Por Cris Guerra
O ascensorista e o “lobby boy”, em cena do filme “O Grande Hotel Budapeste”. |
Em nossa caminhada diária para a escola, eu e Francisco encontramos alguns personagens que já fazem parte do nosso cotidiano. Uma semana sem ver algum deles e já começamos a nos preocupar. João, funcionário da oficina perto de casa, que lê revistas enquanto espera a empresa abrir. A simpática Tânia e sua cachorrinha Mel. Geraldo, o porteiro bem-humorado, que, sorrindo, ameaça nos molhar com a mangueira. Gustavo e as duas cachorrinhas escandalosas. Paulo e o casal de filhos também indo à escola. A funcionária de um prédio que varre a calçada quando estamos passando. E tem um pai sorridente, que, ao conduzir o filho, faz o passeio matinal com o cachorrinho. O menino me chama atenção porque nunca me olhou nos olhos, como também nunca cumprimentou Francisco, embora tenham mais ou menos a mesma idade. Parece viver num mundo particular — ao longo do trajeto, só dialoga com o pai.
Ser invisível para o menino me incomoda. Já tentei sorrir para ele e dar um bom-dia, mas fui solenemente ignorada. O episódio esporádico que me causa tanto desconforto atinge um considerável grupo de pessoas todos os dias, sistematicamente. Soaria estranho chamar essas pessoas de minorias, pois muito provavelmente estão em igual ou maior número que nós, os “visíveis”. Já se acostumaram — ou se resignaram — à invisibilidade que o mundo lhes impõe. São os porteiros, faxineiras, office-boys, ascensoristas, motoristas, seguranças, carregadores, para os quais muitos não olham a não ser para dar ordens. E os nossos filhos não podem perpetuar essa lógica.
O hábito de “coisificar” pessoas faz parte de uma sociedade que estabelece a convivência por utilitarismo. O outro só existe a seu serviço. É conveniente, pois, tratar esse indivíduo polidamente, trocar com ele duas ou três palavras e assim sustentar uma convivência pacífica. O que não pode ser chamado de convivência, e sim de “modo de usar”.
Se a definição lhe provocou mal-estar, pense em que tipo de relação você estabelece com essas pessoas — e no exemplo que está dando a seus filhos.
Em meu trajeto à escola com o Fran, nenhuma dessas pessoas nos serve. São gente, como nós. Que acorda, sente o clima do dia, tem bom ou mau humor, pensa a vida, tem opiniões, resolve problemas. Alguns tiveram bem menos estudo que nós. Convém, no entanto, não desprezar-lhes a sabedoria. Conheço gente com doutorado que jamais terá o humor fino do Geraldo.
“O essencial é invisível aos olhos”, diz Antoine de Saint Exupéry. Mas, para praticá-lo, é bem-vindo um olhar atento e carinhoso. O olhar do outro é cama macia e seu sorriso, o cobertor. Não podemos, não precisamos nem devemos viver isolados. Experimentar a invisibilidade — por um instante, que seja — me ajuda a ter certeza disso.