Um pano preto na minha janela

Ao receber uma ligação do síndico e ser questionada sobre qual o motivo do pano preto na sacada, meu filho ficou preocupado: "Deu ruim, mãe?"

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Um pano preto na sacada (foto) em protesto aos que se foram
"Nosso pano preto é esperança: esperança de que ao olhar esse pano em nossa varanda, as pessoas lembrem-se que estar vivo é um milagre", diz Luciana
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Hoje de tarde recebi uma ligação do síndico do nosso prédio. Meio sem jeito e de forma extremamente educada ele perguntou:

– Luciana, o que seria esse pano preto na sua sacada? Você sabe como é condomínio, já tem gente reclamando.

Respirei fundo, percebi a delicadeza da situação e respondi calmamente:

– Eu decidi, junto com alguns amigos, colocar um pano preto na janela em homenagem aos entes queridos perdidos e aos 300 mil brasileiros e brasileiras que se foram devido à covid-19. Também coloquei uma fita preta na outra janela da biblioteca, simbolizando minha solidariedade pelas famílias enlutadas. 

Ao final de uma conversa amigável, o síndico resolveu apoiar minha causa: a vida. Ele disse que explicaria o motivo para o meu pano estar na varanda para as pessoas incomodadas com a minha manifestação. Meu filho olhou para mim e perguntou preocupado:  – Deu ruim mãe? Ficaram bravos com o nosso protesto? Vamos ter que tirar o nosso pano? Respondi, sorrindo: – Está tudo certo filho, somente precisamos ter paciência e conversar que tudo se resolve.

A verdade é que não sei quanto tempo poderei manter nosso pano preto em nossa varanda. Nesse momento de crescente autoritarismo e da valoração da barbárie, talvez eu tenha que tirar nosso pano preto de lá. Mas se a nossa varanda voltar a ficar vazia, como querem algumas pessoas (incomodadas com a responsabilização coletiva representada pelo nosso pano e a lembrança de que essa tragédia poderia sim ter sido evitada), registro aqui o significado do nosso protesto.

Nosso pano preto é amor: amor ao próximo, à próxima e a@ próxim@ que teve sua vida ceifada na crise sanitária mais terrível do nosso século. Amor ao próximo, à próxima e a@ próxim@ que perderam amigos, esposas, mães, pais e filhos.

Nosso pano preto é cuidado: cuidado comigo mesma, cuidado com o meu filho e com todo e qualquer ser humano que habite esse planeta. Cuidado traduzido em respeito aos protocolos estabelecidos por cientistas que lutam incansavelmente para salvar vidas.

Nosso pano preto é gratidão: gratidão pelas médicas, médicos e cientistas que sacrificaram tudo para conseguir a vacina. Gratidão por estar viva, por acordar e ver meu filho respirando, bagunçando e gritando pela casa. Gratidão por receber os telefonemas do meu pai e da minha mãe. Gratidão por poder participar de reuniões on-line com minha família, com meus amigos e amigas. Gratidão por estar a cada dia mais perto daquele abraço guardado há tanto tempo. 

Nosso pano preto é silêncio: silêncio dos quartos vazios de quem não vai mais voltar, silêncio de quem está cansado e com medo, silêncio de quem sabe que não existem palavras suficientes para consolar o impensável. 

Nosso pano preto é palavra: palavra de acolhimento, de apoio e solidariedade.

Nosso pano preto é promessa: promessa que farei o que for possível para ajudar. E se ajudar for ficar em casa que assim seja.

Nosso pano preto é renúncia: renúncia da minha liberdade de passear com meu filho, de encontrar pessoas que amo, de ter tempo para mim e, às vezes, até de assumir um emprego tão sonhado em nome do cuidado com a família.

Nosso pano preto é oração: oração silenciosa e recolhida por mim, pelos outros e pelo planeta.

Nosso pano preto é liberdade: liberdade de manifestar nossa tristeza e indignação diante do abandono do povo brasileiro. Estamos jogados à nossa própria sorte enquanto quem devia nos comandar investe em brigas de poder, responsabilização de terceiros e interesses de uma elite econômica. Estamos sem vacina, sem remédio, sem oxigênio e sem equipe médica suficiente para cuidar dos nossos por causa da irresponsabilidade, arrogância e ignorância de quem foi eleito para liderar em tempos de crise.

Por fim nosso pano preto é esperança: esperança de que ao olhar esse pano em nossa varanda, as pessoas lembrem-se que estar vivo é um milagre e que nenhuma ideia deveria ser maior ou mais importante do que a vida. Esperança de que os brasileiros e brasileiras aprendam a se unir e cuidar uns dos outros.  Isso significa usar máscaras, ficar em casa, priorizar o bem-estar coletivo e respeitar a ciência. Esperança que amanheça a compreensão de que somente o cuidado, a consciência e a solidariedade vão tirar-nos desse caos. 

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Canguru News.


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Luciana E. Correa
Doutora em Linguística Aplicada pela PUC-SP, trabalha com letramento em programação e Transletramento em TEIA (Tecnologia, Educação, Inovação e Afetividade). Investiga a Educação Tecnológica aplicada aos anos iniciais da Educação Básica. Fez doutorado sanduíche na Universidade de Pittsburgh (EUA). Idealizadora do Programa de Educação Tecnológica Clube01, colaboradora do IMATech e da ONG Assemble, na qual atuou como convidada expert.

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