríveis pesadelos, uma economia que custa caro. 

Quando foi que achamos que a família perdeu a competência de criar nossos filhos? 

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Na conversa agradável e inflamada no salão, que eu acabei também participando, as palavras pareciam dançar em torno da minha cabeça: competência, tempo, processo e família. 

A terapia de família hoje passa por uma transformação importante para  acompanhar os fenômenos contemporâneos e acolher a diversidade do que chamamos família. Essas mudanças teriam muito a ver com a bidirecionalidade da Teoria de Bandura – me permito aqui uma livre aproximação temática, pois a família é afetada pelo ambiente social, assim como também afeta e modifica os ambientes. 

Basta observar os movimentos contemporâneos nos ambientes de educação, inclusive, universitários, que já estão se organizando para receber famílias, a exemplo das reuniões de pais de jovens universitários. Sim, foi isso mesmo que você leu. Há uma demanda aqui bem complexa, pois os jovens deveriam responder por si nesse nível da vida, mas como fazer para dar conta de tantos diagnósticos, do aumento considerável de depressão e suicídio entre crianças e jovens?  

O novo paradigma familiar é “Relacional Sistêmico”, tendo como atenção extrema a forma e o conteúdo relacional dentro de cada família, com uma dinâmica complexa e construída pelas suas partes vivas e ativas, interconectadas, intersubjetivas. Nessa perspectiva, quando nos deparamos com famílias com crianças e adolescentes, costumamos afirmar que precisamos devolver competências à famílias. Não que as tenham perdido, talvez não encontrem quem diga, reconheça e valide que as têm. 

Os pais do Instagram, voltando à mesa redonda criada no salão, muitas vezes se sentem inseguros diante do excesso de informações, mesmo as mais cobertas de boa vontade e com base em evidências científicas. Ouvem tanta coisa sobre atitudes e gerenciamento de comportamento que não se sentem capazes de tomar postura.

A parentalidade não vai nascer das postagens, ela nasce com a família. Está na família essa competência de criar filhos, por mais antiga e demodê que possa parecer, pois no relacional é urgente sermos simples. O pediatra e psicanalista inglês Winnicott já intuía um forte movimento de educar os pais, sobretudo as mães, as quais considerava suficientes em seus cuidados com seus filhos, e dizia que educá-las demais e grandes interferências poderiam afetar a conexão entre elas e seus bebês. Isso não significa que não podemos trocar ideia sobre parentalidade e trabalhar no sentido de eliminar possíveis crenças trigeracionais, muitas vezes tóxicas e violentas. Ele próprio fazia isso. É urgente cuidar das crianças através de uma cultura relacional.

Reconhecer que a família tem competência pode diminuir pré-julgamentos e relações de poder onde um sabe mais, o outro sabe menos e a comunicação se verticaliza demais, causando prejuízos relacionais muitas vezes difíceis de conduzir sem ajuda profissional.  

Para nós, terapeutas relacionais sistêmicos, os pais, por piores que pareçam à primeira vista dos olhos críticos (que não são poucos), são especialistas em seus filhos, sabem muito mais deles do que o profissional terapeuta que os observa durante algumas horas.

Antes de mais nada, é preciso identificar não apenas a dança que as famílias bailam, mas que música dançam, qual o ritmo que imprimem na vida, em seu cotidiano. As famílias são competentes na sua identidade para atravessar e resolver suas crises evolutivas, no tempo, no decurso do processo, em meio ao caos que é a própria vida, segundo o psiquiatra e terapeuta familiar belga Guy Ausloos. Para ele, o que hoje chamamos de problema, amanhã pode deixar de ser, pois o sistema mudou. A vida e sua imprevisibilidade é uma eterna mestra.  

Acolher e ouvir a família, trabalhando em conjunto e incluindo-a de verdade, é urgente. Mas sem dedo em riste. Abraços são mais calorosos e confortantes. Infelizmente, a inteligência artificial ainda não consegue ter braços longos e afetuosos.

Encerro este texto me recordando de mais um livro urgente, “O monstro azul”, de Olga de Dios (Ed. Boitatá), que só descobre sua própria competência a partir de uma experiência relacional. Eu não quero de jeito nenhum acabar com a surpresa da obra, mas recomendo fortemente a sua leitura.

*Adriana Amaral é terapeuta relacional, terapeuta familiar e mestre em psicologia psicossomática

Este texto é de responsabilidade do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Canguru News.

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