“Chegou um novo cidadão e você é bem-vindo”

    O economista Pedro Fernando Nery discute o momento das políticas sociais voltadas à primeira infância e fala do projeto finlandês A Caixa de Papelão, de atenção a pais de recém-nascidos

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    Pedro Fernando Nery fala sobre primeira infância e políticas públicas; imagem mostra caixa de papelão da Finlândia com bebê dentro e itens para seu uso
    A caixa de papelão traz itens de cuidado ao bebê e é distribuída a todos os pais – pobres e ricos | Crédito: finlandabroad.fi
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    Por Roberto Gazzi* – É um projeto social de aparência singela, mas de longa duração e forte tradição em um dos países de maior desenvolvimento humano do mundo, a Finlândia: a Caixa de Papelão. Este era também o título do artigo semanal do doutor em economia Pedro Fernando Nery para o Estadão, na terça, 25 de agosto, que discutia as políticas sociais voltadas à primeira infância – fase que vai de 0 aos 6 anos de idade – no Brasil nestes tempos de pandemia.

    A Caixa de Papelão nasceu na Finlândia, sendo distribuída a todos os pais de recém-nascidos pouco antes da Segunda Guerra. Além de ser um berço alternativo, a caixa recebia itens de cuidados para os bebês. Ela ajudou a reduzir a mortalidade infantil de um país então pobre. E continua a ser distribuída até hoje a todos os pais finlandeses, independentemente de renda ou classe social, como conta Nery. Até o presidente Sauli Niinistö recebeu há 2 anos uma caixa no nascimento do filho. Igualzinha à entregue ao mais humilde casal: as mesmas roupas, produtos de higiene, o primeiro livro. Mas nenhuma mamadeira, para incentivar a amamentação.

    No artigo, além de apresentar o projeto finlandês que tem sido adotado por países e cidades em várias partes do mundo, como Chile, Irlanda e Escócia, ou Nova Jersey nos EUA, Nery tratou dos programas sociais em discussão no governo Bolsonaro, como o Renda Brasil, que vão impactar a primeira infância. Doutor em Economia pela Universidade Federal de Brasília e consultor de economia do Senado, Nery é também pai de uma bebê de 2 anos. À Canguru News, ele concedeu uma entrevista por e-mail em que discute o momento das políticas sociais voltadas à primeira infância e fala da caixa concedida às famílias finlandesas. Confira a seguir.

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    No seu artigo para o Estadão (“A Caixa de Papelão”, 25/8), você fala da importância da atenção à primeira infância. Como você vê essa atenção hoje no Brasil?

    Pedro Fernando Nery (PFN): A atenção do Estado à primeira infância vem melhorando, mas ainda está muito aquém do que o País precisa. Desde a redemocratização tivemos avanços: queda na mortalidade infantil, a instituição do Bolsa Escola e Bolsa Família, e mais recentemente, alguns programas bem desenhados de visitação domiciliar. 

    Mas a mortalidade infantil ainda é alta e milhões de crianças brasileiras têm privação no acesso à água limpa por exemplo – uma reforma que só foi feita pelo Congresso agora em 2020. Na educação, gastamos muito mais com universidades do que com creches. O foco do gasto público ainda é de certa forma “sequestrado” pelas gerações mais velhas: gastamos muito com proteção social na comparação internacional, mas muito pouco com crianças nessa mesma comparação. 

    A reforma da Previdência atenua um pouco essa distorção, e abre espaço para investimentos na primeira infância que não existiriam se não fosse ela. Estou confiante de que o que sair das discussões sobre o Renda Brasil – as políticas sociais do governo Bolsonaro – serão um avanço, ainda que incremental.

    Neste momento de pandemia, uma das principais questões brasileiras é a efetivação de medidas de apoio à população mais atingida. Há várias discussões, como a prorrogação do auxílio emergencial, a criação do Renda Brasil, mas também o fim de outros auxílios. Como você enxerga estas iniciativas?

    PFN: Essas iniciativas são muito importantes. Benefícios assistenciais são os que conseguem chegar melhor na primeira infância. Ainda temos 30% das crianças brancas na primeira infância vivendo abaixo da linha da pobreza, 60% no caso de crianças negras. Tipicamente, vivem com pais jovens desempregados, frequentemente só com a mãe. Por isso não são beneficiadas com políticas como aposentadorias generosas (porque os pais ainda são jovens) ou mesmo aumentos do salário mínimo (porque os pais não têm emprego formal). 

    O auxílio emergencial não chega a ser proporcional ao número de crianças na família, como é o Bolsa Família, mas tem a cota dobrada para mãe solo (os 600 reais viram 1.200). Isso ajudou muito. O Renda Brasil deve continuar tendo a primeira infância como foco.

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    Você citou o caso da caixa de papelão finlandesa. O que você enxerga de bom nela?

