‘A escola pediu um laudo’

O número de diagnósticos com transtornos mentais cresceu muito nas últimas décadas; especialistas alertam para tendência a enquadrar crianças em “normalidade”, sem contextualização das experiências que viveram

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Ilustração mostra menino negro e remete transtornos de saúde mental
Respeito às especificidades de cada criança são pouco consideradas
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“Meu filho tem TDAH.” “Um médico falou que é autista”. “Preciso de um laudo para tomar ‘ritalina’ (metilfenidato) igual o colega.” “O abrigo quer um relatório médico para encaminhar a criança para a APAE.” “A professora pediu um laudo com diagnóstico para ter uma assistente a mais na sala.”  “Ele é CID F71 e recebe benefício.” Frases como essas, para se referir a transtornos mentais diversos, são comuns no cotidiano de profissionais de saúde, afirmam a terapeuta ocupacional e doutoranda em saúde coletiva, Luana Marçon, e o médico e doutor em saúde coletiva, Henrique Sater. Eles contam que a partir desses pedidos e afirmações, vindos de familiares, órgãos da assistência social, escolas e centros especializados, os serviços de saúde são obrigados a avaliar as crianças e emitir diagnósticos de algum “comportamento desviante”.

No artigo Psiquiatria infantil: “A escola pediu um laudo”, publicado no site Outras Palavras, a terapeuta ocupacional e o médico chamam a atenção para o aumento significativo de crianças e adolescentes diagnosticados com transtornos mentais nas últimas décadas, e alertam para a necessidade de refletir sobre esses diagnósticos e seus usos específicos com crianças. 

Estima-se que pelo menos uma a cada quatro a cinco crianças e adolescentes da população mundial sofrerá de um transtorno mental no período de um ano.

No Brasil, calcula-se uma prevalência de 13% de habitantes entre 7 e 14 anos com algum transtorno mental, o que totaliza pelo menos 3 milhões de diagnosticados nessa faixa etária. 

Embora reconheçam a existência de crianças vivendo com graves processos de adoecimento e a importância do seu acesso a atendimento clínico e a direitos sociais e políticas públicas específicas, os especialistas destacam a preocupação exagerada com a “normalidade” e o surgimento de adultos doentes.

“Em nome da ‘saúde’ e da ‘normalidade’, convoca-se não apenas ‘profissionais’, mas toda a sociedade a interagir com a infância sob um olhar que privilegia a detecção de riscos e de intervenção profissional e institucional”, afirmam. 

Os autores do artigo explicam que o atendimento com profissionais de saúde, por exemplo, é sempre mediado por um adulto – seja um familiar, um trabalhador da escola ou um assistente social de alguma instituição -, que tem de decodificar as demandas e sintomas da criança, ficando pouco espaço para entender e interagir com as especificidades das próprias crianças e suas infâncias.

Check list

Nesse contexto, palavras – como habilidades, inteligência emocional, desempenho, estimulação – se tornaram cada vez mais comuns para avaliar a saúde da criança. E a ausência das capacidades e experiências listadas nesse check list pré-definido transforma-se em falha, fraqueza e necessidade de avaliação diagnóstica.

Questões cotidianas da experiência infantil – como a angústia, a frustração, a desobediência e o erro, por exemplo – são ignoradas e as crianças passam a ser vistas como “desobedientes”, “desviantes”, “atrasadas” ou “anormais”, sendo “encaminhadas para o diagnóstico médico sobre o qual não se discute, visto que segue técnicas terapêuticas consideradas eficazes”.

Os especialistas complementam que, em nome de uma sala de aula “tranquila”, de um serviço de acolhimento “sem violência”, de um boletim escolar “sem notas vermelhas”, de mais profissionais especializados em serviços de educação e assistência social, “inúmeras crianças têm sido inseridas em serviços de atendimento especializado, com um volume já alto de crianças com quadros clínicos de sofrimento psíquico grave”. E muitas dessas crianças receberão terapia medicamentosa, tendo de conviver com o nome de doenças e transtornos em constante reformulação e permanente crítica.

Segundo Marçon e Sater, é preciso mudar essa concepção de infância, que dentro de um contexto neoliberal é vista como um “investimento”, e na qual desvios devem ser corrigidos para garantir um futuro “autônomo e promissor” para “vencedores”. “É preciso pensar em outros modos possíveis para que as crianças habitem um mundo que contenha adversidades, imprevisibilidade e alguns danos intrínsecos à vida”, declaram.

Diagnósticos em crianças com transtornos

Segundo os autores, diagnosticar é dar nome a um conjunto de manifestações clínicas, permitindo organizar os sintomas em um padrão reconhecível tanto para o médico quanto para o paciente.

O diagnóstico psiquiátrico torna o paciente elegível para tratamento e serve de justificativa de afastamento do trabalho ou da escola, por exemplo, e para cobertura de benefícios, entre outros aspectos. 

De forma global, são usados dois sistemas classificatórios de transtornos e doenças mentais: o DSM (em português, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e a CID (Classificação Internacional de Doenças). O CID F71, por exemplo, se refere ao “retardo mental moderado”.

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