O jornal Folha de São Paulo ouviu três especialistas – um pediatra, uma infectologista e uma educadora – aos quais fez a seguinte pergunta: “A volta às aulas em São Paulo deve ser presencial mesmo com o agravamento da pandemia?” Daniel Becker, pediatra, sanitarista e médico do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ e da Soperj, e Livia Esteves, infectologista pediátrica do Departamento de Pediatria Ambulatorial da Soperj (Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro), acreditam que sim. Já a professora Bebel, deputada estadual (PT-SP) e presidenta da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), avalia ainda não ser o momento para a volta das aulas presenciais. A seguir, conheça os argumentos dos três especialistas.
Sim, as aulas presenciais devem voltar
Daniel Becker e Livia Esteves ressaltam que a pergunta mais adequada seria: “quando as escolas devem fechar?”. Eles dizem que “evidências confiáveis já demonstram claramente o menor papel da criança na transmissão do vírus e a segurança —a alunos, professores e funcionários— das escolas que praticam medidas de mitigação”.
Crianças adoecem menos – Segundo os especialistas, como as notícias publicadas pela mídia focavam mais nos adultos, a sociedade não sabe o que aconteceu com as crianças e adolescentes em 2020. No geral, esse público adoeceu pouco e sem gravidade pela covid-19. “Mas adoeceram física e emocionalmente pelo convívio com famílias sobrecarregadas e angustiadas, pelo exílio da natureza, excesso de telas e perda da socialização. E também pela falta da escola, cuja importância vai muito além do ensino formal. Ela é fundamental para a proteção da criança, seu desenvolvimento integral e a garantia de seus direitos.”
Aumento das desigualdades – Becker e Esteves lembram que o Brasil é um dos poucos países que mantiveram escolas públicas fechadas durante quase todo o ano, afetando principalmente as famílias mais vulneráveis. Os prejuízos para a infância, famílias, economia e sociedade como um todo são incalculáveis, podendo interferir na proficiência, nas capacidades e habilidades dos alunos. Dificuldade de acesso ao ensino remoto, evasão escolar e desigualdade de oportunidades, atingindo em cheio a saúde, empregabilidade e expectativa de vida dos jovens são ainda outros agravantes apontados no artigo
Exemplos do exterior – Os especialistas citam como exemplo experiências internacionais que mostram que escolas que praticaram as medidas eficientes de contenção da transmissão não tiveram alta circulação do novo coronavírus nem impulsionaram a pandemia. Eles explicam que foram raros os surtos na escola, exceto casos individuais, cuja contaminação, no geral, ocorreu fora da escola.
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Foco na transmissão comunitária –O que pode levar a ocorrências dentro da escola é uma transmissão comunitária alta, daí a necessidade dos governantes ficarem atentos a atividades não essenciais e que provocam aglomerações. “Essa é a mais importante medida de proteção escolar: a redução da circulação viral na comunidade”, afirmam o pediatra e a infectologista.
Garantia dos protocolos – As autoridades públicas e a comunidade devem iniciar intervenções integradas e enérgicas agora para garantir que as escolas estejam em boas condições estruturais e com equipamento e treinamento adequados para a implementação de protocolos de mitigação. “Isso é fundamental à segurança de todos: alunos, famílias, professores e funcionários —que devem ter voz nesse processo”.
Função social das escolas – Para Becker e Esteves, escolas abertas aumentam a circulação de pessoas e do vírus, mas em menor proporção que outras atividades, visto que são locais supervisionados, com medidas de proteção mais efetivas. Além disso, as escolas têm um caráter social essencial e mantê-las fechadas e o restante dos setores econômicos abertos é uma estratégia gravemente equivocada, dizem eles, com consequências desastrosas para crianças, famílias e sociedade.
