Por Cris Guerra
Uma caixa pequena, com acabamento dourado, incrivelmente espelhada por dentro. Era ali que eu queria morar, saindo apenas para breves rodopios ao som de Pour Elise. Eu queria ser a bailarina, rápida e sorridente, em suaves aparições num reflexo de sonho. Ficar na ponta do pé seria mais que flutuar. Seria o mesmo que voar, para crescer e então deixar de ter medo.
Eu pensava: quem sabe, pisando só com a ponta, a vida pese menos? Uma solução de delicadeza, uma vida em touch screen, como tocar o mundo sem dor. Entrar suavemente, deslocar-se pela superfície sem barulho, fazendo das pontas dos pés varinhas de condão. Sapatilhas de ponta seriam minhas asas, já que até as mais macias me pareciam robustas demais para a leveza que eu arquitetava. Pisar a Terra sem maiores estragos – e com a saia sempre aprumada. Sair protagonista e aplaudida.
Tudo isso estava à venda ali na La Dance, pertinho de casa. Eu não levaria nem cinco minutos para entrar galinha choca e sair um cisne. Com minha mãe, usei o argumento de finalmente dançar conforme a música. Ela comprou a ideia, e a moça vendeu-me a sapatilha e bateu a meta do mês. Na sacola, meu laboratório de empoderamento. Um exercício para me tornar um clássico nessa vida que é mesmo uma dança.
Na mesma tarde, lá estava eu empinada sobre os tacos encerados, tal qual a minibailarina deslizando sobre o espelho. Cinco minutos até que a realidade apontasse para os pés. Ali, a aridez de uma ponta pré-histórica continha, apertado e dolorido, o sonho de ser leve.
Laço de fita na embalagem, tortura por dentro. Os passos delicados de um lado a outro da sala eram mágica, mas o truque era um estrago. Na base, o peso de todo um corpo mais o dos rótulos, enfiados numa cavidade primitiva e sombria. Nasceriam ali as unhas encravadas.
Paciente e discreta, minha mãe vigiava. Sabia que qualquer tentativa de me prevenir transformaria o falso pas des deux em um manifesto heavy metal – e eu era menina demais para que me abreviassem. Lúcida, preparava seus gestos adocicados de refrigério (fora assim com as Fofoletes na saída do campeonato de ginástica olímpica, do qual eu quis a medalha, mas nem esbocei ensaiar a série de solo). A cada nova decepção, ela me aguardava, pronta para beijar a dor de me frustrar com o que eu mesma não fiz.
Eu achava que tudo era simples. Que algo fora de mim apagaria o sofrimento, como super-heróis davam sumiço em vilões na TV. Na ponta, eu poderia tocar o mundo como quem toca o infinito.
Que nada! A sapatilha de ponta seria meu primeiro laboratório de desapontamento. O começo de tudo. Desapontar para, então, aprender a dançar.
Cris Guerra é publicitária, escritora e palestrante. Fala sobre moda e comportamento em uma coluna na rádio BandNews FM e a respeito de muitos outros assuntos em seu site www.crisguerra.com.br. Na Canguru, escreve sobre a arte da maternidade. [email protected]