Por Adriana Amaral* ‒ Entre festejos de Natal e Réveillon e início de um novo ano, há famílias vivendo um grande luto, uma perda significativa: a reprovação escolar. O Censo Escolar de 2022 aponta aumento nas taxas de repetência e evasão escolar na rede pública, que chegaram a 4,2% e 0,5%, respectivamente. Na rede privada, o resultado das reprovações oscilou de 0,7% para 0,8%, e de abandono de 0,2% para 0,1%. Ainda que os números possam parecer pequenos, eles são capazes de fazer grandes estragos.
Lembrei de uma conversa com um ex-colega de turma, pessoa bem sucedida, que confessou carregar por anos o fantasma da repetência. Mesmo aos 40, na época, falava daquele evento com tamanha dor e trauma que eu pude sentir o peso. Burrice, vergonha, sentimento de incompetência. Tantos atravessamentos na confissão sobre a repetência escolar. Ao contar que meu irmão precisou repetir ano por causa do intercâmbio na Austrália, acredito que meu amigo tenha sentido um conforto para dividir seus desacontecimentos escolares.
Quando contamos algo podemos causar ressonâncias inimagináveis. As palavras nos atingem, nos mobilizam e libertam verdadeiros processos de reflexão.
O poder das palavras
“A linguagem não é inocente”, considera Tom Andersen, psiquiatra e terapeuta relacional sistêmico do Institute of Community Medicine University of Tromso, na Noruega, nome expressivo da terapia de família. Segundo o autor, falar é informador e formador. Palavras nos influenciam. Tom Andersen fala sobre o lugar da linguagem no processo terapêutico, mas pego emprestado aqui para outros espaços, como a família e a escola.
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Pensando em como as palavras afetam, o inferno já se instala ao analisarmos a construção da palavra repetir. O fantasma da repetência está contido integralmente do vocábulo de forma sentenciadora: se é repetir, o ano que nasce não me oferece nada de novo, só o igual de forma replicada.
O aluno repetente fará “de novo” o ano escolar perdido, muitas vezes na mesma escola, com os mesmos professores, mesmo método, mesmos recursos (ou falta deles), juntamente com sentimentos de menos valia, decepção, abalos sísmicos de alto grau em seu amor próprio. Os pais de escola particular repetirão um pagamento, acrescido de reajustes, e, vergonhosos, tendem a diminuir sua participação na comunidade escolar. Já os pais da escola pública ficam desorientados vendo seus filhos cada dia mais marginalizados, alimentando os números perversos da evasão escolar.
Repetir seria uma oferta generosa para alguém que precisa RE-agir?
Estar no mundo é uma eterna busca de significados e isso impacta demais nossas relações. Um jovem e uma família que perdem um ano escolar são privados de bem mais que um ano de escola e a repetência não ensina nada a não ser estar no mesmo lugar. Seria interessante se pudéssemos averiguar como cada parte entende a palavra repetir. Essa é uma pergunta a ser respondida em conjunto.
Se os nossos PRÉ-conceitos são formados pela maneira como vivemos nossas vidas, se me oferecem uma palavra que me impede de viver novas experiências, emboto um auto-preconceito, o de ser insuficiente e há aqui um risco enorme, a confirmação de que sou incapaz de trilhar novos caminhos, por tanto, incompetente.
Não se RE-age sozinho. Quem perde precisa também ganhar. Está nas mãos de um conjunto de ações que possam tornar a perda, um ganho. A responsabilidade não está apenas nas costas de quem não atingiu uma meta. A perda de um é a perda de todos os envolvidos, mas não pode paralisar no sentimento de fracasso. Não é justo que o aluno seja punido como único responsável.
Na busca de um novo sentido para a repetência, boas conversas, escuta atenta e negociações. A mesa redonda, a circularidade das emoções, identificações de forças, olhos nos olhos. Neste início de ano, vale celebrar o esforço, o encorajamento e o amor responsável. Ninguém precisa estar sozinho ou fingindo que nada aconteceu, que fique uma imagem antiga e ainda válida de que a união faz a força, que o ano não repita nada, que essa união construa algo novo, a partir do antigo. RE-ciclagem das emoções e das perdas para novas possibilidades de enfrentamento, nunca solitário. Nesse caso, destaco os conhecidos versos de um outro Tom, brasileiro:
— Fundamental é mesmo o amor
— É impossível ser feliz sozinho…
Música Wave, de Tom Jobim.
*Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião da Canguru News.
*Adriana Amaral é terapeuta relacional, terapeuta familiar e mestre em psicologia psicossomática