O aborto para além dos discursos de ódio

Os diferentes casos de violência contra mulheres motivaram a colunista Luciana E. Correa a falar, pela primeira vez, da dor de ter de parir um filho, já ciente de que ele não estava vivo; "Ele não era um feto, era meu filho, meu sonho, a coisa mais importante da minha vida."

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Médica apoia suas mãos sobre mãos de paciente mulher em consultórioMulher
Para Luciana E. Correa, o aborto é uma medida extrema, para situações extremas
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Eram 7h30 da manhã. Acordei com contrações, sangrando muito. Eu estava no oitavo mês da gravidez. Era nosso primeiro filho. Cheguei no hospital achando que talvez tivesse um bebê prematuro. Quando fiz o ultrassom, o mundo desabou. “O feto não tem mais vida”, escutei da médica que fazia o exame. Enquanto eu chorava e gritava, chamaram a médica obstetra. Foi me dada uma escolha: ficar e induzir um parto ou ir para casa para esperar que o parto fosse normal. 

Pedi para ficar. Foi quando o inferno começou. Não havia vaga no hospital. Fui alocada no corredor, sozinha, sangrando e chorando. Meu ex-marido não pôde ficar comigo. As enfermeiras passavam e diziam. “O feto já morreu, ela não é prioridade”. Meu filho tem nome, Gabriel. Eu tinha comprado roupinhas, carrinho, moisés. Ele não era um feto, era meu filho, meu sonho, a coisa mais importante da minha vida. Cada vez que ouvia isso, chorava mais e mais. Outra enfermeira passou e disse: “Pare de chorar, agradeça, ele ia nascer com defeito, ia sofrer, foi livramento.” “Pare de chorar!” foi o que mais ouvi. 

Também vi enfermeiras me olhando feio, como se eu tivesse feito algo para merecer isso, como se eu tivesse provocado a morte do Gabriel. Esses olhares me fizeram recordar tudo o que tinha feito e não feito durante a gravidez. Por meses, anos, achei que poderia ter evitado essa tragédia. Foram muitas horas com dor, desespero e solidão na maca. Foram anos para curar minhas feridas emocionais. 

Encontraram um quarto. Recebi uma medicação intravenosa para aumentar as contrações. Mas não recebi nada para a dor que sentia, nenhuma palavra de carinho ou consolo. Simplesmente me manipularam como se eu fosse um animal. Lembro do meu ex-marido em um canto, sem fazer nada. Tive um acesso de fúria contida. Pedi para que ele saísse do quarto. Ele saiu. 

Fiquei sozinha, as contrações aumentaram, uma enfermeira estagiária entrou, ninguém encontrava a médica. Não lembro de muita coisa. Somente de uma dor intensa e o pavor de ter que encarar meu filho morto. Acho que alguém segurou minha mão. Mas não lembro quem foi. O Gabriel nasceu sem vida. Não tive coragem de olhar para ele. Eu gritava muito. 

A médica entrou, depois do parto, e gritou comigo “Pare de chorar, se controle, não acabou ainda!”. Depois pegou meu filho ensanguentado, jogado em uma caixa pela estagiária e falou secamente: “Se você não olhar para o seu filho agora, nunca mais vai poder vê-lo”. 

Eu não sentia meu corpo. Não conseguia me mexer. Não queria abrir os olhos. Eu só queria morrer com ele. Abri os olhos, olhei meu filho maltratado, magrinho e cheio de sangue. Não disse nada e virei o rosto novamente. O olhar da médica era de desprezo. Como se eu não tivesse tido a reação esperada. 

Eu queria tanto ter segurado meu filho uma única vez. Mas não tive forças. Não consegui. Ninguém se deu ao trabalho de lavar o corpinho do meu bebê, embrulhá-lo e me ajudar a me despedir dele com dignidade. Fiquei ali, exausta, ensanguentada, com o meu bebê morto em cima de uma cômoda, dentro de uma caixa de papel. 

