Instruções para aprender a chorar

Em carta ao filho Francisco, a escritora Cris Guerra fala sobre a importância das crianças chorarem. "Você pode não saber nada. Mas tudo sente", diz ela

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Criança sentada encosta cabeça nos joelhos e passa os braços por baixo deles
Tem dias que é preciso chorar para depois voltar a sorrir fácil, diz Cris
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Sobre chorar, filho: não vou dizer que acontece, porque nem sempre. Mas devia. O choro nem sempre é sono, fome, birra ou manha. É coisa de quem já aprendeu a cultivar nascentes em si, pra deixar escoar o que não cabe.

É que as dores do mundo vivem fugindo pra dentro de nós. E nem sempre as palavras dão conta – pra falar a verdade, quase nunca. A vida é uma troca desequilibrada, e chorar corrige a balança. Fazer da dor um suco, apurar a arte de sentir. Que bom que chorar não tem contraindicação.

Melhor não confiar nesse mundo que insiste em nos treinar para sorrir. Evitar o choro é murar a porta de saída. Doer sem vazão. Engolir água salgada acaba irritando a garganta.

Você pode achar estranho eu querer lhe ensinar o que tantas vezes tentei fazer você cessar. É que, para os pequenos, chorar é só um jeito de falar. Agora não, filho. O choro agora é a sua fala consigo, um caminho para se entender melhor. Com o tempo, lágrima vira mapa.

Melhor não confiar nesse mundo que insiste em nos treinar para sorrir

É preciso abrir janelas por onde possa entrar o sol. Lavar a alma como se lavam os pés. Deixar correr as lágrimas sem nome, que nem sabem de onde vieram: só sabem que precisam ir. Chorar uma dor é chorar todas. Você pode não saber nada. Mas tudo sente.

O pranto não é propriamente a dor, filho. É o caminho para o fim. A porta de saída, a cura, exercício obrigatório para nos humanizar de volta. Chorar anda lado a lado com o riso – e bem longe da sisudez.

Crescer dói, deixar de ser criança não é assim tão doce, seguir em frente vai doer também. É um nascimento atrás do outro, e pra nascer a gente chora. Treina os pulmões pra enfrentar o mundo, aprende a trovejar.

Tem dias que é preciso chorar. Simples assim. Como quem abre as comportas de uma hidrelétrica. Libertar as dores represadas por anos, dissolvidas num caldo só. Chorar muito pra voltar a sorrir fácil.

Sozinho ou no colo de alguém. No banho ou no travesseiro. De tanto amar ou de ódio. Na cama, que é lugar quente. Por mais uma vez não ter dado certo ou por finalmente ter conseguido. Por vontade de desistir ou por determinação em insistir. Por relaxamento ou por fúria. De raiva ou de rir. Chorar pra não represar a água. Para evitar desabamento.

Carregar na intensidade, pra voltar rapidinho ao céu da alegria. Como cortar as unhas, assoar o nariz, tomar um banho. Tirar uma soneca e acordar criança de novo. 

*Conteúdo publicado originalmente na revista Canguru.


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Cris Guerra
Cris Guerra é comunicadora, escritora e produtora de conteúdo digital. Sua história emocionou o Brasil e deu origem ao seu primeiro livro, Para Francisco. Criadora do primeiro blog de looks diários do país (2007), Cris tem sete livros publicados e escreve, atualmente, para a revista Vida Simples, além de comandar o podcast 50 Crises.

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