Recentemente, no dia 19 de março, a Câmara dos deputados dos Estados Unidos aprovou um projeto de lei que pune, especificamente, o racismo capilar no país. A decisão veio depois de uma onda de apoio no país ao caso do garotinho Jett Hawkins, que dá nome à lei, que não pôde estudar numa escola primária no estado de Illinois porque usava tranças. O termo “racismo capilar” refere-se ao racismo e violência direcionado aos cabelos e penteados de pessoas pretas, como associar seus cabelos a “palhas de aço”. Foi o que aconteceu no Brasil, num caso que viralizou no último dia 20 de novembro, dia da consciência negra, quando uma professora da região da Grande Belo Horizonte pediu para que os alunos usassem “bombril” para representar o cabelo de pessoas pretas em uma atividade. Tão presente nas escola brasileiras, o racismo capilar ainda é pouco discutido na nossa sociedade. “O cabelo pode ser uma das maiores expressões de se assumir ou ser visto como negro”, como afirmou o professor e ativista da educação antirracista, Winny Rocha, de Vitória (ES).
“Eu fui uma criança de cabeça raspada até os 12 anos. Vem da sensação de que com a cabeça raspada o cabelo não aparece, então a gente consegue ‘driblar’ um pouco o racismo”, relata o professor.
Para ele, o que fica é um sentimento de coação em relação ao crescimento do próprio cabelo, um tipo de comportamento, sustenta o professor, tão violento quanto agressões físicas ou verbais.
A escritora Bell Hooks, em seu artigo Alisando os Nossos Cabelos, traz o ponto de vista feminino em foco sobre esse assunto, discorrendo sobre a imposição velada de se alisar o cabelo da mulher negra desde a criação. “Falamos sobre o quanto as mulheres negras percebem seu cabelo como um inimigo, como um problema que devemos resolver, um território que deve ser conquistado. Sobretudo, é uma parte de nosso corpo de mulher negra que deve ser controlado. A maioria de nós não foi criada em ambientes nos quais aprendêssemos a considerar o nosso cabelo como sensual, ou bonito, em um estado não processado.”
Discriminação de cabelo crespo é um problema de todos
Essa, definitivamente, não é uma questão que interessa somente a pais e mães de crianças negras. No mesmo artigo, Bell Hooks escreve: “Muitas de nós falamos de situações nas quais pessoas brancas pedem para tocar o nosso cabelo natural e demonstram grande surpresa quando percebem que a textura é suave ou agradável ao toque.” Apesar de Hooks escrever sobre a realidade dos EUA, onde viveu, a falta de incentivo à diversidade e de uma educação antirracista também se faz presente no Brasil.
Uma pesquisa de 2009, feita pela FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), em parceria com o Inep, que ouviu mais de 18 mil pessoas, entre alunos, professores, diretores, funcionários e pais de 500 escolas públicas, atestou que, das práticas de bullying que os respondentes alegaram ter conhecimentos, 19% se direcionavam a pessoas negras, o número mais alto. Vale ressaltar que apenas 10% dos alunos e 5% dos professores alegaram ter conhecimento de ações discriminatórias/bullying nas escolas.
Indo ao encontro desse dado, o Center on the Developing Child, unidade que estuda desenvolvimento infantil da Universidade de Harvard, publicou um infográfico, em 2021, apresentando a correlação entre o racismo estrutural desde a infância e a maior mortalidade de pessoas não-brancas por problemas de saúde. Segundo as conclusões do centro de pesquisa, o enfrentamento constante com o preconceito desde a infância (que muitas vezes começa no racismo capilar) provoca estresse tóxico desde muito cedo nas crianças pretas, dificultando um desenvolvimento plenamente saudável do corpo e deixando a população negra mais vulnerável e propensa a problemas de saúde futuros.
O papel das escolas na questão do racismo capilar
Apesar de relatar esses problemas estruturais que observou como estudante e, posteriormente, como professor, Rocha acredita que as escolas também são a chave para o avanço nessa questão. “Ao mesmo tempo que a escola pode ser um dos maiores responsáveis pela perpetuação do racismo, também é ela que pode ser esse ponto de contraposição, de apresentação de outras histórias e de outras estéticas”, afirmou o professor capixaba. “Escolas e sociedade educaram pais e responsáveis racistas que estão criando crianças potencialmente racistas. Então a escola pode educar crianças para serem pais e mães antirracistas”.
Ele observa que um dos primeiros passos para essa mudança está sendo dado pelas próprias crianças. Devido ao avanço do movimento negro em sua luta por representatividade, mais crianças estão povoando as escolas com tranças, blacks e nagôs. Ainda por cima, Rocha diz que essas crianças acabam criando uma rede de apoio entre si próprias. “A gente tem uma rede de alunos que cooperam na escola. Os alunos, quando têm outro para se olhar e para se ajudar, conseguem fazer isso até melhor do que numa intervenção por adultos”.
