O livro era A Árvore Generosa, de Shel Silverstein, com tradução do nosso Fernando Sabino. Comecei a ler em voz alta, depois passei para ele e iniciamos o nosso revezamento de sempre. O desenho tinha nuanças de humor, mas parecia apenas mais uma história. Não demorou para que ela revelasse o seu delicado soco no estômago.
A amizade entre uma árvore e um menino trazia duras reflexões. Os valores que se transformam à medida que crescemos. Relações em que um dá e o outro só recebe. O tempo que passa, o menino que cresce, e nós, pais, fazendo o papel da árvore: vendo os filhos seguir em frente, sem o direito (ou o poder) de detê-los. As lágrimas começaram a me embaçar a vista. Chorava a criança que mora em mim. Chorava a velha que ainda vou me tornar. Chorava a minha dor e a dele — tocado pela história e por seu impacto em mim, Francisco chorava também. E era uma vez mãe e filho lendo um livrinho antes de dormir. Aos 6 anos, meu filho estava diante da dor da vida.
Não era cedo demais para isso? Mas logo me dei conta: não era a primeira vez que a vida real alcançava o menino. Beirando os 3 anos, ao entrar para a escola, ele observara a vida dos colegas e percebera que em sua casa faltava um personagem. “Cadê meu pai?”, perguntou-me naquele dia. Não medi as palavras. “Seu pai morreu, filho. Antes de você nascer. Ele não queria, mas a gente não manda nessa parte.” Uma pergunta foi pouco. “E como foi?”, ele quis saber. “O coração dele parou de repente e ele caiu.” Francisco se deitou no chão para demonstrar. “Assim mesmo, filho”. Ele se calou por um tempo. No final do dia voltou ao assunto: “Eu tô muito bravo que meu pai tá morrido.” Deixei claro que o sentimento era natural e justo. Onde já se viu morrer antes do nascimento do filho? “Coisas da vida, Fran. Não há nada que possamos fazer.”
No vocabulário de Francisco, a palavra morte fica pertinho da palavra pai. É sua história, foi preciso lidar bem cedo com ela. E ele deu seu jeito. De olho em meus movimentos afetivos, achou um cara legal para chamar de pai. O namoro virou casamento, o casamento durou pouco, mas eles continuam pai e filho. Foram juntos para o Beach Park, lugar perfeito para quem tem urgência de vida nas veias. Francisco ama as férias de janeiro no sítio dos avós. Conta os dias para a chegada dos aniversários. Joga futebol, anda de bicicleta, é viciado em videogame. Tem um primo mais velho que é amigo e ídolo, além de dois ou três melhores amigos na escola. Odeia português, detesta aula de artes, é ótimo em matemática. Um menino como outro qualquer.
Existe hora para falar com uma criança sobre o que faz sofrer? Provavelmente sim: o momento em que sua história pedir. Para cada uma será um momento diferente. Cedo ou tarde, todo menino confronta sua árvore generosa.
Cris Guerra é publicitária, escritora e palestrante. Fala sobre moda e comportamento em uma coluna diária na rádio Band News FM e a respeito de muitos outros assuntos em seu site www.crisguerra.com.br. Na Canguru, escreve sobre a arte da maternidade.