Nas duas últimas semanas, os brasileiros foram os que mais pesquisaram sobre pobreza menstrual em todo o mundo. O assunto dominou as consultas do Google Trends (ferramenta que mostra as palavras e expressões mais pesquisadas no portal de buscas) desde o dia 7 de outubro, no Brasil, quando o presidente Jair Bolsonaro vetou a distribuição gratuita de absorventes para as meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade.
O projeto de lei 4968/2019, de autoria da deputada federal Marília Arraes (PT/PE), previa a criação do Programa Nacional de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, obrigando o poder público a promover campanhas informativas sobre a saúde menstrual e as suas consequências para a mulher, além de distribuir gratuitamente absorventes higiênicos para estudantes carentes dos ensinos fundamental e médio, mulheres em situação de vulnerabilidade e presidiárias. Bolsonaro sancionou a lei, mas vetou os principais pontos da proposta, como a distribuição gratuita de absorventes.
A justificativa apresentada foi que o projeto não indicava a fonte de custeio ou medida compensatória, o que violaria a Lei de Responsabilidade Fiscal. A grande repercussão do veto deve levar o Congresso a derrubá-lo nos próximos dias.
“O problema da pobreza menstrual faz com que muitos estudantes deixem as escolas. O projeto foi pensado principalmente nessas pessoas, além de presidiários e pessoas em situação de vulnerabilidade social. Temos lutado para que haja a derrubada do veto ao artigo que prevê a distribuição gratuita de absorventes, construindo outros projetos de lei por todo o Brasil”, afirma Rozana Barroso, 22 anos, presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes).
Rozana representa os estudantes do ensino fundamental e médio e ajudou na construção deste projeto de lei. Ela conta que já faltou às aulas na infância por vergonha de estar menstruada e tinha muitas colegas sem dinheiro para comprar absorventes.
“Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo. Essa é a importância da educação sexual. Eu e minhas colegas fazíamos uma vaquinha para comprar absorventes.”
A Ubes lançou a campanha #LivresParaMenstruar, visando arrecadar dinheiro para compra e distribuição de absorventes em escolas públicas.
Fenômeno complexo e multidimensional
De acordo com o relatório “Pobreza menstrual no Brasil”, publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) em maio deste ano, a pobreza menstrual é um fenômeno complexo, transdisciplinar e multidimensional, vivenciado por meninas e mulheres devido à falta de acesso a recursos, infraestrutura e conhecimento para que tenham plena capacidade de cuidar da sua menstruação.
O estudo mostrou que 713 mil mulheres vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio e mais de 4 milhões não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas. Além disso, 62% das meninas entrevistadas afirmaram que já deixaram de ir à escola por causa da menstruação, enquanto 35% afirmaram que já passaram por alguma dificuldade por não terem acesso a absorventes.
O relatório concluiu, ainda, que uma família com maior situação de vulnerabilidade tende a gastar menos com itens de higiene menstrual, pois a prioridade é a alimentação.
Mulheres negras são as mais afetadas
O fenômeno também reflete a desigualdade racial. De acordo com o estudo, a chance de uma menina negra não possuir acesso a banheiros é quase três vezes maior do que a de uma menina branca nas mesmas condições.
Além disso, enquanto cerca de 24% das meninas brancas residem em locais sem serviços de esgotamento sanitário, quase 37% das meninas negras vivem nessas condições. Em 2014, a ONU reconheceu que o direito das mulheres à higiene menstrual é uma questão de saúde pública.
Pano velho, jornal e miolo de pão no lugar de absorvente
Sem acesso a absorventes as pessoas improvisam, permanecendo com o mesmo ítem por muitas horas ou fazendo o uso de objetos improvisados para conter o sangramento menstrual como pedaços de pano, roupas velhas, jornal e miolo de pão. Segundo o ginecologista Walter Pace, presidente do Hospital PHD Pace, o uso desses objetos pode gerar problemas fisiológicos para as mulheres.
“As principais consequências do uso dessas substituições são infecções ginecológicas, além de candidíases e a síndrome do choque tóxico, que é potencialmente fatal. Além dos riscos à saúde das pessoas, o tratamento dessas doenças custa caro ao sistema público de saúde.”
Iniciativas estaduais
Apesar do veto do presidente, estados como Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e o Distrito Federal já possuem projetos em andamento ou sancionaram leis estaduais para a distribuição gratuita de absorventes na rede de ensino.
No Distrito Federal, foi lançada pela Secretaria de Justiça e Cidadania a campanha “Dignidade Feminina:Da transformação de meninas a mulheres: mais cidadania e menos tabu”. A iniciativa foi o pontapé inicial para o cumprimento da Lei Distrital 6.779/2021, que garante o acesso de adolescentes e mulheres em vulnerabilidade a absorventes em escolas e em Unidades Básicas de Saúde. A ação também busca promover o debate sobre a falta de recursos para cuidados íntimos durante o período menstrual. O público-alvo são os adolescentes e mulheres em vulnerabilidade social atendidas por programas sociais.
Em Minas Gerais foi sancionada a lei 23.904/2021, que garante o acesso a absorventes nas escolas, centros de saúde e presídios, mas ainda não há uma data para implementação. A lei estipula a realização de parcerias entre o governo e a iniciativa privada, o incentivo à fabricação de itens de baixo custo por microempreendedores individuais e pequenas empresas e o fomento à criação de cooperativas para impulsionar a produção de itens de higiene íntima.