Seguindo a onda das crianças, outro passo em direção à maior aceitação da diversidade nos ambientes escolares vem dos professores. Rocha acredita que, assim como educadores com mentalidade racistas perpetuaram esse pensamento nas escolas, a entrada de novos professores negros, que têm orgulho de sua cor, introduz também o combate ao racismo capilar nesses ambientes. “O poder e a exposição que o professor tem na escola pode ajudar a empoderar outras crianças e adolescentes nesse processo de descoberta da sua identidade”, disse o docente.
A coordenadora do grupo de estudos ErêYá, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Lucimar Dias, explica como esse tipo de racismo, relacionado aos cabelos, se inicia na educação primária, por meio dos padrões de beleza brancos que temos. “No contexto da educação estamos o tempo todo dizendo quem é merecedora de admiração, reconhecimento, quem é inteligente, bonito/a, dentre outras qualidade e ao mesmo tempo dizendo quem não é. E não precisamos de muito esforço para sabermos a cor de quem recebeu as qualidades e de quem é objeto do desprestígio social”.
Dias defende que é uma necessidade das escolas repensar seu modelo de educação e sua postura em relação ao racismo, não só o capilar. Sobre o tema do cabelo, ela ressalta a urgência de se combater esse preconceito. “Cabelo crespo é animalizado e chamado de: feio, armado, revoltado, ruim e por aí afora. É óbvio que não estamos falando somente do cabelo com esses adjetivos, pois há uma pessoa que possui esse cabelo. Há uma criança, há um bebê”, afirma. Portanto, ela retoma o pensamento da autora norte-americana Angela Davis de que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. “Não diga que na sua instituição não há racismo se você, como professor(a) ou gestor(a), ignora a necessidade de valorizar nas imagens, nos livros, nas brincadeiras, nas interações as crianças negras. Se não institui propositalmente meios de valorização dessas crianças, a educação é racista”, conclui.
“Há uma pessoa que possui esse cabelo. Há uma criança, há um bebê”, diz a pesquisadora Lucimar Dias
Uma luta que não pode parar no cabelo
Para Rocha, não é plausível parar a discussão no cabelo, uma vez que o racismo capilar é “mais um viés do poder do racismo”, como definiu. “A gente precisa entender para além do cabelo, pensar para a criatividade e a potência da população negra. Dos artistas, teóricos, inventores e também a África como berço da humanidade, berço do conhecimento da beleza”.
A pesquisadora da UFPR complementa que a valorização do cabelo negro é uma questão importante, mas apenas uma das pontas do problema. “O racismo desumanizou as pessoas pretas, e a cor de pele e o cabelo se tornaram símbolos desse processo. Por isso, o cabelo é uma questão importante na desconstrução do racismo”. A pesquisadora recomenda às instituições e à sociedade a leitura do documento do Unicef “Indicadores de Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola”, como um dos passos no caminho de se construir escolas que prezam pela educação igualitária.
Rocha traz uma citação do poema “Deixei de cortar minhas raízes”, do poeta capixaba Jânio Silva, que leva consigo para encarar essa questão: “Soltei meus cabelos, deixei de cortar minhas raízes para cortar as raízes do seu racismo”.
Animação mostra relação de pai e filha e aborda a representatividade negra
A animação Hair Love, produzida pelo ex-jogador de futebol americano Matthew A. Cherry, lançada no YouTube, conta uma história de amizade e amor entre pai e filha, enquanto penteiam o cabelo da menina. No curta, Stephen é um pai afro-americano que está tendo que cuidar de sua filha e pentear seus cachos pela primeira vez enquanto a mãe da garota está fazendo tratamento de câncer no hospital.
A pequena história aborda temas como a participação dos pais (homens) nas criações dos filhos, em especial, filhas meninas, questões de autoestima e a valorização da beleza dos cachos da menina. O diretor, A. Cherry, postou na época fotos da sua filha, que lembra a personagem, focada na animação, com a legenda “Fotos como essa dizem que todo o trabalho valeu a pena”.
Livros infantis que falam do assunto
Há muitos livros escritos sobre a valorização dos cabelos crespos para as crianças. As historinhas são importantes para a criação de um pensamento positivo sobre esse tipo de cabelo, tanto para as crianças, quanto para os adultos. Confira algumas das obras que selecionamos, que podem inspirar boas conversas entre pais e filhos.
- Meu Crespo é de Rainha – Bell Hooks
- O Cabelo de Lelê – Valéria Belém
- Amoras – Emicida
- Com Qual Penteado Eu Vou? – Kiusam de Oliveira
- Os Mil Cabelos de Ritinha – Paloma Monteiro
- O Cabelo de Cora – Ana Zarco Camara
- Amor de Cabelo – Matthew A. Cherry
- O Pente Penteia – Olegário Alfredo
- O Pequeno Principe Preto – Rodrigo França
- Esse Cabelo – Djamilia Pereira (Recomendação para pais e adultos)
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