A vida parece ter voltado ao “normal” no Brasil, com o avanço da vacinação e a queda no número de mortes e contaminações por Covid-19, apesar do aumento de casos pela variante delta. Atividades de comércio e serviço têm funcionado em horário regular, grande parte das escolas reabriram e as empresas preveem, aos poucos, a volta ao trabalho presencial. Para muitas mães e pais, pensar nesse retorno é algo que os deixa apreensivos, por ter de retomar uma rotina que prejudica a dinâmica com os filhos em muitos sentidos. Essa porém não é uma opinião unânime.
As famílias ouvidas pela Canguru News mostraram ter diferentes visões sobre o assunto, a depender do contexto e da estrutura de cada casa. Algumas disseram preferir seguir no trabalho remoto. Já outras afirmaram se sentir felizes e aliviadas por poder ir até o trabalho e ter um tempo reservado somente para as atividades profissionais, desde que com certa flexibilidade de horários (leia os relatos abaixo). Apesar dos diferentes cenários, no geral, estudos mostram que o home office não será extinto – longe disso.
Segundo pesquisa global feita pela consultoria empresarial norte-americana Mckinsey, com mais de 5 mil funcionários, 75% dos entrevistados afirmaram querer seguir trabalhando de casa entre duas a três vezes por semana. Outro levantamento global, realizado pela Harward Business Review, revelou que 32% das pessoas entrevistadas, especialmente mães com filhos pequenos, não querem mais voltar ao escritório.
Outros estudos já mostraram que mães com filhos pequenos estão entre as mais prejudicadas no mercado de trabalho. Muitas, inclusive, chegam a pedir demissão e deixam de trabalhar para cuidar das criancas, diante da falta de apoio de seus empregadores.
As vantagens do home office
“Acho importante ressaltar que a vida não está normalizada na maneira como a gente costumava viver. Tem famílias que ainda não podem contar com a escola de forma 100% ou que tinham ajuda em casa que ainda não podem voltar a ter, com avós e tios, por exemplo, por questões sanitárias. Cada família esta olhando para a sua realidade. Agora é um fato é que muitas pessoas, com filho ou não, descobriram essa possibilidade do trabalho remoto, que economiza o deslocamento diário e permite uma flexibilidade. A gente vê como tendência esse modelo híbrido, em que se pode optar por ir ao escritório alguns dias e ficar em casa outros”, afirma Nathalia Goulart, mãe da Nina, 5 anos, e do Tom, 8, e Head de Parcerias da Bloom, startup que oferece serviço de apoio a mães e pais que trabalham.
Nathalia ressalta que o home office trouxe muitas vantagens à rotina familiar. “Conversamos com várias pessoas que diziam, por exemplo, que fazia muito tempo que não tinham refeições seguidas com os filhos, o que se tornou realidade com o trabalho remoto, e agora não querem abrir mão disso”, destaca a especialista. Ela ressalta, porém, que criar filhos exige uma rede apoio significativa, seja da escola, seja da família seja ajuda profissional.
“São muitos os benefícios do trabalho remoto, mas uma série de regras precisam estar ajustadas para que de fato isso funcione, se não vira uma sobrecarga excessiva de tarefas da casa, das crianças e do trabalho, que foi o que aconteceu na pandemia”, afirma Nathalia.
No áudio abaixo, Nathalia Goulart fala sobre o que as empresas podem fazer para permitir que colaboradores possam conciliar melhor carreira e família
Retorno às empresas deve ser planejado
A advogada Camila Antunes, mãe da Bel, 5 anos, e João, 3, e co-fundadora de Filhos no Currículo, consultoria focada na criação de ambientes de trabalho melhores para profissionais com filhos, lembra que são muitas realidades diferentes de famílias no Brasil. “Não é um conto de fadas o que a gente viveu. De repente, fomos colocados em casa, sem escola, sem ajuda. Poucas pessoas estavam preparadas para viver em home office e puderam contar com uma rede de apoio para conseguir trabalhar de forma mais produtiva”.
Ainda assim, houve ganhos para muitas empresas, inclusive, aquelas que duvidavam da produtividade de sua equipe no trabalho remoto.
“Após um ano e meio nesse regime, muitas empresas tiveram bons resultados. Querendo ou não, elas vêm sobrevivendo à pandemia, claro que com muita sobrecarga para as mulheres, com impacto na saúde mental delas, devido a essa economia do cuidado invisível”, analisa Camila.
