A geração do quarto: um retrato chocante da juventude brasileira

Após ouvir mais de 3 mil crianças e adolescentes que vivem experiências traumáticas em seus quartos, o pesquisador Hugo Monteiro Ferreira faz um alerta aos pais e às escolas sobre a necessidade de mudar a forma de se relacionar com os jovens

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A geração do quarto vive plugada à internet, como esse menino, que está coberto por edredon, e olha tela de celular no escuro
Conectados à internet, jovens da geração do quarto têm dificuldade em se comunicar com a família
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“De boa, passo muito tempo da minha vida no quarto. Tá ligado? É um canto só meu. No quarto, já fiz tudo. Também já pensei em fazer besteira.”  

“Fico mais tempo do que no resto da casa. Só saio pra comer, saca? Tem dia que nem pra comer. Ninguém me pergunta nada. Só ficaram mais preocupados, minha mãe e meu pai, quando a professora falou que me cortei.”

Relatos como esses fazem parte dos depoimentos que o pesquisador Hugo Monteiro Ferreira colheu para um estudo sobre o cotidiano de crianças e adolescentes brasileiros marcados pelo adoecimento emocional e mental

São jovens na faixa etária de 11 a 18 anos de idade, que passam cerca de seis horas por dia dentro de seus quartos, geralmente conectados às redes sociais, e com sérios problemas de convivência entre os seus pares e também com os adultos com os quais convivem. De modo geral, são pessoas que pertencem a uma classe social mais favorecida.

Hugo os definiu como “a geração do quarto”. Vítimas de bullying, cyberbullying e outras violências, geralmente na escola, eles vivenciam nesse cômodo da casa diversas formas de sofrimento – de transtornos alimentares a ansiedade, depressão e até mesmo suicídio.

“A geração do quarto adverte-nos que as famílias e as escolas precisam “escutar” meninos e meninas e rever posturas e procedimentos, bem como formas de educar e jeitos de orientar”, afirma Hugo, no livro “A geração do quarto – quando as crianças nos ensinam a amar”. 

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A obra é fruto de uma pesquisa que ouviu 3.115 crianças e adolescentes, de escolas públicas e, principalmente, privadas, de cinco capitais do país. É um grupo que retrata nitidamente os jovens da sociedade contemporânea. “Tenho retornos de professores e professoras que me diziam: “olha isso que você disse acontece exatamente assim na minha escola”, afirmou Hugo.  

Segundo ele, a fragilidade dessa geração revela a fragilidade dos pais e das mães. “Não são só as crianças e os adolescentes que estão no quarto — os adultos também estão. O quarto é a metáfora da família que não dialoga, mas grita; da escola que não acolhe, mas exige o desempenho das notas”, afirma Humberto da Silva Miranda, doutor em História das Infâncias, no prefácio do livro. 

Hugo Monteiro Ferreira

A seguir, leia a entrevista que o autor concedeu à Canguru News. Hugo é professor do departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Culturas e Identidades, ambos da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Na mesma instituição, ele coordena o Núcleo do Cuidado Humano e o Grupo de Estudos da Transdisciplinaridade, da Infância e da Juventude (GETIJ).

Qual o perfil da geração do quarto?

São crianças e adolescentes, entre 11 e 16 anos, que passam mais de 6 horas por dia dentro do quarto, usando excessivamente as redes sociais digitais, e já sofreram algum tipo de violência, como bullying e cyberbullying, geralmente ocorrida na escola. Eles têm sintomatologias de psicopatologias as mais diversas, com predominância para depressão, transtornos obsessivos compulsivos, transtornos alimentares, com predominância de anorexia e bulimia, transtorno de ansiedade, uso abusivo de álcool, de maconha ou drogas químicas e distúrbios de sono. E no campo da autodestruição, praticam a autolesão, sem intenção suicida, e alguns têm ideação suicida e tentaram suicídio mais de uma vez, esse é o perfil da geração do quarto.

Como foi feita a pesquisa?

