O smartphone virou o melhor amigo do meu filho

Com os pais em home office e sem rede de apoio, a exposição das crianças às telas aumentou drasticamente. Confira depoimentos de famílias, os benefícios e riscos desta mudança da rotina

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Crianças e telas
Crianças estão sujeitas ao excesso de informações e notícias trágicas podem ser filtradas
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Permanecer em isolamento e trabalhar em home office foi um grande desafio para os adultos durante a pandemia, principalmente com videoconferências constantes e muitas horas extras. Para as crianças, a realidade não foi muito diferente, visto que tiveram que se afastar dos amigos e do ambiente escolar, não puderam brincar ao ar livre e esgotaram a criatividade na hora de escolher as brincadeiras. Por conta de todo o estresse provocado pelo isolamento, muitos pais afrouxaram as regras em relação ao uso dos eletrônicos dentro de casa, principalmente por causa das videoaulas. Com a nova rotina, o tempo de telas deixou de ser apenas sinônimo de diversão para se tornar obrigação. Isso fez com que órgãos, como a Sociedade Brasileira de Pediatra (SBP), mudassem sua visão sobre o uso dos aparelhos.

Ainda em maio de 2020, a SBP emitiu nota sobre o uso de telas digitais em tempos de pandemia da covid-19, sugerindo medidas para um bom relacionamento entre as crianças e os eletrônicos, como usar o tempo de forma funcional e também aproveitar os momentos em família. Contudo, para os pequenos menores de 2 anos o órgão manteve sua posição de uso restrito apenas para entrar em contato com familiares distantes, evitando a exposição a qualquer outra atividade digital. Mesmo assim, muitos pais acabaram enxergando nos eletrônicos uma grande saída para enfrentar a pandemia, ultrapassando as recomendações médicas.


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Os eletrônicos como babás

Para muitos pais, os eletrônicos ajudam nas horas mais difíceis, seja quando a rede de apoio é escassa ou precisam dar conta de outras tarefas. “Com a pandemia e o isolamento, eu passei a trabalhar em home office de forma integral. Meu marido continuou fora, mas passou a chegar mais cedo. No entanto, meu trabalho aumentou muito. Não foi exatamente uma escolha. Eu fiquei na seguinte situação: sem rede de apoio e com duas crianças cheias de energia que não podiam sair. Então, a televisão e o celular passaram a ser aliados porque, assim, eu poderia trabalhar, manter o meu emprego e eles tinham uma distração até eu terminar as reuniões e poder olhar eles com mais cuidado”, revela T. C., mãe de dois filhos de 8 e 4 anos, que prefere não se identificar.

A tecnologia atuou como uma espécie de muleta para muitos pais que não tinham com quem deixar as crianças, principalmente devido ao isolamento social e ao fechamento das escolas. Thaís Figueiredo, mãe de Helena de 4 anos, residente em Bauru (SP), conta ter usado o celular como “babá”.

“Nesse momento de quarentena, você precisa trabalhar, estudar ou ler alguma coisa e não tem com quem deixar a criança, então coloca um desenho para ela assistir para conseguir fazer as coisas”, conta Thaís Figueiredo.

Durante o ano de 2020, a filha de Thaís não frequentou a escola, o que foi um grande desafio dentro de casa.

Algo parecido aconteceu com Juliana Soares Lance, em São Paulo, mãe de três crianças de 9, 7 e 3 anos: “Sempre houve limite para uso dos eletrônicos, porém, antes, como não tínhamos muito tempo livre, não me preocupava tanto com o tempo que eles acessavam. A gente fazia combinados conforme a hora do dia e o tempo do programa que queriam assistir”.

Atualmente, ela desconsidera o tempo da aula online como acesso a eletrônico. “Sei que para a saúde do corpo não faz diferença, mas pra saúde emocional e psicológica, sim. Não acho justo tirar o tempo de lazer que eles tinham em frente às telas por causa das aulas. Acho que isso pode gerar uma bola de neve desmotivadora para os estudos. Porém, como agora temos mais tempo livre em casa, tive que especificar exatamente quais horários as telas poderiam ser acessadas e por quanto tempo. No final, se desconsiderar o tempo de aula, eles acabam ficando em média uma hora a mais por dia em frente a telas. Mas foi difícil chegar nesse combinado!”, revela.