Não queria que ninguém nos visse assim. Mas a médica disse que meu ex-marido tinha o direito de ver o filho. Concordei debilmente. Ele entrou, dirigiu-se para cômoda e veio falar comigo. Não lembro o que foi dito. Depois dele vieram meus pais. Minha mãe beijou minha testa e disse que se pudesse trocava de lugar comigo. Eu também trocaria de lugar com o Gabriel se me fosse dada a escolha.  

Nunca me senti tão exposta e impotente na minha vida. Eu já não chorava, nem protestava mais. Não depois dos gritos da médica. Não depois de ter sido obrigada a ver meu filho morto e coberto de sangue. 

 Entendi que minha dor era um incômodo. Meu filho já tinha morrido, deixei de ser importante, deixei de ser mãe. Eu era somente uma mulher agora. Mulheres somente possuem valor quando são mães, esposas, irmãs ou tias. Quando servem alguém ou a algum propósito que as sacrifique de alguma forma. Mulheres sozinhas, sem nenhuma outra atribuição servil, são dispensáveis, choronas e dramáticas. Essa foi a lógica cruel que guiou o tratamento para mim reservado. Quem fez isso comigo foram outras mulheres. Somos as maiores vítimas e algozes do machismo estrutural. 

Isso aconteceu há mais de 11 anos. Nunca consegui falar sobre isso. Mas o debate atual no mundo envolve tanta crueldade que me deu a coragem de falar. Mulheres estão sendo presas nos Estados Unidos (EUA) por perderem espontaneamente seus filhos. Meninas grávidas são expostas e pressionadas a serem mães no Brasil. Falar sobre o aborto de forma racional e humana é preciso. Esse é o tratamento reservado às mães em um país ou Estado que criminaliza o aborto de maneira fanática e misógina. 

Se eu morasse em um desses estados americanos radicais, tão admirados pelos fascistas brasileiros, além de ter sido tratada como dispensável, como um animal, eu ainda seria investigada criminalmente e, quem sabe, presa por ter perdido o Gabriel. A lógica da criminalização do aborto tende a transformar maternidades em campos de concentração de mulheres. 

Não vou nem entrar no mérito da proibição do aborto em caso de estupro defendida pela extrema direita. A ideia de obrigar, inclusive crianças, a levarem a término uma gravidez, fruto de violação, é tão repugnante que não merece argumentos.  

Não podemos deixar que a sociedade nos trate como assassinas em potencial. Não podemos ser somente respeitadas quando estamos cumprindo papéis atribuídos pelo patriarcado. Não podemos mais admitir sermos tratadas como seres humanos de segunda classe pelo nosso potencial de gerar filhos.  

Sou contra o aborto. Ninguém quer ver uma vida ceifada. Ninguém precisa me explicar o que é um bebê sem vida. Enterrei o meu. Conheço a dor.  Meu posicionamento pela legalização do aborto é fundamentado no direito à dignidade humana de toda mulher.  

O aborto é uma medida extrema, para situações extremas. Pode ser fruto de um estupro. Pode ser fruto de abandono. Pode ser fruto do fato da mãe não ter condições psicológicas de seguir em frente com a gravidez. Também pode ser uma tragédia pessoal, como foi comigo. Pode ser um acidente, como foi para as mulheres presas nos Estados Unidos.  

Quem define as situações extremas? Quem passa por elas. No caso do aborto, quem define as situações extremas é a grávida.  O nível de dor e desespero de uma mulher não pode ser medido pelo Estado ou pela Igreja, muito menos pela moral de terceiros. 

A mulher precisa ser acolhida e protegida no seu direito à privacidade, no seu direito sagrado de decidir sobre o próprio corpo. Se você não está grávida, se o filho não está no seu corpo, a decisão de continuar ou não a gravidez não pertence a você. Nesse caso, as suas convicções, a sua religião, o seu norte ético diz respeito a você e ao seu corpo. 

Negar o aborto legal, é negar o direito das mulheres, principalmente das mulheres pobres, sobre a própria vida. É transformar mulheres em propriedade do Estado, da Igreja e de uma elite hipócrita assim que engravidarem. É dispor do corpo de um ser humano contra sua vontade. Ou seja, forçar uma mulher a ter um filho é estupro. 

*Este texto é de responsabilidade do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Canguru News.

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