#PrankMyBaby: ‘trolar’ os filhos normaliza o abuso e pode gerar traumas

Tendência no Tiktok, desafio de fazer "pegadinhas" com crianças causa efeitos fisiológicos e psicológicos nos pequenos, alerta terapeuta relacional

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Reprodução de cenas do TikTok da trend #prankmybaby, desafio em que pais devem trolar os filhos
As crianças acreditam que a 'trolagem' é algo real e sofrem com isso
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Por Adriana Amaral* – Assistir e compartilhar vídeos aleatórios faz parte do cotidiano de quem navega pelas redes sociais. Particularmente, por escolha, não tenho o aplicativo do TikTok, mas confesso que gosto de ver vídeos de bichinhos fofos nos reels do Instagram. 

Pesquisas já mostraram inclusive os efeitos benéficos dessa prática. Um estudo feito na Universidade de Leeds, no Reino Unido, em parceria com a Western Australia Tourism, sugere que observar animais fofos pode contribuir para a redução do estresse e da ansiedade, colaborando dessa forma com a regulação psicossomática do indivíduo. 

Os cientistas investigaram os efeitos de assistir a imagens e vídeos de animais por 30 minutos sobre a pressão arterial, a frequência cardíaca e a ansiedade, e notaram um agradável resultado numa amostra de jovens estudantes estressados. Os achados tanto fisiológicos, quanto psicológicos confirmam o que vemos no mundo fora das telas, a fofura é realmente encantadora e o melhor, contagiante positivamente.

Por conta disso, meu algoritmo entendeu que se gosto de filhotes de pets, gostarei de filhotes humanos e começou a me sugerir um mar de vídeos de bebês, bebês e animais, bebês e famílias. No meio deles, alguns me incomodaram profundamente e os evitava correndo, pois hoje em dia, cuidar do nosso algoritmo faz parte da manutenção da nossa sanidade mental. 

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São imagens de pais “trolando” seus filhos, filmando as reações das crianças, normalmente de sofrimento e irritabilidade, que rapidamente viralizam no TikTok. A partir daí, comecei a não assistir mais aos vídeos de bebês fofos, pois entendi que estava alimentando uma mercadoria bastante absurda e bizarra. Uma tremenda maldade, na minha opinião.

Torta na cara, esconder brinquedos, fingir-se de morto, dar sustos intensos, uma agressão nem um pouco passiva disfarçada de “trend” (tendência). Vírus nefasto apelidado de “prank my baby”, algo como “pregando peça no meu bebê”. Não tenho vontade de assistir, não preciso ver para saber que se trata de uma agressão por parte daqueles que deveriam ser os humanos cuidadores de referência. 

Os recentes estudos sobre o trauma são enfáticos: trauma não se define somente pelo evento em si, mas também pela capacidade individual de processamento e integração da experiência. Crianças pequenas são mais vulneráveis nesse sentido, pois ainda estão aprendendo a lidar com suas experiências, necessitando de cuidado e segurança para se desenvolverem. Isso é individual de acordo, inclusive, com uma perspectiva evolutiva. 

As memórias traumáticas são implícitas e elas são transportadas no corpo e no cérebro como uma colcha de retalhos de sensações, emoções e comportamentos, conforme afirma Peter A. Levine, autor de vários best-sellers sobre trauma. Portanto, crianças que vivenciam em seus corpos situações vexatórias como essas, são capazes de “imprimir” uma marca traumática em seu repertório somático. Pode não ser só uma brincadeira para a criança, pode ser o início de um grande pesadelo instaurado e corporificado. 

Segundo a psicóloga Susan Linn, pesquisadora associada do Hospital da Criança de Boston, (Harvard), em entrevista ao jornal Washington Post, as crianças, sobretudo os bebês, estão aprendendo sobre realidade e fantasia, acreditando, dessa forma, no que veem, no que experienciam.  

Uma “trolagem” pode ser considerada real, com efeitos fisiológicos correspondentes: o choro não vem sozinho, há mudanças no padrão de respiração, aumento do hormônio do estresse, o cortisol, sem falar nos efeitos psicológicos a partir da perda da confiança. Equivocadamente, os bebês não estão aprendendo sobre o humor, estão aprendendo a normalizar o abuso.

Quem se responsabilizará pelos danos?

De acordo com Susan Linn, as empresas que gerem as redes sociais deveriam ser responsabilizadas pelo compartilhamento deste (e de outros) conteúdos, por endossarem a prática de abuso.  Segundo ela, todos podemos, de alguma forma, em qualquer tempo, magoar os filhos, não de forma intencional. Somos sujeitos às escorregadas relacionais.  Mas permitir que crianças sofram desnecessariamente quando são magoadas propositalmente, e que as empresas que administram as redes sociais lucrem com vídeos de bebês e crianças pequenas em sofrimento é um absurdo diante do qual não podemos nos silenciar e normalizar. 

A exposição da infância nas redes é um tema polêmico, vasto, necessário e fonte de investigação de pesquisadores pelo mundo. Eu vou continuar admirando as crianças no meu consultório, nos parques, nas praias, ouvindo de perto ou de longe suas conversas, achando graça em seus argumentos, oferecendo aos adultos uma reflexão bastante pertinente: não magoem quem está chegando na vida agora, uma cultura de paz começa com um olhar humano e amoroso, esse será o olhar com que observarão e cuidarão do mundo. 

Existe um compromisso ético com a infância e podemos estar colocando em risco uma geração de seres humanos corrompendo princípios relacionais. Será que vamos parar de nos assistirmos em nossas relações para nos vermos somente através do espelho narcísico das telas? Um dos princípios básicos das abordagens relacionais é que somos afetados e afetamos o outro. Para ter mais consciência desse processo, precisamos nos tornar agentes das nossas ações, responsáveis e auto-observáveis. Quem sou eu quando diante do outro? Como me posiciono diante do outro, interajo, escuto, interpreto, noto como o outro me afeta? O que estaríamos roubando da infância quando expomos uma criança que libera o seu sentir tão genuíno diante de uma agressão planejada pelo adulto que deveria cuidar dela?

Voltemos os olhos aos gatinhos fofos das redes sociais. Deixemos as crianças em paz.

*Adriana Amaral é terapeuta relacional, terapeuta familiar e mestre em psicologia psicossomática

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