Educação menstrual: livro faz uma viagem através do corpo feminino

Ajudar as meninas no processo de autoconhecimento é o objetivo de obra de Bia Fioretti, que fala de hormônios, puberdade e menstruação

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Ilustração de menina com várias referências à educação menstrual
Meninas precisam conhecer bem o seu corpo e entender como ele funciona, diz Bia Fioretti
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O primeiro dia da menstruação é o 1° dia do ciclo reprodutivo. Embora possa parecer uma informação meio óbvia, nem toda mulher tem consciência disso e sabe como funciona o seu corpo. Uma pesquisa da marca Sempre Livre com a consultoria Kyra mostrou que 54% das entrevistadas sabiam pouco ou nada sobre a menarca (o primeiro fluxo menstrual).

 “A menstruação é uma forma de o corpo da gente dizer ‘oi, tudo bem? Estou aqui funcionando direitinho’”, explica Bia Fioretti, que escreveu o livro “Os segredos de Alice no país das maravilhas – Uma viagem através do corpo feminino – Hormônios, menstruação e autoconhecimento”, da editora Senac São Paulo.

Ex-publicitária, doutora em Ciências em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em medicina interna e terapêutica pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora da “Caderneta da Gestante”, manual do SUS para o pré-natal, Bia lembra que a menstruação é um processo fisiológico da mulher, e não uma doença, embora seja comum ignorarmos e querermos esconder, até de nós mesmas, que estamos menstruadas. 

Para desconstruir conceitos equivocados, ela aborda no livro temas como puberdade, menstruação, hormônios, TPM, ovulação e ciclos do corpo. Com uma linguagem lúdica, a obra traça um paralelo entre a personagem Alice, do clássico conto infantil de Lewis Carroll, e as transformações que as meninas vivenciam durante a adolescência. Assim, o coelho branco, o gato risonho, o lagarto azul, o chapeleiro maluco e a rainha de copas estão associados a diferentes aspectos da fisiologia feminina. 

A autora contou que foi depois de um episódio de bullying sofrido pela filha Lívia – que menstruou mais tarde que as amigas, aos 14 anos – que ela passou a falar, 15 anos atrás, sobre os ciclos femininos em palestras e workshops.

Apesar do tempo transcorrido, ela chama a atenção para a maneira ultrapassada como muitas escolas ainda tratam o tema – se é que o tratam. Assim como a educação sexual, a educação menstrual é um tabu rodeado de estigmas que pouco ajudam as garotas a entender o seu corpo. Em casa, muitos pais também evitam a temática, fazendo com que os filhos busquem referências em outros meios – a pornografia é um deles. “A gente não explica, não acolhe, finge que não está acontecendo nem vendo nada e isso acaba afastando muito os adolescentes”, comenta a especialista. A seguir veja os principais trechos da entrevista que ela concedeu à Canguru News.

O que é a educação menstrual?

A educação menstrual é uma maneira positiva de entender o que são os ciclos femininos, trazendo já os nomes corretos dos seus órgãos, os hormônios, como eles funcionam. Educação menstrual não é educação sexual. A gente tem que nomear e dar todo o conceito correto, e é muito difícil encontrar um livro que trate esse complexo de informações, que fale da fisiologia feminina, do hipotálamo, da hipófise e de outras glândulas, por exemplo. A educação menstrual busca trabalhar o autoconhecimento e a promoção da saúde pessoal e está prevista nos programas de desenvolvimento populacional nas áreas de saúde sexual, reprodutiva e igualdade de gênero do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). 

De onde veio a ideia de fazer um paralelo da história de Alice no país das Maravilhas com a educação menstrual?

Sempre tive um envolvimento muito grande com mulheres. Eu criei um um projeto chamado Mães da Pátria, com parteiras tradicionais e profissionais, voltado ao cuidado ampliado da saúde feminina, e cheguei a entrevistar mais de mil mulheres no mundo para um outro trabalho. Há 15 anos faço workshops relacionados aos personagens da Alice e o corpo feminino e passei a discutir mais a questão dos ciclos e como a gente se fortalece através deles quando a minha filha sofreu bullying na escola. As amigas boicotaram o aniversário dela de 14 anos, que fizemos como se fosse a festa dos 15. Eu tinha preparado uma festa para 70 adolescentes e vieram somente quatro, foi muito duro lidar com essa questão. Ela me dizia que não era popular na escola porque não tinha peito nem bunda. Ela quis dizer que a menarca dela, primeira menstruação, foi tardia. E as outras colegas já tinham menstruado e a tratavam como se ela não estivesse mais pertencente ao grupo. Quando isso aconteceu, passei a dar palestras, num primeiro momento, para adultos e depois para adolescentes, em que falava da jornada de uma pessoa que vai em busca da própria história, própria aventura. Através da Alice eu fazia uma viagem interior ao autoconhecimento, daí vem a inspiração, o livro é uma maneira lúdica de trazer esse tema.

