Por Giovanna Castro* – É muito provável que, quem mora aqui em Salvador e anda de transporte público, tenha visto Davi, ainda criança, vendendo picolé dentro do ônibus ou vendendo água na Estação da Lapa.
Pode não ter encontrado exatamente Davi Brito, que com apenas 21 anos de idade, tem demonstrado inteligência e equilíbrio emocionais raríssimos, assim como uma excelente capacidade de articulação e entendimento de relações humanas interpessoais dentro da casa do Big Brother Brasil (BBB) 2024.
Mas, certamente, viu crianças pretas como ele, que já aos 7 anos de idade, fazia algum trabalho na rua para ajudar no sustento da casa. Ou, melhor ainda, tem dentro da própria família um rapaz como ele que está na vida correndo atrás do prejuízo todos os dias e fugindo corajosamente das estatísticas que condenam jovens como ele à morte quase sempre sumária.
Davi fala bem, é articulado, compartilha suas experiências, cita letras de músicas sempre adequadas ao momento e até dá dicas bem sucedidas de técnicas de vendas. Diariamente, deu aulas a cada um dos participantes do programa de TV sobre como ser e estar na vida. Todos mais velhos que ele.
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Mas somente Davi sabe o que ele passou para chegar a esse lugar. Não é preciso conhecer seus familiares e amigos para saber que, vindo de CajaCity, o bairro mais populoso da capital baiana – Cajazeiras, que tem até moeda própria, reproduz a trajetória que há centenas de anos é a dura realidade da grande maioria das crianças pretas.
Quantas vezes Davi foi invisibilizado, escorraçado, alvo de violência de pessoas que se consideram parte de uma casta superior, pela polícia e mesmo dentro de casa. Afinal, ele mesmo contou aos amigos de reality show que apanhou muito de cinto, de pau, de qualquer coisa, para “aprender a ser homem”.
O cinismo da branquitude que se apavorou com a força, convicção, determinação e foco de um preto que não abaixa a cabeça e não se rende – ou “não come reggae”, como se diz por aqui – levantou a possibilidade de Davi estar apenas sendo machista ao proferir essa afirmação. Eles não se emendam…
“Ser homem” no lugar de onde a gente vem, pessoas pretas periféricas, é ter honra, é não roubar, é não fazer mal a ninguém, é trabalhar duro para levar o pão para dentro de casa, é fazer o que tem que ser feito.
Filho de uma mulher preta que dá o duro como microempresária do ramo de festas infantis (montando pula-pula para as crianças brincarem) e marido de uma mulher preta empreendedora do ramo alimentício (barraca de lanches rápidos), deixou evidentes feridas que advém dessa posição, o que culminou em choros sofridos e quase da desistência do maior sonho, que era estar dentro do programa e virar milionário.
Não conseguiu entender o que fazia de errado, mas nós bem sabemos o que está “errado” em Davi em um país estruturalmente racista como o Brasil. Quis apertar o botão para sair da casa. Mas chorou também no final, ao constatar que sua firmeza e foco o levaram ao lugar desejado. Se mostrou, se divertiu, jogou, arrasou e – a menos que todas as enquetes de internet estejam erradas – chegou ao alto do pódio na terça-feira (16) e vai encontrar do lado de fora uma vida totalmente diferente, talvez muito mais diferente do que jamais imaginou.
Um dia antes do fim do programa, Davi sugeriu que os participantes remanescentes na casa fizessem uma limpeza geral e detalhada em todos os ambientes da casa pois “o pessoal da limpeza ia ficar feliz”. Poderia afirmar com quase 100% de certeza, que “o pessoal da limpeza” são pessoas como ele, historicamente obrigadas a executar o trabalho pesado, braçal e invisível que por aqui é destinado aos pretos.
Como já disse o grande orixá brasileiro Gilberto Gil “o branco inventou que o negro/ quando não suja na entrada/ vai sujar na saída/ Que mentira danada!/ na verdade a mão escrava/ passava a vida limpando o que o branco sujava/ Imagina só!/ Êta branco sujão”.
Davi não é o preto escolarizado e intelectualizado armado com as falas e citações dos letrados racialmente, mas ainda que não saiba muito claramente o que suas ações representaram aqui fora e as discussões suscitadas, ele representou muito cada uma das pessoas pretas brasileiras que está no corre do dia a dia vendendo o almoço para comprar a janta. E com seu exemplo genuíno arrastou milhões.
E eu, que tenho como principal objetivo preparar mães para que criem crianças pretas altivas e conscientes de si, apesar do racismo estrutural brasileiro, fico aqui imaginando a diferença que um Davi faz e ainda poderá fazer nas suas cabecinhas ainda muito confusas e feridas pela força do auto-ódio que as limita e destrói, dia após dia.
- *Giovanna Castro é jornalista e fundadora da plataforma Mãe Preta Amarela, uma empresa de impacto social que oferece soluções para a maternidade da criança preta.
*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião da Canguru News.