Como preparar as crianças para o Metaverso

Para além dos videogames, as novas gerações vão estudar, trabalhar e ter amigos no ciberespaço. "Saber navegar nesses mares numéricos, exige um conhecimento tecnológico contextualizado", diz a especialista em educação tecnológica Luciana E. Correa

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Menino usa óculos 3D, rodeado de ícones como o de uma casa, carro e foguete
O Metaverso simula um ambiente virtual semelhante à vida no mundo físico
Buscador de educadores parentais
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Algumas crianças estão sentadas no topo de uma construção para verem juntas um show dentro do jogo Fortnite[1]. Elas (us/es) conversam sobre a vida, discutem e fazem piadas em um encontro típico de amigas(es/os)[2]. Cada(e) uma (e/um) veste seu avatar preferido, Banana, Peixoto, Homem de Ferro… Um jogo onde pode-se ser o que quiser, quando quiser, um lugar de interação e descontração semelhante a um parquinho. Alguns meninos escolhem skins[3] femininas e outras meninas escolhem skins masculinas. A questão do gênero nem se coloca entre elas(us/es), não no metaverso do jogo. O Fortnite, um dos jogos mais populares dos últimos anos, é um bom exemplo do que seria um Metaverso contemporâneo, prioritariamente voltado para o entretenimento e convivência lúdica.

O conceito de Metaverso surgiu em 1992 com o romance Snow Crash, de Neal Stephenson, que idealizou um universo virtual semelhante à vida no mundo físico. No Metaverso as pessoas assumem avatares, termo também usado pelo autor para definir essas identidades virtuais de usuários.

Após dez anos de planejamento, Second Life foi criado por Philip Rosedale, materializando a ideia de Stephenson. O Second Life é um mundo dentro do ciberespaço que imita a vida real, tendo governos, nações, tribunais e cidadãos, chamados de residentes, que coexistem por meio de seus avatares. Apesar de ter perdido muito a sua antiga popularidade, o jogo ainda existe e teve a sua última atualização em 2018, tendo recebido um boom de usuários em 2020.

Os Metaversos podem ou não possuir realidade aumentada, pois o que os definem são os espaços de convivência e interação entre pessoas por meio de personagens. Hoje fala-se em skins (ou peles) nos games, pois pode-se mudar de forma quantas vezes quiser. Ou seja, apesar da ideia de fundar uma sociedade paralela, o Metaverso ficou mais restrito a games.

Reprodução de imagem do jogo Fortnite
Reprodução de imagem do jogo Fortnite | Foto: www.ggrecon.com/

Isso até o Facebook ter anunciado em novembro de 2021 que investiria na criação de Metaversos que pretendem abarcar todos os aspectos da vida humana. A tendência para que as pretensões do Facebook tenham sucesso depois da virtualização forçada em 2020, decorrente da crise pandêmica, aumentou exponencialmente. Isso significa que, muito provavelmente, sua(e/eu) filha(e/o) não vai mais somente brincar em jogos como o Fortnite. Ela(elu/ele) vai estudar, trabalhar, ter amigos, estabelecer laços afetivos e familiares nesses mundos, criando uma hibridez entre mundo físico e virtual nunca experimentada pela humanidade. Aos pais e mães resta a pergunta: como preparar minha (e/meu) filha (e/o) para essa realidade? Quais são os benefícios e perigos? 

A resposta que tenho para dar sempre repousa na Educação. Conhecimento verdadeiro transforma-se, adapta-se, renova-se. Por isso para navegar criticamente e de forma cidadã no Metaverso, as pessoas precisam saber como esses universos são construídos, quem os constrói e em qual contexto.

Comparo as interfaces digitais a livros feitos de imagens e sons, deixando o texto e os escritores que os criaram ocultos dos leitores. Esse conteúdo escondido deixa as seguintes perguntas sem respostas:

Como funcionam os algoritmos que estruturam o funcionamento dos Metaversos, quem os criou, como eles foram desenhados, qual a agenda de quem escreve esses mundos?

Podemos simplesmente deixar mundos inteiros virtuais serem criados, comandados e gerenciados por multinacionais que visam somente lucros?

Em um mundo no qual as relações econômicas, sociais, afetivas e familiares tendem a se hibridizar, podemos nos dar ao luxo de nossas(es/os) filhas(es/os) não saberem ler as estruturas numéricas que constroem o universo digital, incluindo os Metaversos?

Reprodução de personagens do Second Life
Reprodução de personagens do Second Life | Foto: https://secondlife.com/

Sua(e/eu) filha(e/o) vai, provavelmente, passar parte da vida no ciberespaço, servindo-se de aplicativos, jogos, redes sociais e Metaversos. Saber navegar nesses mares numéricos, exige um conhecimento tecnológico contextualizado. Isso não ocorre simplesmente com o ensino instrucional de como criar ou usar ferramentas tecnológicas.