“Está cada vez mais difícil para os pais limitarem o acesso das crianças às telas”, destaca a psicóloga Adriana Cancelier. E é possível observar essa realidade entre crianças de diferentes idades. “A relação deles com eletrônicos mudou muito. Antes, eles tinham a escola e outras atividades extracurriculares que ocupavam boa parte do dia. Então, nem precisávamos regular muito e deixávamos eles usarem celular no final de semana de forma mais livre. Durante a semana, poucas vezes. Mas nunca regulamos “horas””, exemplifica T. C..


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Malefícios e benefícios das telas

Nos últimos anos, o uso da tecnologia entre as crianças cresceu muito. Em 2020, a pesquisa “Crianças Digitais”, realizada pela empresa de cibersegurança Kaspersky em parceria com a consultoria de pesquisa Corpa, mostrou que 49% das crianças brasileiras usaram um dispositivo eletrônico pela primeira vez antes dos seis anos de idade.

“O contato com a tecnologia acontece cada vez mais cedo e o uso excessivo de eletrônicos pode prejudicar o desenvolvimento das crianças. As crianças têm pouca compreensão dos perigos apresentados na rede, sejam eles em relação a sua segurança e em relação ao seu próprio desenvolvimento. O uso excessivo de eletrônicos prejudica suas habilidades físicas, cognitivas e sociais”, explica a psicóloga Adriana Cancelier.

Entre os principais prejuízos estão a insônia, a irritabilidade, o aumento da ansiedade, a agressividade, o comportamento antissocial, a depressão, a obesidade e a hiperatividade.

Juliana afirma que percebeu algumas mudanças nos filhos em relação ao uso de eletrônicos. “Os benefícios são bem variados devido às idades e às personalidades de cada um, porém eu vejo mais benefícios com meu caçula, pois ele só frequentou a escola por 15 dias antes da pandemia. Então, pelos programas que deixo ele ver, ele está começando a reconhecer números e letras e estimulando a coordenação. Mas a falta de socialização também é mais forte nele, pois com o acúmulo de energia, ele acaba ficando nervoso e até violento. Por isso, tenho que tomar muito cuidado com o que deixo ele acessar”, conta.

Já a menina de 7 anos explora a criatividade e a vontade de fazer trabalhos manuais. O uso de eletrônicos despertou seu interesse por pintura, arte, slimes e até invenções e experiências.

“Mas percebo que ela se sente depressiva por ‘ter que estar’ na tela inventado essas brincadeiras quando o que ela queria mesmo era estar brincando com as amigas”, destaca Juliana.

Já o filho mais velho não sente dificuldade em permanecer o dia inteiro nos eletrônicos. “Temos que estar sempre convencendo ou até mesmo obrigando ele a levantar do sofá para respirar ar puro”, relata.

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Thaís descreve que a filha de 4 anos também colheu benefícios e malefícios com o uso das telas: “Eu percebo que ela aprende, como cores e contar os números em inglês. Nós nunca ensinamos isso para ela. Mas às vezes eu percebo que ela trata as menininhas que assiste como se fossem amigas, então há essa falta de percepção da realidade“, contrapõe. A menina costuma assistir a vídeos de slime, bonecas brincando e algumas atividades educativas.

Apesar do uso constante, os pais estão conscientes sobre os prejuízos que o excesso de tempo de telas podem trazer. “Eu acho que pode impactar a criança negativamente se ela assiste um número irregrado de horas, comendo, sem horário para terminar. Aí pode impactar no sono, na socialização, em aspectos físicos e psicossociais”, destaca Thaís Figueiredo.

Segundo a psicóloga Adriana Cancelier, é importante que as crianças divirtam-se longe das telas. “O brincar e a imaginação infantil contribuem para a identidade da criança. Eles são importantes para o desenvolvimento cognitivo, moldando a maneira com que as crianças interagem com o seu ambiente. A criança se expressa quando brinca e fantasia. Isso representa importante papel na compreensão, e até na solução de conflitos e como elemento simbólico na elaboração e superação de frustrações que a vida real impõe”, explica.

Para a especialista, o uso excessivo de eletrônicos pode prejudicar a concretividade e afetar o senso da realidade para realizar coisas práticas e úteis.

“Pode-se observar também que o uso excessivo de meios eletrônicos pode causar uma aceleração do desenvolvimento e o isolamento social, o que é altamente prejudicial”, alerta Adriana.

