A tecnologia nas escolas: ensinando ao bem viver ou servindo ao barbarismo

Os avanços tecnológicos conquistados nessa pandemia somente estão servindo para reforçar as falhas da Escola

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A tecnologia deve servir à vida e resgatar a alma das crianças na escola; aluno sentado à frente de mesa com computador levanta o braço em sala de aula
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Era outubro de 2018, meu filho chegou da escola silencioso. Sempre conversávamos muito no caminho de volta, passeávamos na Avenida Paulista, por vezes, parando na sorveteria predileta dele. Naquele dia, naquela terça-feira, ele quis ir direto para casa. Parecia assustado, apertava minha mão angustiado e olhava para os lados. Fiz um jantar, ele comeu sem falar muito. Na hora do banho começou a chorar. Perguntei o que tinha acontecido e ele disse entre soluços: – Mãe muda o seu voto, me falaram na escola que quem não votar no Bolsonaro vai levar um tiro na cabeça, já tem mãe no colégio chamando você de petista!

Olhei meu filho nos olhos e disse: – Filho não podemos nos calar, não podemos ser covardes diante da violência.

Olhei meu filho nos olhos e disse: – Filho não podemos nos calar, não podemos ser covardes diante da violência. Essas pessoas são como abutres, que atacam somente quando acharem que estamos mortos. Precisamos levantar a cabeça e ter coragem. Falei no grupo de pais da escola do WhatsApp e a hipocrisia reinou nas respostas. Foi cômico como as mães tiveram a coragem de falar que “realmente essa campanha está passando dos limites”. As mesmas mães que me apelidaram e provavelmente incitaram o ódio em seus filhos e filhas… Como eu disse os novos bárbaros são abutres, covardes, agem nas sombras. Uma amiga do colégio chegou a dizer: “Fique quieta não tem nada que a escola ou você possa fazer, não tem como provar que foram elas.” Realmente não posso provar nada.  Mas posso relatar e dar voz a outras pessoas que, como eu, sofreram o assédio ideológico bolsonarista que assola nosso país desde 2018.

Mesmo tendo respondido meu filho com firmeza, senti muito medo na época da eleição. Fui votar com um livro em uma mão e meu filho na outra. Levei comigo as duas coisas que eu mais valorizo nessa vida: família e conhecimento. Por causa dos meus posicionamentos contrários ao novo barbarismo brasileiro, colecionei olhares de ódio e apelidos que até hoje acompanham-me.


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Durante a pandemia a barbárie voltou a reinar no WhatsApp das mães. Fui convidada a sair do grupo da escola por ter defendido o youtuber Felipe Neto e sido dura com quem disseminava fake news. Declinei educadamente o convite e disse que não me calaria. Isso aconteceu em uma escola de elite de São Paulo, com pais e mães que tiveram o melhor da Educação Brasileira. O melhor da Educação brasileira claramente falhou. Temos 200.000 mortes para provar isso. 

Hoje as mesmas mães que me recriminaram desejaram atirar na minha cabeça e quiseram me expulsar do grupo – estão desesperadas porque não sabem se as crianças vão ou não poder ir para a escola em 2021. Ninguém menciona o fato de que a vacina ajudaria muito a resolver esse (e outros tantos) problemas. Somos um dos únicos países do mundo que não tem vacina suficiente para imunizar profissionais da saúde, grupos de risco e serviços essenciais como a Educação (sim escola é serviço essencial!).

Como sempre a Educação ficou de fora das prioridades dos governantes brasileiros.  Não temos vacina suficiente porque o presidente não investiu com seriedade em nenhum projeto de pesquisa, não fez acordos internacionais como deveria, não se comprometeu com compras antecipadas de vacinas, não comprou insumos em tempo e ainda por cima fez campanha negacionista durante a maior crise sanitária do nosso século. Não temos vacina porque a elite desse país, educada nas melhores instituições de ensino brasileiras, é ignorante, escravocrata e atrasada. As escolas devem seguir com o ensino híbrido por um bom tempo no Brasil. E a culpa é da arrogância, incompetência e inoperância do governo Bolsonaro.

Facebook, LinkedIn e Twitter – e outras tantas redes sociais – fizeram e fazem muito pouco para combater as Fake News e os ataques virtuais.

