Para as crianças, a imagem dos avós geralmente está associada a memórias boas – um delicioso prato de comida ou mesmo uma brincadeira divertida. Para os pais, porém, os avós são vistos muitas vezes como aqueles que “atrapalham” a educação dos filhos, ao mimá-los demais e até “estragá-los”, devido ao excesso de agrados. E no caso dos avós que participam ativamente dos cuidados das crianças, podem surgir ainda mais divergências, principalmente, quando vivem todos juntos, o que não raro acontece.
Nas últimas décadas, tem surgido uma nova configuração familiar no Brasil, que consiste em reunir em uma mesma casa três gerações – avós, filhos e netos – ficando, muitas vezes, os idosos incumbidos de educar os pequenos e mesmo de lhes dar suporte financeiro. “Esse suporte pode envolver a coabitação, por exemplo, em situações em que pais abrigam filhas e netos, temporariamente ou não, após o rompimento de uma união conjugal. Ou ainda em casos de desemprego dos pais que acarretam grandes dificuldades de manutenção financeira do próprio domicílio”, indica a pesquisa Arranjos domiciliares multigeracionais: perfil e aportes em domicílios compostos por avós e netos.
Esse avós que assumem o papel de educar as crianças são chamados de “avós cangurus”. “São aqueles que além da parte de diversão, da visita, de querer fazer o prato favorito do neto e relembrar brincadeiras de infância, ficam com as obrigações”, explica a psicóloga clínica e orientadora familiar, Cristiane Rayes, de São Paulo.
Ela diz que nesse contexto a convivência diária pode ser um desafio para muitas famílias, devido à diferença de valores e pontos de vista a respeito da educação das crianças. “Com frequência recebo no consultório queixas dos pais em relação aos avós que dizem frases como: ‘Minha mãe faz tudo errado, não me obedece, está deseducando minha filha, me contradizendo. Só faz o que ela quer'”.
“Minha filha acha que sou uma irmã ou madrinha”, desabafa mãe
É o caso de Carol, nome fictício da mãe solo de Sophia, 10 anos, que pediu para não ser identificada. Ela vive com os pais e conta com a ajuda deles para criar a filha, visto que trabalha fora em tempo integral. “Saio para trabalhar às 8h30 e volto às 18 horas e Sophia come super mal o dia todo. Além disso minha mãe deixa ela dormir até as 10 horas da manhã, sendo que ela deveria acordar mais cedo para estudar e participar das aulas da escola à tarde. Agora, eu faço as tarefas e estudo com ela à noite”, relata a mãe, que diz estar preocupada com a má alimentação da criança e a falta de rotina para as atividades escolares. Ela reclama também do fato da filha ignorá-la e só enxergar os avós como autoridades. “Ela acha que sou uma irmã ou madrinha”, desabafa. A psicóloga comenta que em situações como essa, procurar dialogar com os pais e propor novas soluções pode melhorar muito a dinâmica familiar. A seguir, Cristiane dá uma série de orientações para que a família tenha uma convivência saudável – e as crianças não sejam prejudicadas.
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Como pais e avós podem chegar a um acordo?
Investir na conversa – A psicóloga comenta que em casos de descuido com a alimentação da criança, a avó deve entender as implicações à saúde que a neta pode sofrer pela má alimentação, mas sem ser culpada por isso. Definir culpados nesse processo ou obrigar outra pessoa a agir de determinada maneira, traz sentimentos ruins e gera conflitos muitas vezes desnecessários. “É função da mãe explicar à avó a importância da dieta para a neta, segundo recomendação médica, e expor a ela a importância de sua ajuda nesse processo. Além disso, nessa faixa etária, a criança também está mais consciente sobre a sua alimentação e pode desenvolver o autocontrole.” Segundo Cristiane, à medida que a família inteira toma consciência da necessidade de seguir uma boa alimentação, a avó não ficará com dó da neta, a neta não pedirá bolo no lanche, porque entenderá que não é para comer, e a mãe não culpará a avó”, explica.