Qual a importância de falar sobre esse tema com as crianças e os adolescentes?

As escolas e os pais estão muito mais preocupados em trazer a questão da sexualidade mas não reconhecem esse processo de transformação da puberdade, que começa dois anos antes da primeira menstruação, culmina na menarca e segue com uma série de transformações no corpo, o crescimento e o amadurecimento. A gente não explica, não acolhe, finge que não está acontecendo nem vendo nada e isso acaba afastando muito os adolescentes. Minha luta é justamente fazer com que as escolas e também pais, mães, tias e familiares se interessem pelo tema e acolham esse adolescente que está ali sozinho no quarto cheio de dúvidas. A educação menstrual traz toda essa mudança da adolescente com relação ao seu ciclo e às suas mudanças fisiológicas como um todo.

Por que muitos pais evitam o tema?

Os pais muitas vezes não tiveram como aprender, não foi falado esse tema dentro de casa, não só da menstruação como da sexualidade. Eu entendi isso depois de fazer uma pesquisa em que entrevistei 60 adolescentes e 198 pais, durante um projeto de um ano realizado na incubadora social digital Social Good, em Florianópolis, que deu fruto ao livro. Os pais estão mais preocupados em explicar para as crianças de onde vêm os bebês do que, depois que já explicaram isso, ter aquela adolescente em casa, de 12, 13, 15 ou 16 anos, fechada no quarto com computador ou celular. E ela pode estar muito mais vulnerável do que a gente pode imaginar. 

A gente tem uma desassociação de vínculo, a adolescente não vai perguntar para os pais se ela não sente nos pais uma resposta, um retorno e uma segurança das dúvidas que ela tem. Entao muitas vezes essa adolescente vai cair na pornografia na hora que ela quer entender alguma questão e a pornografia vai acabar ditando muita coisa, dita um um padrão estético, uma relacao que é mais violenta porque na pornografia não são relações amorosas.

Não é uma questão de opinião ou julgamento, mas muitas mães levam a filha ao médico quando ela menstrua pela primeira vez e o médico tem essa questão de doença e cura, só que passar pela menarca não é uma doença, é um processo fisiológico. A gente vai se desprendendo das nossas tradições familiares e acaba não tendo respaldo com relação a isso, procurando apoio num profissional de saúde que muita vezes mistura as coisas, assim como a escola, e vai dizer algo como “ah, agora você pode engravidar”, “cuidado com doenças”, esse tipo de afirmação. 

É correto dizer que a menstruação é a entrada na vida adulta?

É muito importante a gente frisar que passar pela menarca não adultiza uma criança. Uma criança que tem 9 anos e está menstruando pela primeira vez, ela não deixa de ser criança. Ela vai ter tempo para amadurecer, ela só está menstruando fisiologicamente. É preciso entender o processo e ajudar essa menina a passar pela menarca dela, sem surpresas, porque existem formas de você observar, mesmo dentro de casa, e ter uma previsão próxima de quando tudo vai acontecer, fazendo desse processo uma coisa natural. Um dos primeiros sinais de mudança é o cheiro do suor, depois, os pelos íntimos “acordam” e os seios começam a dar sinal de vida. É um fenômeno, um ritual de passagem, mas a gente não precisa dramatizar isso com muita intensidade. Cada um tem a sua forma de tratar o tema. É fundamental as crianças estarem preparadas, mas numa naturalidade e não numa situação de terrorismo ou de “olha, sua infância vai acabar”. 

Como falar de educação menstrual com as crianças e os adolescentes?

É preciso naturalizar o assunto de maneira positiva. Aquilo que a gente não nomeia, não conhece e não sabe qual é a função é como se não existisse. O adolescente muitas vezes vai acabar se conhecendo através da experiência com terceiros ou com um parceiro ou parceira ou então ao procurar um profissional de saúde. Isso faz com que a gente não se aproprie do que é o nosso corpo. Estudos ligados à Unesco comprovam que a educação sexual quando ela é ministrada ou quando as pessoas têm maior conhecimento sobre si mesmas, a iniciação sexual acaba sendo mais tarde porque elas têm um nível mais racional do que só impulsivo, não existe mais aquele desconhecido que habita dentro de nós.

Assim como a educação sexual, a educação menstrual também é um tabu na sociedade. Como você vê essa discussão (ou a falta dela)?