A pesquisa foi feita entre 2017 e 2019, com alunos de escolas públicas e privadas de cinco capitais brasileiras — Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Maceió e Natal. Inicialmente, foi aplicado um questionário online para 3.115 crianças e adolescentes, e a partir das respostas foi feito um recorte com 238 jovens, dos quais a grande maioria, 70%, são de escolas privadas, e fazem parte da classe média e classe média alta. Os resultados mostraram que 75% dos 3.115 alunos estão com a saúde mental abalada, embora nem todos apresentem sintomatologia psicopatológica. Não publiquei nenhum artigo sobre o estudo porque desde o início tive a intenção de fazer um livro, que ficou pronto em 2020. De lá para cá, a obra passou por revisões, sendo publicada agora, em 2022. Ressalto que a geração do quarto não foi criada na pandemia, mas sofreu na pandemia duas vezes mais pela situação de vulnerabilidade em que se encontrava. 

A geração do quarto é um retrato da juventude brasileira?

Eu fiz um recorte, mas todas as pessoas que mantiveram contato comigo e não estiveram no recorte da pesquisa se identificaram com ela. Tenho retornos de professores e professoras que me diziam: “olha isso que você disse acontece exatamente assim na minha escola”. As pessoas se identificam porque tem uma verossimilhança. Muitas dizem: “ah, tenho um filho, uma filha, que também está no quarto”. Se você for em qualquer escola, infelizmente irá encontrar algo semelhante.

Como entender os problemas que essa geração enfrenta, quais são suas origens?

A geração do quarto é forjada, criada dentro de casa, é a família quem cria essa geração, não é a escola, a escola ajuda a manter, a fazer a manutenção do sofrimento, mas a geração do quarto é produto de uma família no quarto também, uma família isolada, adoecida, de pouco diálogo, violenta. A violência num sentido amplo, não só física, psicológica, mas uma violência simbólica, há muito movimento de violência dentro dessas casas. A violência simbólica se expressa nas nuances, na organização, no establishment, códigos de comportamentos. Por exemplo, entrevistei meninos de 15, 16 anos, que eram gays, e na casa havia uma espécie de heteronormatividade, não era dito isso, mas havia a heteronormatividade como conduta, regra. É isso que temos visto dentro dessas famílias, são famílias um tanto quanto provocativas e provocadoras dessa violência simbólica. 

É uma situação muito preocupante, não?

A experiência do quarto é terrível, porque não é uma espécie de refúgio para aquietar mente, é uma experiência de ansiedade da mente, uma mente com probabilidades das mais diversas.

A geração do quarto não é só violentada, ela também vai violentar. É importante observar isso. 

Eu me preocupo muito porque parece que a geração do quarto é meio que uma matriz de pequenos e pequenas curingas, do personagem do Batman. Nós estamos formando gerações violentas, e essa violência pode ser contra si, os índices de suicídio na adolescência não são mínimos. No Brasil, infelizmente, desde 2016, que eles aumentam, mas nós também temos criado pessoas, em países como os Estados Unidos, que quando têm acesso a armas, criam e organizam massacres como esses que vimos nas escolas americanas. O perfil e a biografia desses adolescentes se assemelha à geração do quarto. É preocupante, porque não é só o adoecimento psíquico, mas é a produção de uma comunidade psiquicamente adoecida, que tem na violência a gramática da sua sintaxe comunicacional, ou seja, a socialização é violenta.

Muitas vezes, é possível que você tenha pessoas que acham que são excelentes mães e pais, mas que imprimem uma norma, uma conduta, um modelo que impede que o outro seja o que pode ser. Vi muito isso, adolescentes dizendo “eu não consigo, para minha mãe nem para o meu pai, ser o que realmente sou, o que realmente gosto, tenho que mentir, me fazer ser o que não sou, criar um perfil falso”. A violência simbólica está muito nesse campo, no religioso, além da violência física e psicológica.

Há características em comum entre os pais dessa geração?

São pessoas que aprenderam com os modelos anteriores como devem proceder, como educar e como deve ser a relação entre pais e filhos, e eles terminam agindo em nome desse bem-estar. Eles querem o bem dos filhos, não desejam o mal, mas é um bem meio que projetado, não é um bem presente, é o bem do amanhã. Eu quero que meu filho esteja bem, mas para isso ele precisa seguir uma regra, uma norma, uma conduta, um padrão, uma organização. Se ele não segue, eu não consigo ser mãe, pai dele, não consigo estabelecer uma relação afetiva, de diálogo, e começo a entrar em conflito.

São pais que rejeitam os filhos?