A responsabilidade do sofrimento de nossas crianças também é de pais e mães que ficam divulgando fake news, espalhando ódio e preferindo mentiras confortáveis à verdade dura da ciência. A responsabilidade também é das redes sociais que desenharam algoritmos baseado na frequência das views e dos likes, sob o manto hipócrita da neutralidade. Facebook, Twitter, LinkedIn lavam suas mãos, como o antigo governador romano Pôncio Pilatos, ao ver milhares de vidas esvaindo-se por causa da desinformação sobre a pandemia, reputações sendo crucificadas em linchamentos virtuais e até crianças sendo assediadas por grupos extremistas. Facebook, LinkedIn e Twitter – e outras tantas redes sociais – fizeram e fazem muito pouco para combater as Fake News e os ataques virtuais, pois o novo barbarismo gera likes, views e trilhões em lucro.  

A responsabilidade também é da nossa Escola falha, tecnocientificista e com gestores submissos aos valores pútridos do capital, da eficácia a todo custo. Essa escola fria, com disciplinas fragmentadas, cientificista, escondida na neutralidade da covardia, ajudou o novo barbarismo a tomar conta de o Brasil. Para manter suas mensalidades, as escolas particulares assistiram inertes a pais e mães ensinando seus filhos a odiar, a desejar atirar na cabeça de quem pensa ou é diferente. Para manter seus votos, os políticos não deixaram a escola pública cumprir com seu papel civilizatório, propondo programas focados na tecnologia, na ciência e em uma pseudo religiosidade desenhada para forjar obediência cega e fomentar o preconceito com outras formas de compreender a dimensão sagrada do mundo.

Defender uma escola neutra, tecnocientífica, disciplinadora de mentes e corações é defender um mausoléu de ideias desconexas, desprovidas de qualquer possibilidade de desenvolvimento científico real. Não existe inovação tecnológica sem criatividade. Não existe ciência sem sonho. Não existe prosa sem poesia. Não existe compreensão da vida sem o sagrado. Falhamos miseravelmente na educação das nossas crianças. Os avanços na tecnologia conquistados nessa pandemia somente estão servindo para reforçar as falhas da escola. A tecnologia a serviço de uma escola conteudista e alienada serve ao novo barbarismo.

Falhamos miseravelmente na educação das nossas crianças.

Mas como o romeno Basarab Nicolescu (um dos mais respeitados físicos teóricos contemporâneos) sinaliza estamos vivendo uma época com duas possibilidades: a autodestruição ou o autonascimento. A revolução informática desse século tem a capacidade de acelerar tanto a primeira como o segundo. Depende de nossas escolhas e de nossa coragem decidir qual futuro escolher. Não se trata de escolher um lado da história, trata-se de escolher o diálogo com filosofia de vida e o respeito como ética incontornável. Não se trata de escolher essa ou aquela disciplina. Trata-se de ir além das disciplinas, alcançando a transdisciplinaridade.

Precisamos usar tecnologia para integrar, partilhar e despertar consciências. A tecnologia precisa servir a vida. A escola precisa libertar-se do que o matemático e professor brasileiro Ubiratan d’Ambrosio chamou de gaiolas epistemológicas e deixar saberes, tradições, culturas e espiritualidade reencontrarem-se com a humanidade de cada educanda(o). Precisamos ensinar a aprender a viver, como defende o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin. Podemos e devemos usar as tramas numéricas da tecnologia contemporânea para desvelar pontes entre a ciência, a sociedade e as tradições. A tecnologia, nas mãos de uma professora(or) bem formada(o), pode ser um dos caminhos para resgatar as almas de nossas crianças, reconectando-as com a beleza do cosmos. 

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Canguru News.


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Luciana E. Correa
Doutora em Linguística Aplicada pela PUC-SP, trabalha com letramento em programação e Transletramento em TEIA (Tecnologia, Educação, Inovação e Afetividade). Investiga a Educação Tecnológica aplicada aos anos iniciais da Educação Básica. Fez doutorado sanduíche na Universidade de Pittsburgh (EUA). Idealizadora do Programa de Educação Tecnológica Clube01, colaboradora do IMATech e da ONG Assemble, na qual atuou como convidada expert.

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