Cerca de dois milhões de bebês nascem mortos anualmente no mundo, aponta levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse número representa um natimorto a cada 16 segundos, sendo que a maior parte dos casos ocorre entre 8 e 12 semanas. Ainda que os dados sejam expressivos, o luto neonatal, decorrente da morte de um bebê antes de seu nascimento ou logo após o parto, é um dos mais complexos e de menor validação social, cercado de tabus.
“Trata-se de um processo que apresenta uma característica diferente de outros tipos de luto porque implica em lidar com o projeto de um filho que não se concretizou. Os pais podem sentir sua dor deslegitimada ou desvalorizada diante daqueles que, porventura, possam buscar minimizar o sofrimento deles com palavras que supostamente seriam de incentivo, como “logo vocês engravidam de novo”. Essas palavras podem, na verdade, ser recebidas como menosprezo e desautorização da dor”, explica o psicanalista Ronaldo Coelho.
A dor da perda
A dor gerada pela perda de um filho, quando pouco acolhida pelos mais próximos, pode transformar-se em luto não reconhecido. A falta de espaços em sociedade para vivenciar esse momento faz com que os pais se sintam desamparados diante do sofrimento, acompanhado de invalidação. A incompreensão do sentimento de perda ocorre porque o falecimento de um neonato não é tratado da mesma forma que o de um filho adulto. Pela falta de lembranças, memórias e recordações do bebê, sua existência tende a ser descaracterizada.
“Demorei muito tempo para finalmente me permitir sofrer”, afirma Aparecida Silva, empregada doméstica. Segundo Aparecida, o luto neonatal é uma das piores dores que podem ser enfrentadas por uma mãe.
“É muito doloroso. No meu caso, aguardei 9 meses para finalmente poder conhecer meu filho, mas ele nasceu morto. Um momento que se aguarda vida e felicidade, acabou me trazendo muita tristeza. O processo de aceitação e reconhecimento da minha dor foi bem doloroso. Só tentei ter filhos novamente depois de alguns anos”, conta Aparecida Silva.
O apoio familiar é uma ferramenta muito importante de apoio, esclarece Renata Condes, psicóloga, membro do Núcleo de Estudo de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo. “O amparo da família e dos amigos mais próximos é, na maioria das vezes, o caminho mais eficiente no auxílio de pais que estão passando pelo processo de luto. Alguns pais podem se beneficiar de acompanhamento psicológico, e em casos mais extremos, de acompanhamento psiquiátrico. É importante entender que esses pais, na maioria das vezes, procuram um especialista por conta da falta de ressonância e amparo em seus grupos sociais.”
Luto negligenciado
Quando negligenciada, a dor tende a ser extremamente prejudicial para a saúde mental, acompanhada de culpa e sentimento de fracasso. A mãe passa a se sentir responsável e tenta buscar justificativas sem fundamento para o ocorrido. Não reprimir a dor é uma das principais ferramentas para elaboração de um luto saudável. Esconder os sentimentos ou retornar às atividades cotidianas antes do momento apropriado pode contribuir para o desenvolvimento de um luto atrasado ou complicado.
“É muito comum que os pais tenham sentimento de culpa”, relata Ronaldo Coelho. “Uma criança pequena, e ainda mais um bebê, não sobrevive sem a presença, cuidados e proteção de adultos. As funções paternas e maternas são o que garantem a vida do feto e do bebê. Numa situação de aborto espontâneo é comum a mulher se perguntar o que ela deveria ter feito de diferente, ficar repassando o que pode ter feito de errado que levou ao ocorrido. Essa condição faz com que a dor, a culpa e uma sensação de que o sofrimento não deveria estar ali possam se confundir e gerar pensamentos e sentimentos ambivalentes, confusos e desorganizados. É possível também que os pais se sintam desamparados, incompreendidos e desajustados. Tudo isso só dificulta o processo de luto”, acrescenta o psicanalista.
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O luto paterno
O luto gestacional, por estar associado na maior parte do tempo às mulheres, tende a se manifestar de maneira diferente nos homens, que frequentemente têm seu sofrimento invalidado. No luto paterno existe o preconceito enraizado ao manifestar emoções como choro e tristeza, associado a comentários como “você precisa dar forças à sua esposa” ou “como a sua parceira encarou a perda?”. Dessa maneira, os pais adotam atitudes mais racionais ao lidar com a morte do filho, atravessando o luto sozinhos, enquanto buscam proporcionar suporte às suas parceiras.
“Os pais acabam sendo colocados em segundo plano porque muita atenção é direcionada às mães, devido ao vínculo materno, que é super forte. Precisamos entender que os pais também vivem uma perda muito importante, ainda que existam diferenças, pois o luto é totalmente individual, mesmo que tenham perdido a mesma pessoa. Há um sofrimento importante nesse pai, que quando esquecido, adiciona um sofrimento a mais. Todas as atenções se concentram na mãe e o pai conta com pouco suporte”, completa Renata Condes.
Vida conjugal afetada
O sentimento de perda, além de afetar diretamente a saúde emocional de cada indivíduo, também pode desgastar a vida conjugal. Isso acontece porque cada parte manifesta os sentimentos de maneiras distintas, seja através da expressão constante da dor e angústia, ou através do desânimo, falta de paciência e falta de comunicação. Os comportamentos podem provocar desentendimentos e distanciamentos, ocasionando, em casos mais complexos, a separação.
Segundo Renata Condes, o luto neonatal vai muito além da perda de uma vida:
“Precisamos entender que quando um pai ou uma mãe perdem um filho, eles não perdem somente esse filho. Eles perdem também a função de se sentirem pais/mães. Muitos relatam a sensação de não entenderem mais qual sua função na vida, na medida em que aquele filho não existe mais”.
Assistência ao luto neonatal
A maioria das pessoas ainda não sabe como lidar com esse tipo de luto, e a busca por um atendimento humanizado geralmente é deixada de lado. A assistência adequada de profissionais de saúde é crucial para os pais encararem e elaborarem melhor a situação. O luto pode ser vivido de maneira mais expressiva, com transbordamento de emoções e manifestações, ou de maneira silenciosa, o que, na maioria das vezes, é mais preocupante.
“O interesse por tudo, inclusive pela vida, tende a diminuir neste início. Com o tempo é esperado que a dor vá diminuindo e o interesse pelas coisas e pela vida, vá aumentando. Caso aconteça o contrário, estamos diante de um luto complicado. Nestas situações, onde a dor só aumenta com o tempo, é importante considerar a busca por psicoterapia. Um tratamento medicamentoso pode ser indicado como apoio e a medicação pode variar caso a caso, sendo definida por um especialista. Sabemos que a qualidade da relação terapêutica é um diferencial importante para o sucesso do tratamento. Quanto maior for o sentimento do paciente de estar sendo cuidado e compreendido, maior é a chance de eficácia de todo tratamento psicoterápico e medicamentoso”, finaliza Ronaldo Coelho.
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