“a avó precisa perceber as consequências, mas sem ser culpada por isso”
Entender o outro lado – Cristiane ressalta que os pais também têm de lembrar que nenhuma avó deseja o prejuízo do neto. “Talvez seja a maneira que ela encontrou para transmitir o amor, a forma como ela sabe e sempre fez, até quando educou a própria filha”, afirma. Ela sugere que a mãe procure entender por que a avó age desse modo. “Pode ser que ela não suporte ver a neta frustrada e por isso permite que ela coma o que quer”, diz.
Criar um “plano de ação” em família – A psicóloga destaca que juntas, elas podem desenvolver estratégias para modificar essa dinâmica familiar. Avó e neta podem pensar em um cardápio com pratos saborosos que não prejudicam a saúde, como uma salada que inclua os vegetais aceitos pela criança. A mãe pode assumir a definição do prato do jantar e/ou ficar responsável por fazê-lo em algum dia da semana, escolhendo sempre opções nutritivas. E se houver a possibilidade de fazer alguma refeição na escola, quando as aulas presenciais retornarem, também vale cogitar essa alternativa, que no geral costuma ser saudável. Outro questionamento importante é em relação às compras no supermercado. “Se uma criança está com sobrepeso é porque, na casa dela, há coisas que não se pode comer — e não necessariamente foi a avó que comprou ou fez. Outro adulto pode ter comprado”, alerta Cristiane.
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Seguir os combinados – No caso de crianças que não moram com os avós, não é complicado notar as regras que existem em cada ambiente. Ou seja, o que pode ou não ser feito e quem dita as normas em cada lugar. Porém, quando os netos passam grandes períodos sob os cuidados dos avós, é preciso que haja um acordo entre os adultos e consistência nos combinados para que a criança não se sinta confusa e que nenhum dos cuidadores seja desautorizado.
Acreditar em seu papel de mãe ou pai – Alguns pais podem ter receio de serem vistos como “os chatos da história”, por impor limites aos filhos, e receiam sentir culpa no futuro por isso, mas os pequenos nem sempre compreendem a situação dessa maneira. “Existe o que a gente faz e o que a criança interpreta. E para além disso, a mãe precisa estar segura da função dela”, afirma a orientadora familiar.
Se conectar com a criança – Como sugestão, a psicóloga propõe uma conexão entre mãe e filha. “À medida que eu estou conectada com alguém, eu tenho respeito. A mãe não passa a ser aquela chata que dá ordem só para mostrar autoridade. Ela precisa pôr limite, mas também ser gentil e dar afeto”, sugere. É possível promover essa ligação até nas obrigações rotineiras. “Arrumem a cama juntas, coloquem a mesa juntas… coisas do dia a dia que podem ser legais entre elas”, exemplifica Cristiane.
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Procurar outras redes de apoio – Contudo, há aqueles casos em que os avós cuidam das crianças, mas desqualificam os pais ou falam mal deles. Assim, é perceptível a falta de respeito e cabe aos pais se questionar por que os filhos estão com os avós. “Se a avó é canguru e esse canguru está protegendo muito e não está deixando que seu filho se desenvolva, arrume outros cangurus. Você não precisa de uma avó, mas de outra rede de apoio ou estender um pouquinho o período da criança na escola”, explica a psicóloga.
Se colocar no lugar dos avós – Além disso, é importante reconhecer quando os avós estão cansados e já não têm mais aptidão física para cuidar dos netos. “Eles têm às vezes essa dificuldade de negar porque acham que é uma falta de amor. Não é! Então nós, como filhos, devemos olhar também para as necessidades dos nossos pais”, lembra a orientadora familiar. Nesses casos, vale a pena buscar a ajuda de uma babá ou, em algum dia da semana, solicitar o apoio de um amigo ou outro membro da família que possa cuidar da criança.
Entender a diferença de papeis – Mais importante do que isso é lembrar que os netos são fonte constante de alegria e amor aos avós. Eles ajudam a se sentir ativos, vitais e produtivos. “Muitas vezes os avós são cúmplices dos netos, então permitem que façam o que querem porque possuem uma relação de entrega e de amor, e não uma relação de limitação, de regra, de dia a dia”, afirma Cristiane.
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