Ela ressalta que, assim como as famílias, as empresas também foram pegas de surpresa e não tiveram como planejar essa adaptação ao modelo remoto. Agora, porém, há tempo para planejar esse retorno, ele pode ser feito de forma gradual e a partir da escuta dos colaboradores para entender a realidade de cada um, respeitando suas necessidades. “Algumas vão voltar em modelo híbrido, prevendo uma ou duas vezes por semana de homeoffice, isso depende muito da cultura da própria empresa e também da área de atuação. Fábricas e lojas de comércio como farmácias têm um perfil que exige uma presença maior”, pontua a co-fundadora.
A seguir, leia depoimentos de quatro mães e um pai, moradores de São Paulo (SP), Prudentópolis (PR) e Goiânia (GO), sobre a volta ao trabalho presencial. Para cada família, a saída encontrada para conciliar carreira e filhos é diferente.
Em home office, casal diz poder dividir melhor as demandas com os três filhos
Para a musicista Mônica Neiva de Souza Silveira, 37, e o marido, Diógenes Aparecido Barbosa Silveira, 41, técnico em eletrotécnica, que vivem em Goiânia (GO), o home office permite dividir melhor os cuidados com os três filhos: Cauã, 9 anos, Amora, 3, e Aimê, 1 – e as tarefas profissionais.
“Existe uma necessidade de ensino com o mais velho, já que optamos por manter ele nas aulas online, e o fato de meu esposo trabalhar de casa me favorece, ajuda a dividir a carga. Enquanto ele assume os estudos com Cauã eu fico com as meninas. Se eu preciso fazer alguma live ou tenho outras obrigações, nos organizamos de forma que ele consiga olhar as crianças. Já quando está muito atarefado, eu pego todas as responsabilidades da casa e ele trabalha. Às vezes, preciso produzir de madrugada, mas, para nossa realidade, o home office foi muito importante, gostaríamos de seguir assim”, relata Mônica, que também desenvolve trabalhos com artes plásticas.
Diógenes destaca a flexibilidade de horários como uma vantagem do home office, ainda que não tenha mais direito às horas extras remuneradas, como tinha antes. “Se é um dia corrido e preciso, por exemplo, levar o nosso filho à escola de artes, começo a trabalhar mais cedo e retorno antes do horário de almoço para compensar o tempo que estarei fora”. O pai diz que esse período em casa lhe possibilitou acompanhar de perto o crescimento dos filhos, principalmente da filha menor, Aimê, visto que, muitas vezes, quando ele saia para trabalhar, as criancas estavam dormindo, e quando ele voltava, também. Fora as viagens durante a semana, que às vezes surgiam.
“Eu não tinha contato nenhum com meus filhos. Agora, eles me veem todos os dias. Acordam e podemos conversar, arrumo o café, aumentamos o convívio. Acredito que a empresa deve manter uma forma híbrida, não gostaria que exigissem a volta ao trabalho presencial”, declara Diógenes.
Para professora de inglês e mãe de quatro, ‘a volta ao presencial foi um alívio’
Mãe de quatro filhos e professora de inglês, Aline de Oliveira Fevereiro, 37 anos, diz que aguardava com ansiedade o retorno presencial da escola e de seu trabalho. Ela vive com o marido e as crianças – Miguel, 11 anos, Mariano, 8, Matias, 6, e Miriam, 3 – em Prudentópolis (PR), e dá aulas para o ensino médio em um colégio regular e também em uma escola de idiomas, além de atuar como empreendedora, vendendo fraldas ecológicas.
“Para mim, estava insustentável ficar em casa dando aulas para meus alunos e com as crianças no ensino remoto. Ser professora dos meus próprios filhos, em idades diversas, é impossível, as demandas são totalmente diferentes”, relata Aline.
Ela explica que Miguel, o mais velho, tem transtorno de déficit de atenção (TDA) e exige um acompanhamento mais próximo. “Temos de ficar do lado dele o tempo todo para que faça as atividades. Meu marido ajuda quando pode e temos também uma senhora que fica com as crianças, mas foi bem complicado. Agora, Miguel vai para a escola de manhã e os outros três vão à tarde, período no qual eu também saio para trabalhar. Foi um alívio para mim essa volta ao trabalho presencial”, afirma a professora.
Pesquisadora diz estar feliz com o retorno à universidade
Pedro tem dois anos e três meses e, desde que nasceu, em maio de 2019, sua mãe, a professora universitária e pesquisadora Carla Marins Silva, 39 anos, ficou a maior parte do tempo de home office. E o que para muitas mães poderia ser o ideal – poder trabalhar de casa e cuidar do filho – para Carla não era bem assim.