Na Paraíba foi criado o programa “Dignidade Menstrual” através da lei 12.048/2021 sancionada no dia 15 de setembro. O programa deve atender 700 mil pessoascom renda per capita abaixo de um salário mínimo por família, população em situação de rua, pessoas inseridas em programas sociais do governo federal ou estadual, estudantes da rede de ensino público e moradores de comunidades tradicionais. O estado vai oferecer absorventes, coletores menstruais e calcinhas absorventes reutilizáveis.
O estado de São Paulo lançou o programa “Dignidade Íntima”, para combater a pobreza menstrual nas escolas estaduais. O programa contou com um investimento de R$ 30 milhões para a compra de 50 milhões de absorventes para estudantes em situação de vulnerabilidade social da rede pública estadual de ensino.
A mobilização da sociedade
O veto do presidente Jair Bolsonaro também mobilizou a iniciativa privada em todo o país. Muitas ONGs criaram projetos sociais ou intensificaram as doações de itens de higiene íntima em projetos já existentes.
A estudante Glenda de Paula Ferreira, 14 anos, trabalha como voluntária no Projeto Recriar, que existe desde 2016, e está no sétimo ano escolar. Ela contou à Canguru News que já faltou às aulas por diversas vezes no período menstrual. “Eu tinha vergonha de contar para a minha mãe, não sabia como falar sobre o assunto.” O Projeto Recriar distribui absorventes para as meninas em situação de vulnerabilidade social da região onde Paula mora em Vila Velha, no Espírito Santo. Com a ajuda de doações, o projeto se estendeu também para outras cidades próximas como Serra, Cariacica e Vitória. As doações se intensificaram depois do veto de Bolsonaro.
A assistente social Madalena Kathleen dos Santos Soares, do projeto Casa Um – acolhimento e assistência à população LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade social – conta que a instituição também percebeu a necessidade de doar itens de higiene íntima, além de se preocupar com a educação sexual dos beneficiados. A assistente destaca a importância de entender que a pobreza menstrual atinge não só as mulheres, mas também as pessoas trans. O projeto doa cerca de 3 mil absorventes por mês arrecadados através de doações e também oferece cursos on-line e presenciais de educação sexual.
A estudante de medicina Gabriela Ribeiro Aguiar e a publicitária Beatriz Correa Garcia criaram o Projeto TPM (Transformando o Período Menstrual) durante a pandemia. “Começamos a arrecadar dinheiro de amigos e familiares para ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade social. Em uma das entregas houve a necessidade de levar itens de higiene básica e absorventes. A partir daí criamos o TPM, com o objetivo de ajudar as pessoas que sofrem com a pobreza menstrual”, conta Gabriela.
O projeto atende o ABC paulista e a Grande São Paulo elaborando kits, por meio de doações, para pessoas em situação de rua e adolescentes que vivem em abrigos. “Por mais que a menstruação seja algo normal na vida da maioria das meninas, mulheres e também homens trans em todo o mundo, nem todos conseguem arcar com o preço dos produtos básicos de higiene”, diz a estudante de medicina.
No início o projeto se chamava “É Menina!”, mas para abranger todas as pessoas que menstruam, como homens trans, elas decidiram mudar o nome para algo que não abordasse gênero.
Enfermeira de uma Unidade de Saúde em Porto Alegre, Kimberly Sanco Reis afirma que as mulheres em situação de vulnerabilidade sempre sofreram com a falta de ítens de higiene íntima. Com a pandemia, a situação se agravou bastante. “Depois do veto da lei que previa a distribuição gratuita de absorventes, começamos a disponibilizar estes ítens na Unidade de Saúde arrecadados com doações, muitas vezes da nossa própria equipe.”
A intenção, segundo Kimberly, é estender a iniciativa também às escolas da região. Ela conta que também desenvolve um trabalho de educação sexual com estudantes de escolas públicas.
Nas telas e nas páginas
A pobreza menstrual foi retratada no documentário indiano “Absorvendo o Tabu”, dirigido por Rayka Zehtabchi, vencedor do Oscar de melhor documentário curta-metragem em 2019.
Na Índia, a menstruação ainda é tratada como um assunto proibido e, por isso, as mulheres não têm acesso a produtos de higiene e absorventes. O documentário mostra como moradoras de uma área rural começaram uma revolução. O filme de 26 minutos acompanha um grupo de mulheres que usam uma máquina para criar absorventes higiênicos de baixo custo para ter sua independência financeira e melhorar a higiene em sua aldeia. Hoje, estes absorventes estão sendo usados em 40 aldeias na área rural da Índia.
O livro “Presos que menstruam”, da jornalista Nana Queiroz, relata a falta de assistência do Estado em disponibilizar absorventes para a população carcerária do Brasil, o que acaba tornando esse produto uma moeda de troca nas prisões. O livro é considerado uma espécie de “Carandiru feminino”, pois reporta o cotidiano das prisões femininas no Brasil. Foram entrevistadas presas das cinco regiões do Brasil que vivem em situação de miséria e são tratadas como homens.
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