Essa geração mostra que os pais, se não há um modelo estabelecido, eles não se dispõem a aprender com o que eles veem na realidade, é quase que um filho abstrato. Quando o filho real começa a emergir e mostrar suas características, os pais começam a estranhar aquilo e não entram em processo de diálogo, se afastam. É esse afastamento, esse vazio, que cria a geração do quarto. Por isso afirmo que é na matriz familiar que a geração é gerada, quer dizer, os pais não conseguem observar, de modo geral, a emergência dos humanos que eles mesmos criaram. Eles têm o humano projetado, é quase um molde de um humano. Quando vem uma orientação sexual ou um gênero que não é norma, causa um impacto. 

Claro que é menos impactante quando o filho diz que não quer ser médico, mas sim ator, pode haver resistência mas não tão intensa como quando você diz que é gay, isso causa um embaraço. Mas não gosto de condenar os pais e as mães, porque acho que eles estão envolvidos nesse processo, eles querem acertar, ao menos, os que têm paternagem e maternagem, que chamo de espírito de pai e mãe. Os que não têm, esses simplesmente geram os filhos, estão ali numa espécie de playground de criar filhos. Mas os que têm paternagem, eles vão tentando encontrar e conseguem, então nesse caso, essa fissura, esse vazio que se abriu é reduzido e a geração do quarto é compreendida.

Os pais sabem que têm um problema em casa?

Eles não têm conhecimento, porque a geração do quarto cognitivamente não tem problema com boletim escolar. Essa geração chega na universidade. Essa causa-consequência que a gente confabulou e afirmou tantas vezes que, por exemplo, vai ter problemas na escola, no rendimento escolar, não é um sinal, a geração do quarto tem um boletim escolar azul, e os pais não percebem. Eles acham que faz parte da vida estar no quarto. Muitos me dizem isso, “ah mas meu filho está no quarto já há tanto tempo que nem me dava conta”. Eles começam a se dar conta quando a criança ou o adolescente começa a se cortar, quando começam a gritar em silêncio, aí os pais alertam, mas até então, não. Chamam para jantar, quando conseguem, lembrando que pais contemporâneos vivem muito fora de casa, trabalham muito, com finalidade de dar um futuro para os filhos.  

Ou seja, o esforço dos pais para garantir uma boa estrutura familiar acaba por distanciá-los dos filhos?

É a alternativa que se deu para a família. Num país de mais de 210 milhões de pessoas, não é todo mundo que para e reflete sobre o que é ser uma família. Para os que estão abaixo da linha da miséria tem que pensar muito como se recupera. Há uma questão importante: o fenômeno da geração do quarto se dá em todas as classes sociais, mas as estratégias trabalhadas mudam. Tem muitas pessoas que usam a gravidez, por exemplo, como forma de sair de uma situação socioeconômica. Engravidar pode ser uma espécie de promoção social, ou seja, o problema é o mesmo, a dor psíquica é a mesma, mas a maneira de lidar com ela é diferente.

Os jovens não se abrem com os pais, mas não se opuseram a falar com você?

Talvez o que favorece para um pesquisador como eu é me dispor a escutar sem condenar, sem julgamento. Eu escuto para acolher e esse talvez seja um potencial que a gente possa ensinar aos pais e às mães, para que o filho diga o que pensa, o que acha, o que gosta e não gosta, se sinta confortável em ser diferente dos pais. Acho que as famílias escutam julgando, comparando e sentenciando demais. As crianças, ao contrário do que as pessoas pensam, são muito sensíveis, muito críticas, elas conseguem responder perguntas, falar sobre sentimentos com quem elas se sentem confortáveis. Além disso, uma das técnicas que utilizei, o questionário online, me trouxe muitas respostas, porque tinha perguntas abertas. Alguns dos depoimentos que apresento no livro eu não ouvi, eu li. Quando não tenho que dizer meu nome, quem eu sou, de onde sou, qual minha idade, me sinto mais livre para falar, pedir ajuda. Foram esses depoimentos que me causaram impacto e me fizeram depois entrevistar o grupo menor por meio de rodas de conversa.

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Qual o papel da escola nesse contexto?

