“Comecei a tomar remédio porque eu precisava respirar”, desabafa mãe

Ansiolíticos: mães contam que precisaram de ajuda na pandemia e recorreram a remédios para controlar irritabilidade, depressão e insônia

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Mães relatam recorrer ao uso de ansiolíticos para aguentar a sobrecarga de demandas na pandemia; mulher bebendo copo com água e segurando remédio ansiolítico na mão
Sabe-se que os transtornos de ansiedade afetam mais mulheres do que homens e grande parte desses problemas se devem à dupla jornada.
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Por Érica Travain e Malu Delgado – “Fiquei trancafiada em casa, sozinha, com minhas duas filhas, fazendo home office, sem ajuda de ninguém. No meio do ano passado, meu grau de irritabilidade era gigantesco. Eu gritava em casa. Não era depressão, era exaustão, irritabilidade. Fui a um psiquiatra porque queria entender o que estava acontecendo comigo.” O depoimento sincero de B., mãe de duas filhas, de 3 e 7 anos, retrata uma realidade que muitas mulheres vivem e viveram na pandemia: a busca de ansiolíticos para aliviar a pressão.

A dura realidade brasileira e o enfrentamento prolongado da pandemia, por um ano, têm provocado efeitos colaterais na vida das famílias e, em especial, das mulheres. Os impactos na saúde mental e problemas psicológicos são realidades recorrentes da pandemia e cada vez mais conhecidos, sendo que as mulheres são as principais vítimas, pelo excesso de pressão e carga horária no home office e tarefas domésticas. O cenário provocou um aumento do consumo de ansiolíticos e antidepressivos no Brasil.

“O psiquiatra me receitou Escitalopram, uma dosagem baixa. Meu trabalho virou um caldeirão na pandemia. Comecei a tomar o remédio porque eu só queria respirar, por pelo menos três segundos, e saber que eu não ia matar ninguém”, disse B. à Canguru News, sob a condição de anonimato. Segundo ela, o plano era suspender a medicação ao final de 2020.

“Mas aí, em janeiro deste ano eu percebi que as aulas voltariam a ser online, que viveríamos a mesma desgraça de 2020 e achei melhor não tirar o remédio. A gente precisa se agarrar em algo, por um fio. Passei a trabalhar 10, 12 horas por dia, com as meninas em casa o dia inteiro, e tive redução de salário. Meu marido não pode fazer home office, dispensei novamente a babá, nesta segunda onda. Eu realmente estou muito cansada. Não consigo mais levantar disposta. Preciso de mais horas para dormir”, desabafa B., mãe duas filhas.

A pandemia teve início no Brasil no dia 26 de fevereiro de 2020, após a confirmação do caso de um homem de 61 anos, residente em São Paulo, que retornou da Itália e testou positivo para o SARS-CoV-2, causador da Covid-19. Assim, são mais de 12 meses convivendo com o vírus, uso de máscaras, medidas sanitárias, isolamento social, aulas remotas, home office. Hoje, o país assiste ao colapso simultâneo da saúde em todos os Estados do país. Diversas cidades brasileiras estão vivendo um novo lockdown e toques de recolher.

A venda de antidepressivos e estabilizadores de humor aumentou 17% em 2020, em comparação ao ano anterior, de acordo com um levantamento realizado pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF) e a Consultoria IQVIA. “Em números absolutos, quase 100 milhões de caixas de medicamentos controlados foram vendidos em todo o ano de 2020”, expõe Walter Jorge João, presidente do Conselho Federal de Farmácia. “A Covid-19 impôs o isolamento social, que impactou exponencialmente os brasileiros. Ficar trancado em casa e, ainda, sob o impacto da crise econômica provocada pela pandemia, fez aflorarem sentimentos como o medo e a solidão, que acabaram levando a problemas como insônia, depressão e ansiedade”, explica Walter.

Ainda em maio de 2020, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) mostrou que os casos de depressão praticamente dobraram entre os entrevistados durante o isolamento social, enquanto as ocorrências de ansiedade e estresse tiveram um aumento de 80% no mesmo período. As entrevistas ocorreram em dois momentos, de 20 a 25 de março, e de 15 a 20 de abril. 1.460 pessoas em 23 estados responderam a um questionário on-line com mais de 200 perguntas sobre saúde mental. Segundo a análise, as mulheres são mais propensas do que os homens a sofrer com estresse e ansiedade durante a quarentena.