A educação menstrual, chamando dessa forma, é uma coisa muito recente, mas a menstruação em si, esses apelidos, “tô de chico”, “tô naqueles dias”, “tô no vermelho”, são sempre coisas muito pejorativas, que passam a mensagem de “mantenha distância da mulher menstruada”. Não só entre adolescentes, mas entre adultos, em várias culturas. A menstruação sempre foi cercada de muito tabu. Dentro das escolas, entre as adolescentes, também. Elas falam sobre estar suja e a questão do cheiro, por exemplo. Há sempre um estigma sobre o tema. Procuro desconstruir isso mostrando nas aulas a importância desse sangue que não está sendo usado, quanto trabalho o corpo teve para manter aquele ciclo e formar o endométrio. No livro, comparo o endométrio como se fosse um botão de rosa vermelha que vai se espessando, se abrindo para acolher aquele óvulo e quando esse óvulo chega sem vitalidade ele vai começar a se desprender e soltar como uma menstruação sendo uma chuva de pétala de flores. Tento mostrar isso como um processo natural, da natureza humana, dos ciclos presentes em todos os mamíferos. Isso é um ponto muito importante de ser trabalhado. 

A escola está desatualizada na maneira como trata esses assuntos?

Usando de novo o exemplo da minha filha, ela aprendeu como eram os órgãos sexuais numa aula de biologia, que mostrava a figura da vulva em um desenho anatômico, fisiológico, com o qual ninguém se identifica. Se a gente considera que os adolescentes e todos nós temos alturas diferentes, tamanhos de mãos, narizes, orelhas, olhos, pescoços diferentes, por que não se daria o mesmo com os órgãos sexuais? E aí voltando na questao da pornografia, se a gente tem a pornografia como base, terá como referência órgãos genitais que são maquiados – muitos sofreram cirurgia e isso acaba sendo um parâmetro. Para o adolescente que está em transformação, se ele não sabe que cada um vai ter um desenvolvimento diferente, como tamanho, cores e formatos diversos, ficará preso a um determinado padrão, sentindo que tem alguma coisa errada, quando não tem.

E aí eu pergunto: por que esse método não foi atualizado? Por que a gente aprende do mesmo jeito há anos? Uma das grandes preocupações do livro é repensar o método e a forma de ensinar de uma maneira mais intuitiva, onde a gente fala mais coisas explicitamente e mostra menos informação realista, para trabalhar esse pensamento abstrato, ajudar as mulheres a quererem se autoconhecer, e entender em que fase do mês elas se encontram, qual é a potência de cada fase, bem como questões do meio ambiente e descarte dos absorventes. São 11 pilares onde trabalho inclusão, diversidade, meio ambiente, redução de vulnerabilidade, entre outros tópicos. O livro é um diálogo entre alguns textos da história da Alice e uma reflexão junto com a leitora, que é parte integrante da história. O tempo inteiro tem perguntas para ela, como “o que a menstruação significou para você?” e “como você se sente?”. Essa interação é uma das características que sinto que é mais empática com relação ao leitor, trazer o leitor para dentro da história. 

A educação sexual tampouco é uma constante nas escolas, não?

O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) não contempla mais a educação sexual, então muitas escolas não se sentem com o compromisso de ter de responder isso para os seus adolescentes. E as escolas que trabalham esse tema muitas vezes trazem na educação sexual a questão da sexualidade com contracepção, HIV, DST, gravidez, tratando a sexualidade como quase uma doença e não na relação da promoção da saúde. Como falei, minha filha menstruou com 14 anos e tem colegas dela que estavam menstruadas com 9 anos, então é importante a gente nutrir de informação os jovens para que eles sejam menos vulneráveis e consigam entender em sentido integral a sua questão da saúde. E os professores também são grandes agentes nesse momento. A gente está falando de uma escola que está invisibilizando quase de maneira cega essa questão de desenvolvimento do adolescente. 

Conhecer melhor o nosso corpo pode ajudar no combate da violência contra meninas e mulheres?

Um dos pilares do livro é a redução de violência, na realidade, não é nem redução de violência, mas de vulnerabilidade. Essa questão da violência está muito do lado de fora, mas deixar uma pessoa menos vulnerável, sim. O autoconhecimento é protetor na questão de vulnerabilidade porque se consegue perceber esse assediador, a questão desse passar do limite antes, e isso é muito importante trabalhar com crianças desde cedo, não infantilizar o nome dos órgãos, ser uma coisa mais naturalizada. A gente tem modos também de trabalhar com uma criança pequena para que ela não seja tão vulnerável a esse tipo de assédio.

Que retorno você tem tido de meninas que leram o livro? 

Tenho tido resultados muito positivos. Recebo depoimentos lindos de meninas e mulheres, quando elas conseguem ressignificar o que é essa menstruação estigmatizada, cheia de tabus. Muitas mulheres adultas me falam que gostariam de ter tido acesso a essas informações antes. Algumas escolas também têm adotado o livro para uso com estudantes do ensino médio e o retorno é sempre muito favorável, inclusive dos meninos. Durante as palestras, as meninas são mais caladas e os meninos falam mais. É que existe a questão da vergonha, de fazer perguntas publicamente, mas depois, quando tenho contato mais próximo, elas falam como foi importante trazer, por exemplo, a questão da cor do sangue, muito cheio de misticismo, ninguém fala da cor do sangue borra de café, cor de rosa, a gente sempre acha que tem alguma coisa errada.

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