Outro impacto é na saúde emocional dos pequenos, que deixam de aprender estratégias para lidar com suas emoções ou são menos encorajados ao comportamento empático.

O problema não vem do tempo das telas, mas da ruptura e alienação que surge nos relacionamentos

A jornalista americana e autora do livro “The Art of Screen Time” (A arte do tempo de tela, em tradução livre), Anya Kamenetz, se tornou uma referência para pais em busca de conselhos quanto aos excessos de uso de tecnologia pelos filhos. Porém, ela conta que a pandemia a fez rever seus conceitos depois que passou a trabalhar de casa em tempo integral, junto com o marido, tendo ao mesmo tempo que cuidar das duas filhas em idade pré-escolar e dos afazeres domésticos, sem ajuda de terceiros.

“Uma consequência imediata da pandemia é que limites rígidos de tempo de tela — que, em geral, existiam em famílias mais privilegiadas, como a minha — caíram por terra”, disse Anya em artigo para o jornal The New York Times. Veja algumas de suas recomendações para os tempos atuais.

Valorize as interações. A jornalista resgata uma frase de Ken Perlin, Ph.D., professor de ciência da computação que dirige o Laboratório de Realidade do Futuro na Universidade de Nova York: “Tudo o que importa é o que está acontecendo entre mim e outra pessoa. Qualquer meio que enriquece é bem-sucedido. Qualquer meio que substitua isso é um fracasso. ” Anye diz que, na prática, isso significa investir em chats de vídeo e interações em tempo real. Jogos, TV e vídeos para toda a família também são bemvindos.

Procure conteúdos mais tranquilos. “Eles são mais difíceis de consumir compulsivamente e fazem o cérebro trabalhar um pouco mais. Para os pequenos, o YouTube está cheio de vídeos lidos em voz alta por gente como a ex-primeira-dama Michelle Obama e o ator Josh Gad”, diz a jornalista. Ela cita um estudo que mostrou desenhos animados sobrecarregam as redes cerebrais auditivas e visuais das crianças, enquanto histórias em áudio com imagens promovem o máximo de conectividade entre as regiões do cérebro. Para as crianças mais velhas, audiolivros e podcasts são indicados.

Reduza e repare, não elimine. “A redução de danos é uma abordagem para a saúde pública que reconhece que evitar totalmente o risco ou perigo pode ser impossível. Este deve ser o nosso mantra agora, porque estamos em uma crise global”, ressalta Anya. Emoções explosivas quando as telas desligam são comuns, especialmente entre crianças mais novas e com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, autismo ou outros problemas de saúde mental ou comportamental. Segundo a jornalista isso pode ser questão de quantidade, do horário do dia ou devido ao tipo de atividade – e, neste caso, o ideal é tentar limitar os conteúdos mais associados a esses comportamentos.

Você pode falhar em limitar o tempo de tela. “Ou você pode optar por não limitá-lo, porque você tem que trabalhar ou fazer outra coisa”, relata a especialista. Nesse caso, sugere pensar em um plano B para a sensação de “zoneamento” que se segue, com alguma atividade física, garantias, um lanche ou todos os itens acima.

Concentre-se nos sentimentos, não nas telas. “O que passei a perceber com clareza nestes tempos sombrios e ansiosos é que muitos dos nossos problemas ‘com a tecnologia’ não emanam das telas às quais nossos filhos estão colados, mas da ruptura e alienação que se insinua em nossos próprios relacionamentos com nós mesmos e os outros ao permitirmos que nossas experiências e emoções difíceis sejam mediadas, entorpecidas, turvas, pela mídia. O telefone é como um pirulito de fentanil (usado para dor forte e em anestesias); sim, é possível abusar, mas nossa dor, e a enorme dor do mundo que nos leva a isso, é indiscutivelmente o problema real”, conclui a jornalista.


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Tempo de exposição às telas recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria:

  • Menores de 2 anos: evitar exposição.
  • Entre 2 e 5 anos: 1 hora por dia, sempre com supervisão de responsáveis.
  • Entre 6 e 10 anos: 1 a 2 horas diárias com supervisão.
  • Entre 11 e 18 anos: de 2 a 3 horas por dia, em áreas comuns da casa.

Acesse o documento “Recomendações sobre o uso saudável das telas digitais em tempos de pandemia da COVID-19”, da SBP.


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