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Como a ansiedade afeta as mulheres

Um levantamento do IBOPE Inteligência encomendado pela empresa Weleda, divulgado em dezembro do ano passado, mostrou que as mulheres foram muito afetadas pela ansiedade durante a pandemia, principalmente as mais jovens, entre 20 e 29 anos. O questionário foi aplicado em 400 mulheres e avaliou que o uso de medicamentos tarjados e naturais, entre elas, aumentou, respectivamente, 38% e 29%. Além disso, a pandemia as deixou mais estressadas, irritadas e angustiadas, com sintomas como enxaqueca, tensão muscular e falta de ar.

Luciana Soares é um desses exemplos. Mãe de duas meninas (de 6 e 4 anos), empresária e residente em São Paulo, ela começou a fazer o uso de ansiolíticos para lidar com a ansiedade imposta pelas mudanças. “Eu sou empresária, eu tenho loja, minhas filhas estudam em uma escola alemã, meu marido trabalha em uma grande construtora e eu me vi, como todos os brasileiros, no meio de pandemia sem saber o que fazer”, revela.

“Nós morávamos em Portugal e decidimos voltar ao Brasil. Naquela época, eu senti muito a mudança porque não era algo que eu queria fazer. Então, minha médica orientou tomar o ansiolítico para passar por esse momento de forma mais suave, sem tanta briga em casa e sem descontar nas crianças a ansiedade da mudança. Eu tomei por três meses e achei que foi muito bom pra mim. Eu consegui ficar mais calma e respirar melhor. Eu consegui pensar antes de ter uma reação. Isso foi no início de 2020”, conta.

Quando a pandemia começou, a família de Luciana já estava morando em São Paulo. E os efeitos da incerteza da pandemia impactaram novamente a ansiedade.

“A primeira coisa que eu lembrei foi do que eu senti quando nós íamos mudar para o Brasil. Aquela ansiedade me pegou, bem na primeira semana. E eu falei: “Não vou dar conta”. Na verdade, eu sabia que ia dar conta porque nós sempre damos, mas eu entendi que não precisava dar conta de tudo sozinha, sem ajuda. Eu vi o ansiolítico como uma boia, como se, naquele momento, eu precisasse de uma boia para pegar fôlego e voltar a nadar. E foi isso que eu fiz”, diz Luciana Soares, mãe e empresária.

Além do isolamento social, um dos motivos que levaram à essa situação foi o acúmulo de atividades. A somatória do trabalho com as tarefas domésticas e a obrigação da aula remota dos filhos pode ter impactado muitas mães durante a pandemia. “O fato de eu ter mais essa responsabilidade [acompanhar as aulas online] impactou a minha ansiedade. Não era uma preocupação que eu tinha antes porque deixava na escola e elas iam aprender lá, e eu passei a ter que fazer isso de casa. Hoje que estamos no segundo lockdown, nem tanto. Eu já sei como vai ocorrer e funcionar. Tenho segurança do que sou capaz de fazer”, conta Luciana Soares.

“Os transtornos de ansiedade, de modo geral, são mais comuns em mulheres do que em homens, o que também se reflete no maior uso de ansiolíticos/benzodiazepínicos nessa população. Um estudo brasileiro, publicado em 2016, constatou que o uso de medicações benzodiazepínicas em mulheres chegava a ser o dobro do consumido por homens”, explica Alexandre Venturi, neurologista da Clínica IMUVI.

De acordo com Alexandre, vários estudos já demonstraram o crescimento dos transtornos mentais durante essa fase de pandemia. “Além do aumento absoluto do total de casos que, por si só, já implicaria no aumento do consumo de medicações, existe uma importante restrição e dificuldade de acesso a outras terapias não medicamentosas em virtude do isolamento social. A restrição de contato com amigos e familiares, a dificuldade de manter uma rotina de exercícios físicos e a falta de acesso às atividade lúdicas do dia a dia reduzem as opções de tratamento e, infelizmente, nós médicos precisamos utilizar tratamentos medicamentosos até mais do que gostaríamos pela indisponibilidade de outras terapias como o exercício físico, por exemplo”, pontua.


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Ainda que dedicada a uma prática física diária, a designer A.M, mãe de duas filhas, de 5 e 8 anos, também recorreu a um psiquiatra e novas medicações para conseguir dormir. “Eu já havia começado a tomar remédio para dormir, antes da pandemia. Mas aí veio essa tristeza no mundo, no país. E ficamos quatro pessoas em casa, num ambiente único comum, com uma demanda do trabalho crescendo a cada dia. As crianças totalmente afastadas intencionalmente do mundo e tendo que assimilar as telas intensamente. Aí veio o choque de realidade. No meio do segundo semestre de 2020 procurei uma psiquiatra. O remédio pra dormir já não durava a noite toda. Minha cabeça não parava, o dia não era suficiente pra resolver tudo, faltavam horas, paciência. Tinha a vontade de chorar em momentos absurdos, e isso virou frequente”, relatou à Canguru News.