“Eu emendei a licença-maternidade com férias e o recesso de fim de ano. Em fevereiro de 2020, cheguei a ir algumas semanas à Universidade de São Paulo (USP), mas logo veio a pandemia e ficamos em home office. Porém, nada diminuiu, seguimos com as mesmas cobranças de produção científica e docência. Quando você está no trabalho, não se preocupa com roupa para lavar, comida a fazer, e bem ou mal seu filho estará aos cuidados de alguém. Mas se estamos todos em casa, há uma sobrecarga grande de trabalho”.
Carla voltou a frequentar a universidade no dia 23 de agosto e apesar do privilégio de poder ter trabalhado de casa todo este período, ela diz estar feliz pela volta ao trabalho presencial. “No início, a sensação que eu tinha era que não queria voltar, mas agora vejo que foi a melhor coisa que poderia me acontecer. Tenho demandas de produção de pesquisa, preciso escrever e publicar artigos, e naquele ambiente de casa com filho pequeno, tendo que dar conta das demandas domésticas, mesmo com a ajuda da minha mãe, não é o mesmo que estar no meu escritório. Em termos de produtividade, consigo produzir muito mais agora. Se alguém perguntar se quero ficar em home office diria que não, quero ajustar minha vida para que meu filho fique bem, mas prefiro seguir no presencial”, relata a professora.
“No home office, você não é um profissional ótimo, tampouco é uma dona de casa ótima, é uma sensação angustiante”, desabafa universitária.
Ela ressalta a importância de estar junto do filho, nos primeiros anos de vida, para acompanhar o seu desenvolvimento, mas diz que sentia uma certa ambiguidade pelo prejuízo ao lado profissional. “Criei até um perfil no Instagram, @pedrinhoteca, para compartilhar atividades lúdicas, sensoriais e de leitura, que desenvolvia com Pedro, mas sentia que estava criando um buraco no meu lado profissional. Não digo que é certo ou errado, mas é o que penso. Tenho vínculo com a USP, emprego que todo professor e pesquisador gostaria de ter, e a sensação que dá é que no home office você não é um profissional ótimo, tampouco é uma dona de casa ótima, é uma sensação angustiante”, desabafa a mãe.
Carla diz que agora se sente mais tranquila em relação ao trabalho e ao filho também. “Matriculamos Pedro em uma escola à tarde e minha mãe cuida dele de manhã. Poder contar com uma rede de apoio nessas horas é fundamental. A flexibilidade de horários na USP também ajuda muito, visto que não bato ponto sair mais cedo ou chegar mais tarde, se preciso, e também escapar na hora do almoço, já que moro perto”.
Presencial afetou saúde mental de bancária, mãe de duas meninas
Marina – nome fictício para designar uma bancária que prefere não revelar sua identidade por medo de represália – tem duas filhas, de 10 e 5 anos, e vive em São Paulo. Ela diz que trabalhou de forma presencial durante quase toda a pandemia. Recentemente é que conseguiu negociar com o chefe para alternar uma semana trabalho de casa e outra do banco. “No início, foi bem difícil para mim ter de seguir no presencial, enquanto a maioria dos meus colegas, inclusive o meu marido, que também é bancário, trabalhavam de casa”, ressalta a profissional.
Embora o banco tenha dado orientações gerais para o trabalho remoto durante o isolamento social, ela revela que cada diretor podia tomar sua própria decisão. “O meu diretor não aceitava o home office, apesar de dizer que isso é um direito, nas entrelinhas e piadas, ele criticava esse modelo. Ele forçou a volta ao trabalho presencial já no mês de maio do ano passado e eu tive que ir. Mas para mim foi complicado aceitar essa diferença de tratamento entre funcionários de um mesmo banco. Eu queria estar em casa para auxiliar o meu marido. Me causou muita frustração, mexeu bastante com minha cabeça e cheguei a procurar ajuda, fiz terapias para poder aceitar essa condição”, recorda a bancária.
Após um ano no presencial, ela decidiu que este ano queria acompanhar de perto os estudos das filhas que seguem online, principalmente, a mais nova, que está em fase de alfabetização.
“Percebi que não posso ficar refém dessa situação. Sei a profissional que sou e o valor que tem o meu trabalho. Então falei para o meu chefe que precisava ficar mais tempo com minha filha, que está aprendendo a ler e escrever. Fui bem transparente com ele e consegui impor minha necessidade. As conversas e terapias que fiz me ajudaram bastante”, comenta a bancária.
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