Riscos e consequências do “sharenting”, a superexposição das crianças nas redes

Ao postar fotos e dados das crianças em diversos espaços da internet, pais podem colocá-las em risco sem saber; direitos dos pequenos e cuidados para proteger dados precisam ser conhecidos para que adultos compartilhem momentos do cotidiano com segurança e preservem saúde mental dos filhos

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Mãe tirando foto da filha para publicar nas redes sociais, praticando sharenting
É preciso ter cuidado para não expor a intimidade da criança em excesso nas redes, assim como seus dados pessoais
Buscador de educadores parentais
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Postar conteúdos com a imagem dos filhos na internet é um hábito muito comum entre alguns pais. Fotos da rotina, vídeos engraçados e registros de atividades e eventos na escola são apenas algumas das formas encontradas de compartilhar um pouco do amor e admiração pelos filhos nas redes. Entretanto, o hábito de sempre publicar imagens das crianças em ambiente público possui alguns riscos e implicações legais, e originou até termo específico para essa prática, o “sharenting”.

“O termo ‘sharenting’ surgiu da junção de duas palavras, ‘share’ [compartilhar] e ‘parenting’ [paternidade] e consiste na superexposição, super compartilhamento de dados, informações ou fotos de filhos, crianças e jovens de maneira geral na internet, além do impacto que isso pode ter a elas tanto agora, quanto no futuro.” A explicação é de Fernando Bousso, sócio e head de privacidade e proteção de dados do escritório Baptista Luz Advogados.

Segundo ele, compartilhar imagens dos filhos não é uma prática proibida, pois os pais e mães são os responsáveis legais pelos filhos e podem, na medida do interesse deles, compartilhar imagens. “O que o sharenting levanta é a preocupação com essa superexposição e os riscos que estão atrelados a isso”, completa.

Fernando Bousso, sócio e head de privacidade e proteção de dados do escritório Baptista Luz Advogados
Fernando Bousso, da Baptista Luz Advogados, explica que é importante pesar quais são os riscos e o tipo de exposição que está sendo conduzido com o sharenting. | Imagem: divulgação

Direitos das crianças

Com a publicação constante de fotos, vídeos e informações pessoais dos filhos, alguns direitos das crianças em relação ao uso de seus dados podem ser ameaçados. Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, explica que algumas questões legais no país protegem a criança e o adolescente, por serem considerados vulneráveis a alguns tipos de práticas ligadas aos seus dados, como roubo de identidade. “Elas têm o direito inclusive de não serem alvos de publicidade. Nós do Criança e Consumo trabalhamos com esse tema, e é importante dizer que as crianças estão num processo peculiar de desenvolvimento humano, que têm inclusive um tratamento constitucional diferenciado, de forma prioritária e protetiva.” 

“No Brasil, crianças com menos de 12 anos não podem ser destinatárias de qualquer tipo de comunicação mercadológica, de publicidade comercial, inclusive no ambiente digital. Isso está em harmonia com previsões da Constituição, do ECA, do Conanda, do Marco Legal da Primeira Infância e do próprio Código de Defesa do Consumidor”, diz a especialista.

Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana
Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, ressalta os direitos das crianças perante os possíveis efeitos do sharenting. | Imagem: divulgação

No caso da LGPD, a Lei Geral de Proteção de Dados, também existe uma seção específica que aborda os dados pessoais de crianças e adolescentes. Fernando Bousso explica: “O que a LGPD estabelece é que dados pessoais de crianças só podem ser tratados com o consentimento dos pais ou responsáveis legais. Por exemplo, se você tem uma página que é identificada para o público infantil, você está coletando dados do público infantil, não é permitido fazer isso diretamente com a criança que vai interagir”. Nesse caso, para que qualquer tipo de dado da criança seja usado, é preciso estabelecer algum mecanismo que colete o consentimento dos pais, mães ou responsáveis legais por aquela criança. 

Além disso, outro direito das crianças é o de que seus dados sejam tratados conforme seu melhor interesse. “Isso significa que, para realizar o tratamento de dados, é preciso levar em consideração aquilo que reúna melhor seus interesses e os direitos da criança e do adolescente que serão atingidos nesse processo, o que envolve também a vedação de práticas exploratórias”, pontua Maria Mello.

Segundo ela, isso também consta na abertura do Artigo 14 na LGPD, em consonância com a ideia de prioridade absoluta na promoção dos direitos de crianças e adolescentes. Assim, nas decisões que as envolvem, a ação deve ser a melhor e mais adequada para a satisfação dos seus anseios, podendo se sobrepor, inclusive, aos interesses dos pais.


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Segurança dos dados ameaçada

Nesse cenário, ao tornar público uma parte significativa da rotina e das informações privadas da criança, os pais podem colocar em risco a segurança de dados dos filhos, abrindo portas para práticas não autorizadas. 

Segundo Maria Mello, além de riscos mais evidentes à segurança das crianças, como sequestro, pedofilia, roubo de identidade, existem riscos atrelados ao mau uso de dados para fins de publicidade, de padronização de comportamentos, uso de informações para discriminação, bullying, entre outros. 