Fechamento de escolas deve ser última opção – “Se o ritmo de vacinação for lento; se o governo federal seguir sabotando as medidas de controle; e se boa parte da população continuar nos mesmos níveis de descaso, com o agravante potencial de uma mutação mais transmissível, talvez não consigamos abrir escolas. Mas o seu fechamento deveria ser o último recurso a ser usado para o controle da pandemia de Covid-19. É hora de a sociedade brasileira parar de negligenciar as suas milhões de crianças, prioridade absoluta nos termos da nossa Constituição”, concluem os especialistas.
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Não, as aulas presenciais não devem ser retomadas
A pandemia de Covid-19 impactou todas as dimensões da vida humana, no Brasil e no mundo. Ao desencorajar as interações sociais em virtude do elevado risco de contágio, comprometeu as atividades que têm no encontro sua razão de ser. Nem a demonstração de afeto contida num abraço passou incólume.
A professora Bebel avalia que não há condições para um retorno seguro às aulas em São Paulo e no Brasil. “A educação foi muito afetada por essa situação, que ensejou o fechamento de escolas. Afinal, como pontua Paulo Freire, ela se realiza, enquanto prática da liberdade, num processo intersubjetivo de estudantes e professores. Reabri-las, todavia, contraria as evidências que deveriam pautar as decisões políticas”, diz.
Garantia de direitos – Ela afirma que para um retorno seguro é preciso garantir o direito à vida, à saúde e à comunidade escolar, por meio de melhorias na infraestrutura das escolas e uma campanha pública de vacinação contra a Covid-19. É preciso também uma sólida relação de confiança entre Estado e sociedade civil, como em qualquer democracia séria, o que, na opinião de Bebel, não ocorre no estado de São Paulo.
Infraestrutura deficiente – “Professores não têm prioridade na vacinação e o cenário nas escolas é estarrecedor”, declara a professora. Ela cita um diagnóstico do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), feito em agosto a pedido da Apeoesp, que concluiu que 82% das escolas não têm mais de dois sanitários para uso dos estudantes, e 48% não têm sanitário acessível para pessoas com deficiência; 13% não têm quadra ou ginásio; e 11% não têm pátio para atividades ao ar livre. O mesmo estudo recomendou intervenções nas escolas, em especial sinalização e ventilação dos ambientes e redução do número de alunos por sala. Segundo Bebel, ele foi entregue ao Poder Público, porém foi ignorado em tom negacionista pelo secretário estadual de Educação, Rossieli Soares.
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Falta de dados sobre educadores – A presidente do sindicato afirma que até o momento, a secretaria não divulgou quantos profissionais da educação estão no “grupo de risco”, sem condições para um “retorno seguro”. Um levantamento da Apeoesp, feito entre seus mais de 180 mil associados indica que cerca de 15 mil professores são idosos e deve-se levar em conta ainda quantos têm comorbidades como obesidade, diabetes e hipertensão.
Transmissão em escolas do Reino Unido – Bebel lembra que recentemente,foi divulgada uma pesquisa realizada pelo sistema público de saúde do Reino Unido, que concluiu que os colégios provocaram três vezes mais surtos de Covid-19 do que hospitais naquele país. Segundo o estudo, 26% dos grupos de infecção analisados estavam ligados às escolas, enquanto 8% das infecções foram relacionadas a hospitais.
Argumentos falhos – Para a educadora, há muita desinformação e cinismo na defesa da reabertura das escolas, ao comparar, por exemplo, escolas (fechadas) a bares (abertos e lotados). “Um erro não justifica outro. Se o poder público não foi capaz de fazer quarentenas para valer, não pode agora flexibilizar o retorno às aulas como se a pandemia tivesse acabado”.
Problemas de saúde não são causados pelas escolas fechadas – Bebel analisa que faltam estudos consistentes para sustentar a tese de que os quadros depressivos em crianças são causados pela falta de aulas presenciais. “Não é a falta de aulas presenciais que causa problemas de saúde mental, mas sim a indignidade de uma vida marcada pela privação de direitos fundamentais, tais como moradia adequada e saneamento básico, situação cotidiana de milhões de estudantes brasileiros. Onde estavam os arautos do bem-estar desses jovens durante todo esse tempo?”, questiona a deputada.
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