“O jovem contemporâneo sabe que a autolesão é um recurso que existe, então, ele vai lá e se corta ou se machuca. Não se pode subestimar esse chamado de ajuda na adolescência. É preciso olhar para o seu filho, filha ou filhe e colocar no colo, acolher”, alerta o hebiatra Felipe Fortes, especialista em saúde do adolescente.
No atendimento clínico, ele diz ter recebido um grande número de jovens adoecidos, com ansiedade, depressão e irritabilidade, e avalia ser fundamental neste momento ficar atento a mudanças de humor e de comportamento dos filhos ‒ se eles se afastam dos amigos, passam a ficar mais tempo isolados, usam roupas de manga comprida mesmo no calor e têm queda no rendimento escolar, por exemplo – é preciso procurar ajuda profissional.
Comportamentos autoagressivos têm se tornado cada vez mais frequentes na percepção de médicos, pais e professores. Um documento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), de 2019, já falava do aumento dessa prática que se agravou ainda mais na pandemia, quando os adolescentes, trancados em casa, no quarto, atrás de um computador, não puderam desenvolver hábitos sociais e emocionais importantes para o seu bem-estar mental.
“Houve um empobrecimento de repertório, da resiliência e da capacidade de pensar em múltiplas soluções para sobrepor a diversidade da vida”, diz Felipe, em entrevista em vídeo para a série Conversas sobre parentalidade, da Canguru News.
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Segundo o médico, o isolamento social impediu os jovens de se descolar dos pais, como é habitual, para estar junto aos amigos, sair e frequentar a escola, numa fase em que estão amadurecendo e precisam conviver com seus pares para construir a própria individualidade enquanto seres humanos.
“E isso foi muito ruim para a formação da saúde emocional dos adolescentes, principalmente dos que estavam entrando na puberdade, com 10, 11 anos, e precisavam construir seu potencial adolescente mas não puderam fazê-lo”, diz o especialista.
Estima-se que seis a cada dez adolescentes já provocaram algum tipo de autolesão não suicida. A prática é mais comum na faixa etária dos 10 aos 25 anos e se caracteriza por um dano superficial ao corpo ‒ como cortes, mordidas ou mesmo batida na cabeça ‒ que visa transformar uma dor emocional em física.
Embora muitos adultos vejam a autolesão como algo “bobo” e “simples”, esse é um problema sério que inspira cuidados e pode ser precursor de ideações suicidas ou o suicídio em si. “Não é uma bobagem, é um pedido de ajuda: ‘por favor, me olhe que eu estou sofrendo’. Os jovens estão sofrendo muito”, relata o hebiatra.
Os índices elevados de autolesão, no geral, estão relacionados ao aumento de casos de depressão, ansiedade, baixo autoestima e transtorno de personalidade, e podem ser motivados por fatores diversos como abuso físico e sexual, maus-tratos, bullying, cyberbullying, separação dos pais, ciclo familiar instável e precário e condições sociais desfavoráveis.
“Temos de dar uma atenção especial para essa juventude, ser muito empático com eles, para poder entender o que está acontecendo”, avalia o médico, que destaca em especial jovens negros e LGBTQIA+ como os mais atingidos por esse problema de saúde mental. Abaixo, o especialista fala sobre como conversar com os filhos, a importância de dar limites para o uso de internet e redes sociais e incentivar a prática de atividades físicas.
Como se manter próximo ao filho
Para ajudar o filho adolescente, é importante se mostrar disponível ao diálogo de modo que o jovem sinta haver abertura para uma conversa sincera. Porém, para muitos pais, estabelecer essa comunicação é um grande desafio. Segundo Felipe é importante construir um vínculo se possível desde a infância, mas se isso não foi feito, não significa que não possa ser resgatado na adolescência.
Ele reconhece que temas como sexo e preservativos, por exemplo, podem ser difíceis e constrangedores de abordar, tanto para os pais quanto para os filhos, mas estímulos vindos de propagandas de televisão, vídeos, filmes e outros meios podem ser um bom ponto de partida para puxar um papo.
Felipe sugere estar na rede social dos filhos, acompanhá-los de perto e aproveitar oportunidades a partir de uma publicidade de carro com mulheres, por exemplo, para questionar por que são sempre elas que fazem esse tipo de anúncio e por que há essa exploração do corpo feminino. “Pronto. Já foi a discussão. Mesmo que o filho não queira falar e diga algo como “ai, pai, nada a ver”, aquilo ficou como uma brecha para, de repente, um outro dia, ele conversar contigo sobre aquilo, ou para que reflita sozinho ou fale com um amigo sobre isso. O que a gente conversa, fica.”
E para fortalecer a relação e ganhar a confiança do filho, Felipe diz que mostrar nossas vulnerabilidades pode ser um bom caminho. “Como em qualquer amizade, a gente vai lá, conta uma coisinha nossa, aí a pessoa conta uma outra coisa dela, aprofunda algum assunto, fala do dia a dia, revela uma característica e leva a outra pessoa a fazer o mesmo, num jogo de bate-volta.” Caso contrário, não tem como os filhos contarem tudo pra gente se a gente não conta nada nosso para eles, complementa o médico.
Ele sugere, por exemplo, falar como foi o dia no trabalho, se houve algum estresse com o chefe e como reagimos a isso, pedindo inclusive a opinião do filho para as nossas atitudes. Mostrar fotos antigas, contar alguma experiência da adolescência e mesmo revelar uma transgressão também são maneiras de se aproximar dos adolescentes.
A importância de dar limites
Para Felipe, os pais, em geral, têm dificuldade de colocar limites nos filhos, de frustrá-los, de dizer que não vão mais ficar na internet ou no videogame até tarde da noite. “Isso é a coisa mais preocupante na organização emocional de um jovem. O adolescente precisa de limites, que sejam carinhosos, afetuosos, claro, mas ele precisa de bordas para que não se esparrame e se perca.”
Prática de atividade físicas
“O adolescente é muito corporal, ele precisa mexer o corpo, fazer esporte, dança, teatro, alguma atividade artística, sair para caminhar, entrar em contato com a natureza. A natureza é um lugar de múltiplos estímulos e é isso que o jovem precisa agora.” Segundo Felipe, ao frequentar grupos variados, o adolescente pode encontrar outros adultos de referência, outros exemplos de vida, de situações adversas ou felizes, boas ou ruins, que lhe servem de repertório para encontrar soluções para as suas dificuldades.
População negra e LGBT
Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, há um impacto desproporcional do suicídio entre grupos em situação de vulnerabilidade. Estudos mostram que jovens pretos têm 45% mais chances de se suicidar do que a população não preta. E a população LGBT tem um risco cinco vezes maior de comportamento suicida, recorda Felipe, que chama a atenção para que os pais se atualizem, estudem e ajudem a diminuir as violências em relação a essas duas populações mais vulneráveis.
“A adolescência é um lugar em que o cérebro abstrato está pronto para refletir sobre o mundo, sobre o nosso estar no planeta, sobre política, religiosidade, relacionamento interpessoal, os jovens estão prontos para conversar sobre isso. Às vezes, eu acho que a gente tem dificuldade de encarar que nosso filho cresceu, acha que ele ainda é uma criança, um bebezão, e aí não quer conversar sobre as coisas mais difíceis. Bora conversar sobre as dificuldades do mundo. Eles já estão nesse lugar.”