Fernando Bousso completa: “É importante sempre pesar onde você está compartilhando, para quem e o quê está sendo compartilhado. Assim, evitar o compartilhamento de informação porque, se pegarmos uma prática de roubo de identidade, a abertura de uma conta ou coisa do tipo, se você sabe onde a pessoa mora, a data de nascimento e nome completo, você já consegue conduzir uma prática de roubo de identidade.” Isso vale para fotos, vídeos e qualquer conteúdo que seja capaz de fornecer uma informação privada sobre a criança e, eventualmente, até sobre os próprios pais. 

Entretanto, ainda é importante analisar também uma dimensão mais coletiva do compartilhamento desses dados da criança, relacionado ao alcance que eles podem ter sem sequer o conhecimento dos pais. “A gente sabe que tem um grande número de dados pessoais que podem ser encontrados em diferentes bancos digitais sem que os pais saibam disso”, explica Maria Mello. Isso poderia alcançar, inclusive, empresas e anunciantes que podem querer lucrar com essa exposição:

“Uma postagem despretensiosa, da criança uniformizada, pode fornecer informações para sequestradores, roteando a criança, conseguindo a localização exata de sua escola, mas não só. Cada comemoração, no mês da criança, por exemplo, fornece detalhes sobre nome, data de nascimento, informações dos pais, possibilitando um roubo de identidade e que pode também compor um banco de dados digitais de empresas sobre aquele indivíduo”

Reflexos na saúde mental e relação com as redes

Além do impacto em questões legais, a saúde mental das crianças pode ser diretamente afetada a partir da prática do sharenting. Alice Munguba, psicóloga especialista em Clínica Psicanalítica Infantil da Holiste Psiquiatria, ressalta que, quando o indivíduo exposto ainda é um bebê, ainda não há uma noção por parte da criança que ela foi exposta, e de que forma isso impacta a vida dela. Entretanto, quando numa faixa etária um pouco maior, a criança já  passa a ter uma noção de que a foto dela estará em um espaço que as outras pessoas veem, comentam, elogiam e que isso tem impacto na visão do outro sobre ela, e isso traz consequências. 

“Quando a criança passa a ter uma noção que o conteúdo dela, íntimo ou privado, está sendo visto por todos, isso acaba afetando a noção dela inclusive do que é público e do que é privado, do que é algo de intimidade, que se preserva para poucos, e o que é social, coletivo”, explica Alice. 

Alice Munguba, psicóloga especialista em Clínica Psicanalítica Infantil da Holiste Psiquiatria
Alice Munguba pontua os efeitos da exposição das crianças na web em sua saúde mental. | Imagem: divulgação

De maneira geral, a especialista diz que em torno dos 5 ou 6 anos em diante, a criança já começa a ter uma noção de compreender, em relação à imagem dela, o que ela gostaria que o outro visse ou não. Com isso, caso a publicação dos pais não seja algo que a agrade, isso pode causar um impacto na visão de si mesma em relação ao outro, causando inseguranças.

“A criança já começa a ter noção da vergonha, do que é socialmente aceito e o que não é, o intuito daquela postagem, se é uma piada, uma brincadeira ou algo mais bonitinho, formal”, explica Munguba.

O que considerar antes de publicar?

Para os pais que adoram compartilhar um bom momento dos filhos nas redes, isso não significa que a prática precisa parar por aqui. Alguns cuidados essenciais podem ser mantidos ao decidir publicar alguma foto ou vídeo dos pequenos na internet, para que não haja implicações negativas tanto para a criança, quanto para os pais com o sharenting. 

Fernando Bousso ressalta que, em primeiro lugar, é importante considerar onde o conteúdo sobre a criança está sendo compartilhado, assim como a política de privacidade da página ou rede social em que a foto será veiculada. “Se você pega uma rede social, é muito comum que acabe, como padrão, compartilhando com qualquer um. Talvez se restrinja isso para amigos, ou amigos dos amigos. É importante então saber exatamente como estão as configurações de privacidade daquela plataforma específica.” 

Ser cauteloso com o fluxo de postagens e com o tipo de informação também é importante, segundo o advogado. “Evite compartilhar muita informação. Se você quer compartilhar uma foto, evite talvez compartilhar fotos de crianças nuas, com pouca roupa. Não compartilhar localização, principalmente da escola, pois isso pode gerar um risco para a criança. Data de nascimento, nome completo, tudo isso quanto mais pudermos evitar de compartilhar, melhor, justamente para proteger aquele jovem naquele contexto.”

Além disso, pensar sobre o tipo de conteúdo que está sendo veiculado também é fundamental, para que a criança não se sinta constrangida ou sofra algum tipo de impacto negativo a partir de sua imagem no futuro por uma prática de sharenting, como explica Maria Mello: “Uma dica mais geral é imaginar se seria razoável expor determinada imagem, determinada informação sobre a criança num espaço público offline, como por exemplo um elevador, um mural. Porque mesmo que você restrinja o alcance daquela imagem, sempre existe a possibilidade que se faça prints, que essa informação se espalhe sem que haja controle. Assim, é bom pensar se a criança gostaria que aquela informação, vídeo ou imagem fosse tornado público, pensando no seu futuro”.


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