Para formar uma(ume/um) cidadã(ãe/ão) contemporânea(e/o), capaz de transladar no mundo físico e virtual, é necessário unir tecnologia, Educação para o bem viver, inovação pedagógica transdisciplinar e afetividade. Dessa necessidade surgiu minha proposta de transletramento em Tecnologia, Educação, Inovação e Afetividade (TEIA), defendida em meu doutorado.   

A tecnologia da qual falo aborda as formas de ser, estar e se expressar no que Basarab Nicolescu[4] denominou níveis de realidade. Esses níveis podem ser físicos, virtuais, analógicos, numéricos ou naturais. Defendo o foco no ensino de tecnologias da comunicação, incluindo escrita verbal, linguagem matemática, linguagem de programação (incluindo computação física) e tecnologias da informação e comunicação digitais. 

A Educação passa pela ideia do bem viver de Edgar Morin[5] que desenvolve dois tipos de compreensão. A compreensão intelectual usada para compreender como o outro pensa, idealiza e organiza racionalmente a vida. E a compreensão humana, que ensina a compreender como o outro sente, percebe e vivência a existência. 

A Inovação refere-se ao cultivo da atitude transdisciplinar, proposta por Nicolescu. A atitude transdisciplinar é uma postura social e individual diante da vida. A dimensão social consiste em saber transladar entre diversos níveis de realidade, reconhecendo as conexões entre esses. A dimensão individual consiste em ter consciência da diversidade dos níveis de percepções possíveis.

A afetividade significa promover a ética do cuidado, cuidar de si mesma(e/o), cuidar da(e/o) outra(e/o) e do ambiente onde se vive.

Nunca uma Educação Tecnológica, com “E” maiúsculo, foi tão necessária. Não basta saber jogar, é preciso entender o básico de como criar um jogo, testá-lo e publicá-lo. Não basta usar aplicativos, é preciso saber fazer um aplicativo e conhecer os meandros de sua publicação nas lojas virtuais (Google Play, Apple Store etc.). Não basta saber navegar e escrever em redes sociais, é preciso ter o conhecimento básico de como os algoritmos podem escolher o que lemos, vemos, sentimos e pensamos. Não basta saber usar os Metaversos, é preciso saber como eles são construídos, quem os construiu e qual é a agenda de quem os financia.  Em outras palavras é preciso promover o transletramento em TEIA.


[1] Fortnite é um jogo Multiplataforma e Multiplayer. Em outras palavras o jogo suporta PS4, Xbox One, Nitendo celulares e computadores e consegue reunir até 100 jogadores simultaneamente em uma mesma partida. O jogo reúne formas diferentes de jogar importadas de games anteriores como a Battle Royale (jogo de tiros e estratégia de batalha), Salve o Mundo (jogo de batalha com missões especificas para salvar o mundo), e um Modo Criativo onde os jogadores podem desenvolver suas habilidades e fazer construções próprias.

[2] Nos artigos anteriores expliquei meu posicionamento acerca da consequente invisibilidade das mulheres pelo uso do pronome masculino no coletivo ou para falar de um grupo de pessoas em geral. Continuo invertendo a norma que coloca o masculino primeiro e feminino depois em parênteses. No entanto, após refletir sobre a necessidade de pessoas não binárias de afirmarem suas respectivas existências, também inseri o sufixo “e” ou “u” em parênteses, dependendo do caso. Por pertencer ao grupo social que se identifica com o gênero feminino, escolhi usar fora dos parênteses o pronome que vivencio todos os dias. Como Linguista Aplicada, considero que a utilização dos pronomes deveria ser feita por cada pessoa da forma que lhe deixar mais confortável. Todo discurso influencia a forma de ser e estar no mundo. As variações da língua vão muito além da norma padrão.

[3] As skins são tipos de avatares de jogos multiplataformas e multiplayers.

[4] NICOLESCU, B.  O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo: TRIOM, 1999.

[5] MORIN, E. Ensinar a Viver, manifesto para mudar a Educação. Porto Alegre: Editora Sulina, 2015.


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Luciana E. Correa
Doutora em Linguística Aplicada pela PUC-SP, trabalha com letramento em programação e Transletramento em TEIA (Tecnologia, Educação, Inovação e Afetividade). Investiga a Educação Tecnológica aplicada aos anos iniciais da Educação Básica. Fez doutorado sanduíche na Universidade de Pittsburgh (EUA). Idealizadora do Programa de Educação Tecnológica Clube01, colaboradora do IMATech e da ONG Assemble, na qual atuou como convidada expert.

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