Segundo ela, conciliar as tarefas da casa, cozinhar, trabalhar, auxiliar as duas filhas durante as aulas online, administrar as brigas das crianças em casa, controlar a sensação de ansiedade e medo foram demandas emocionais excessivas. “Minha tristeza crescia a cada dia.” A.M testou três tipos diferentes de medicação, e não se adaptou bem. “Só o último remédio deu certo, ou menos errado. Os efeitos colaterais são muitos, mas vira uma balança. Hoje eu acho que o saldo de tomar esse remédio vale. Há dois anos eu meditava regularmente, tinha alimentação muito saudável. Hoje tomo dois remédios controlados diariamente”, lamenta.

“O remédio pra dormir já não durava a noite toda”, conta a designer A.M., mãe de duas filhas.

A empresária Luciana conta que adotou a alternativa online da telemedicina e segue se consultando com a psiquiatra até hoje. “É um conjunto de coisas que você tem que fazer por você mesma. Eu voltei com o ansiolítico, intensifiquei o exercício físico, comecei a terapia e passei a ser acompanhada por uma psiquiatra. Foi a melhor coisa que eu fiz pra mim e pra minha família”, conta. Para ela, a atividade física é muito importante e ela se exercita todos os dias, religiosamente. “Muitas vezes minhas filhas estão comigo no ambiente. Eu faço aulas online também, quando tem o lockdown”, afirma.


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Para o que servem os ansiolíticos?

Segundo o neurologista, os ansiolíticos ou benzodiazepínicos atuam em um receptor chamado GABA, presente nos neurônios. “Esse receptor funciona como um “freio”, diminuindo o funcionamento daqueles neurônios. Assim, durante uma crise grave de ansiedade, o uso do medicamento é capaz de controlar e “frear” aqueles neurônios que estavam mais ativos e gerando os sintomas da ansiedade”, explica. Mas Alexandre alerta: “Infelizmente, eles não são específicos e agem em várias regiões cerebrais ao mesmo tempo. Por isso, devem ser utilizados com cautela e prescrição médica, já que em doses altas podem afetar até a consciência e a capacidade respiratória”.

De acordo com Walter Jorge João, presidente do Conselho Federal de Farmácia (CFF), “os ansiolíticos são medicamentos seguros e eficazes se utilizados por curtos períodos de tempo. Se utilizados por longos períodos, podem causar efeitos adversos físicos e psicológicos, como a diminuição do efeito e a dependência”. Uma das principais preocupações da comunidade médica é o autodiagnóstico e o fácil acesso aos medicamentos no Brasil. “Por isso, o CFF orienta os farmacêuticos que prezem sempre pelo uso seguro e racional de medicamentos por seus pacientes, inclusive, pensando em alternativas não farmacológicas. E o grande desafio seria garantir o melhor custo benefício dos tratamentos, com o diagnóstico correto pelo médico e o uso seguro e racional, acompanhado pelo farmacêutico”, destaca.

Os ansiolíticos precisam de receita médica para serem vendidos em farmácias e, visando evitar a dependência, é necessário que haja acompanhamento médico e que os pacientes respeitem as doses prescritas. “Raramente o tratamento dos transtornos ansiosos é realizado isoladamente com ansiolíticos/benzodiazepínicos. Na maioria dos casos, o tratamento é combinado com atividade física, psicoterapia e medições como os antidepressivos, que ajudam no controle da doença a longo prazo, para que o paciente dependa cada vez menos de remédios”, explica o neurologista Alexandre Venturi.

“As pessoas precisam entender que a farmácia está aí para ajudar e que precisamos nos cuidar não só quando há uma doença física, mas quando há uma doença na cabeça. Muitas vezes, ela não é visível, não é como um braço quebrado,, mas é uma doença que existe, está cada vez mais forte e a gente precisa olhar para ela com menos preconceito. Eu sou uma mulher super ativa. Eu sou empresária, eu tenho loja, eu cuido da minha família e sou uma pessoa que vai ao psiquiatra. Isso tudo funciona porque minha cabeça está bem. Eu estou conseguindo digerir tudo isso e devo muito disso, obviamente, ao remédio, ao exercício, à minha terapia e ao apoio que eu tenho em casa”, revela Luciana Soares.


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