Por Revista Pesquisa Fapesp – Imagens de ultrassom de alta resolução de 899 bebês permitiram a um grupo internacional de pesquisadores mapear com precisão o desenvolvimento do cérebro e de outras porções do encéfalo de crianças saudáveis no útero materno. Reunido em um atlas digital disponível na internet, o resultado desse trabalho deve servir como referência do que seria a evolução esperada e desejável do cérebro durante a gestação. Ele também deve ajudar os médicos a identificar precocemente lesões ou problemas de amadurecimento neurológico que podem levar a prejuízos futuros. O estudo foi realizado sob a coordenação do obstetra José Villar e do especialista em reprodução humana Stephen Kennedy, ambos da Universidade de Oxford, no Reino Unido, com a participação de pesquisadores brasileiros, e publicado em outubro na revista Nature.
Para chegar aos parâmetros do que parece ser o desenvolvimento ótimo do encéfalo humano no ventre materno, quase 200 pesquisadores acompanharam de 2009 a 2016 a gestação de 899 mulheres em oito países – entre eles o Brasil – das Américas, da Europa, da Ásia e da África. Os especialistas realizaram exames de ultrassom tridimensional do feto periodicamente, da 14ª semana de gravidez até próximo ao parto, usando sempre o mesmo tipo de equipamento e procedimentos padronizados, o que permitiu reconstruir a evolução do encéfalo semana a semana. Todas as mães tinham boa saúde e apresentavam o nível educacional mais elevado de suas comunidades. Nenhuma fumava nem tinha doenças que pudessem comprometer o desenvolvimento do bebê.
A razão para a escolha desse grupo é que as mulheres com mais anos de estudo costumam cuidar melhor da própria saúde e correm menos risco de apresentar problemas na gestação. E só o acompanhamento dos fetos gestados nas melhores condições permite conhecer o que seria a evolução supostamente ideal das estruturas do cérebro e das outras partes do encéfalo.
“Nosso atlas preenche uma lacuna de conhecimento de seis semanas na compreensão de como o cérebro amadurece no início da vida fetal”, afirmou Ana Namburete, pesquisadora da Universidade de Oxford e primeira autora do estudo, em um comunicado à imprensa. “Também revelamos assimetrias significativas na maturação cerebral, como na região associada ao desenvolvimento da linguagem, que atingiram o pico entre 20 e 26 semanas de gestação e persistiram sem diferenças entre os sexos”, contou.
Medir as estruturas encefálicas do feto não é simples. Da 14ª à 31ª semana de gestação, o período detalhado no atlas atual, o volume total do encéfalo cresce 13 vezes, passando de 24 milímetros cúbicos (mm3) para 318 mm3. Nessa fase, ocorre a proliferação intensa de células e o estabelecimento de conexões entre elas, além da migração de grupos celulares para regiões específicas, que comporão núcleos de controle de diferentes funções. “Nesse período podem acontecer erros de proliferação neuronal capazes de levar a consequências clínicas”, explica a neurocientista Andrea Jackowski, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que estuda o desenvolvimento cerebral, mas não participou desse estudo. “São momentos em que o cérebro está mais vulnerável à influência de fatores ambientais e qualquer forma de agressão pode causar repercussão para a criança mais tarde. Mas essa etapa também pode funcionar como janela de oportunidade para intervir e solucionar problemas”, conta.
Assimetrias
Outro fator que dificulta realizar as medições é que nesse período os hemisférios direito e esquerdo estão começando a se tornar assimétricos, com algumas regiões ganhando mais volume em um do que no outro. Isso significa que é no útero que o encéfalo assume a configuração que terá pelo resto da vida, ainda que não esteja completamente maduro e passe por mudanças mais adiante. “É uma fase fundamental da maturação, na qual, após a formação inicial, ocorrem os processos de especialização e desenvolvimento regional das estruturas cerebrais. Ela cria o alicerce para que os bebês, ao nascerem, estejam prontos para os primeiros atos no desenvolvimento cognitivo”, conta o psiquiatra Pedro Pan, também da Unifesp, que não colaborou com o trabalho da Nature.
A essas transformações soma-se o fato de que o feto se movimenta bastante no útero, o que complica a obtenção das imagens, que no estudo atual foram aprimoradas com o auxílio de inteligência artificial. “Os autores tiveram de usar técnicas de aprendizagem de máquina e redes neurais profundas, além de métodos complexos de processamento de imagem, para conseguir construir o atlas”, conta o estatístico e neurocientista João Ricardo Sato, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que avaliou o estudo a pedido de Pesquisa FAPESP.
Vários grupos já haviam registrado o desenvolvimento cerebral de fetos humanos, mas retrataram um período mais tardio (a partir da 19ª semana de gestação) e foram feitos com menos participantes (de 12 a 197) – quase sempre atendidos em um único centro e não acompanhados depois do nascimento.
O trabalho publicado na Nature incluiu gestantes de diferentes etnias e acompanhou as crianças até o segundo ano de vida. Ele é parte do Consórcio Internacional sobre Crescimento Fetal e de Recém-nascidos para o Século XXI (Intergrowth-21st), que acompanhou quase 20,5 mil crianças da gestação aos primeiros anos de vida e permitiu produzir as curvas de crescimento da vida intrauterina aos 2 anos (ver Pesquisa FAPESP nº 225).
“Esse é o maior estudo, até onde sabemos, que descreve o desenvolvimento normativo inicial do cérebro humano”, escreveram os autores do artigo da Nature. “Nossas reconstruções do cérebro fetal fornecem a primeira representação in vivo de todo o segundo trimestre [da gravidez]”, afirmaram.
“O material fornece um padrão de normalidade do crescimento cerebral do feto, o que é importante para o diagnóstico de problemas neurológicos nessa fase da vida”, explica o pediatra e epidemiologista Fernando Barros, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), coautor do estudo da Nature e coordenador da participação brasileira no Intergrowth-21st, que colaborou com imagens de 86 fetos para o estudo. “O atlas pode se tornar uma ferramenta valiosa para os profissionais da saúde, auxiliando na tomada de decisões clínicas e no acompanhamento pré-natal, além de ser útil para o ensino”, afirma.
“Os exames de ultrassom realizados habitualmente permitem identificar problemas a partir da 22ª semana de gestação. Com o padrão de desenvolvimento apresentado no atlas, talvez se torne possível detectar alterações mais cedo”, conclui a obstetra especialista em cirurgia fetal Denise Lapa, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Artigo científico – NAMBURETE, A. I. L. et al. Normative spatiotemporal fetal brain maturation with satisfactory development at 2 years. Nature. 25 out. 2023.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.