Eu sou um profissional e defensor da escola, a escola para mim é uma grande invenção social, cumpre papel de formação, de complementaridade, sobretudo no campo do que chamamos de conhecimento científico. Ela também tem um papel social, porque trabalha com pessoas, organizações, instituições, mas ela precisa ser revisitada e reformulada nos seus objetivos matriciais. A escola não pode querer exclusivamente formar do ponto vista cognitivo. Isso é um equívoco que se manifesta sobretudo nessas escolas, que insistem num modelo de concorrência, competição, ranqueamento, na nota como resposta à aprendizagem. São escolas desconectadas com grandes problemas contemporâneos, como a sobrevivência do Planeta Terra. Temos um planeta ameaçado de desertificação, de ausência de comida, ameaçado no campo dos povos originários, então essas são preocupações que a escola deve ter.  

Outra preocupação é a diversidade, temos uma sociedade que se mostra violenta com as minorias, racista e misógina. As mulheres sofrem muito nessa sociedade. A escola não é só para discutir fórmulas químicas, biológicas, equações matemáticas, sintaxe da língua.

A escola é para ajudar a usar o conhecimento científico na melhoria da qualidade de vida das pessoas, da minha e dos outros. 

Então se ela não faz isso, se insiste na concorrência, em colocar aqueles que são bons e não são bons, os que são inteligentes e os que não são inteligentes, e ela tem insistido, ela ajuda a adoecer. É o que digo no livro. 

O que dizer aos pais e mães da geração do quarto?

Os filhos e as filhas vão precisar muito mesmo dos pais. Tem dois cenários, um é ajudar meu filho a não entrar no quarto e o outro é ajudar o filho que já está no quarto. No livro eu falo de cinco pilares: cuidado, autoconhecimento, convivência, dialogicidade e amorosidade. Trabalhar a família e a escola a partir dessas sustentações é preventivo, mas pode servir também para situações de pessoas que já estão adoecidas, neste caso, associado ao acompanhamento de um profissional da saúde mental – psicólogo, psiquiatra, psicanalista, a depender do caso.

O pilar do cuidado trata sobre a importância do cuidado consigo e do cuidado com o outro, o que implica tratar das questões relacionadas a respeito, compreensão, convivência, uso abusivo de álcool, relacionamentos abusivos, bullying, ciberbullying, uso excessivo de redes sociais digitais, entre outros aspectos.

O pilar do autoconhecimento trata sobre a biografia, a história de cada pessoa, a família. Proponho um trabalho sobre ancestralidade, que a pessoa conheça sua história de vida, conheça seu pai, sua mãe, sua opinião, seus gostos. Isso tem a ver com quem eu sou, do ponto de vista ético, e vai me dar uma segurança para enfrentar aquilo que querem que eu seja. Eu sou isso, mas querem que eu seja aquilo. Não escondo minhas fragilidades, sou amado, o que dá segurança. Não vou dizer para minha criança que a vida é fácil, um mar de rosas, que ela nunca vai encontrar desafios, mas vou ajudá-la e fortalecê-la para que ela possa enfrentá-los.

No pilar da convivência, há uma relação entre aprender a ser e aprender a conviver. Trato de situações cotidianas que evocam reflexões éticas, morais e espirituais, para as quais a compaixão, a empatia e a resiliência são habilidades necessárias e essenciais. O exercício da dialogicidade é realizado quando as pessoas aprendem a falar o que pensam e sentem, mas entendem que o que pensam e sentem não é a última palavra sobre a verdade. O pilar da amorosidade é tratado com reflexões e ações. As reflexões geram as ações, e as ações não são realizadas de modo mecânico.

Os pais podem aprender com os filhos?

O livro não tem que ser uma pedra para atirar nos pais e na escola, tem que ser um acalanto. Eu acho que a geração do quarto é tão potente que nos possibilita reaprender a viver, tenho grande esperança na geração do quarto, a mesma geração que é violenta me ensina novos modos de amor, não vejo a geração como fracassada, que não deu certo, acho um absurdo dizer que é uma geração parasita, “nem-nem”. Obviamente ela traz todas as mazelas, não foi a geração do quarto que inventou o abuso do álcool, a violência, esses foram códigos sempre usados, mas a geração do quarto está nos dando outras alternativas, como maior preocupação sobre consumo, meio ambiente, empoderamento das meninas, orientação à questão de gênero. Essa geração tem muita coisa a nos mostrar, não precisamos ter medo, podemos aprender com elas. 

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