    PFN: Tem duas coisas que eu gosto muito na caixa da Finlândia. Um é o componente simbólico: é o Estado, a sociedade, dizendo: chegou um novo cidadão e você é bem-vindo, nós nos preocupamos com você. Ainda, a ideia de igualdade: o bebê do rico e o bebê do mais pobre têm as mesmas necessidades.

    E tem também a parte material em si. Não apenas ajuda a família com custos pesados desse início, como educa em vários aspectos. A presença, por exemplo, de um produto de higiene pode sugestionar pais de primeira viagem sobre a importância de uma determinada prática. Veja que a caixa tem um livro, que estimula nos pais o hábito da leitura para a criança. Mas não tem mamadeira, para incentivar a amamentação. Imagino que boa parte da desigualdade entre pais ricos e pais pobres é no próprio acesso à informação. Como se cuida de um bebê? Acho que a caixa ajuda nisso.

    Você acha que a iniciativa poderia ser implantada no Brasil dentro deste contexto? A implantação seria mais fácil por iniciativas dos governos em parceiras público-privadas?

    PFN: Eu acho que pode ser testada. Por exemplo, começar com um programa piloto e ir avaliando os resultados. Funciona? Então aumenta o alcance. Acho que o setor privado pode contribuir com doações, exposição da marca ou algo do tipo. Mas uma política realmente de maior escala teria que ser tocada pelo orçamento público, não tem muito jeito.

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    No seu artigo você cita que especialistas se interessam cada vez mais pelo tema da atenção com a primeira infância, citando o exemplo do prêmio Nobel James Heckman. O que te chama a atenção nos estudos dele? E, de passagem, você diz que ele tem sido ultimamente desafiado na academia. Que críticas são estas ao trabalho de Heckman?

    PFN: Os estudos de Heckman e outros pesquisadores, como o brasileiro Flavio Cunha, chamam muito atenção por quantificar o retorno desses gastos. Se o Estado gastar agora com bebês, quanto volta lá na frente para cada real investido? Qual a taxa de retorno? E os resultados não são controversos: investir em bebê é muito bom para a sociedade. Esse é um período muito fértil de desenvolvimento cerebral e crescer com condições básicas de nutrição, saúde e estímulo, em um ambiente de baixo estresse, vai ajudar ele na escola.

    Muito recentemente o trabalho do Heckman foi desafiado por um gráfico chamado de “curva de Heckman”. Ele é uma simplificação da ideia de que o retorno do investimento nos primeiros anos de vida é cumulativo, isto é, um bebê desenvolvido poderá ser um bom aluno na alfabetização, que tenderá a ser um melhor aluno no ensino médio e assim por diante até o mercado de trabalho. É uma ideia de base, de ganhos acumulados mesmo.

    O que isso não significa é que não possa valer a pena investir em outras fases da vida. Existem programas de treinamento profissional, para jovens adultos, com resultados excelentes. Porém, de fato há publicações de Heckman sugerindo que sempre gastar na primeira infância é melhor do que depois. O que a crítica mais recente consolida é um entendimento que me parece mero bom senso: uma boa política pública em fases mais velhas pode ser melhor do que um programa mal feito para a primeira infância em termos de resultado. 

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    Você acredita que o mundo pós-pandemia nos levará a um ambiente mais perto da caixa de papelão?

    PFN: Eu acho que sim. O que aconteceu no Brasil esse ano foi muito interessante. Por diversas circunstâncias, aprovamos e operamos um super benefício para as famílias mais pobres. Apesar da recessão histórica, a pobreza extrema e a desigualdade de renda tiveram as menores mínimas já registradas! 

    Veja que o auxílio emergencial gasta em um mês quase o que o Bolsa Família gasta em 2 anos. Isso trouxe muita atenção para a realidade dos mais pobres do Brasil: em geral famílias fora do mercado de trabalho formal e com crianças. E gera uma demanda política para que novas políticas públicas atendam a esse grupo. Não voltaremos mais a situação anterior à pandemia, em que havia fila de espera para entrar no Bolsa Família, onde a criança recebe R$ 1,40 por dia. 

    Mesmo o atual governo, que não é historicamente identificado com essa pauta, sinaliza que vai propor uma transferência de renda mais generosa; expandir a oferta de creches; ampliar programas de visitação domiciliar; e incentivar o emprego dos pais. Foi a pandemia e o êxito do auxílio emergencial para o PIB e para a popularidade do Presidente que estimula essa mudança. Tenho estado otimista.

    ……….

    *Roberto Gazzi é jornalista e consultor de mídia. Pai do Eric e avô do Emmanuel. Em 26 anos de trabalho no Estadão, foi editor, editor-chefe e diretor. Trabalhou na Folha de S. Paulo, no Diário do Grande ABC e no Jornal da República. Dirigiu o jornal Correio da Bahia. Recentemente foi consultor do Diário de Pernambuco, do Recife, e do jornal A Tarde, de Salvador. É sócio co-fundador da Canguru News.

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