Mães e pais híbridos deste Brasil, uni-vos!

Havia uma expectativa de que, em 2021, seria implementado no Brasil um ensino híbrido de qualidade – mas não foi o que aconteceu

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Mães e pais híbridos deste Brasil, uni-vos!; menino sentado escreve em papel sobre mesa e olha para tela de computador
Em vez do ensino híbrido, criaram-se duas categorias de famílias e de crianças: as presenciais e as virtuais
Buscador de educadores parentais
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Por Malu Delgado* – Havia esperança no ar de que o ano de 2021 pudesse significar alguma retomada de normalidade em nossas vidas. Afinal, as vacinas vieram, com todo o esforço da ciência. Havia ainda uma consciência de pais e educadores sobre o nefasto impacto de um ano de reclusão de crianças e jovens sem a vivência da escola, sem sociabilidade e, mais grave, sem ensino de fato, o que foi a realidade dos estudantes pobres neste país – sejamos sinceros.

Os privilegiados, como minha família e a minha filha, não podem dizer que 2020 foi um ano perdido. Foi dificílimo, entre quedas de conexão, horas de tédio, dificuldades de adaptação, problemas de áudio, dinâmicas ruins, oscilações de humor. No entanto, a coisa foi engrenando, os professores se empoderando e dominando novas linguagens. As crianças, esses nativos digitais, tiraram de letra uma experiência 100% virtual que à primeira vista parecia ácida demais. Não foi tão cruel no nosso caso porque aqui temos computador, bons pacotes de internet, conexão que funciona (quase sempre) e uma escola que trabalhou na base do afeto, com professores altamente qualificados e competentes. Houve bom senso. Aprendeu-se algo em 2020, pode-se dizer. Não estivemos no país das maravilhas, mas tampouco cruzamos o inferno de Dante. Sei que não se pode generalizar e que essas experiências não foram nada saborosas, por exemplo, para os muito pequenos, crianças com dificuldades inclusivas, crianças em fase de alfabetização. É preciso que se reconheça isso. Mas estou aqui calçando os meus sapatos.

Ainda que o ser humano tenha essa inacreditável capacidade de adaptação, para tudo tem um limite. Viver um ano trancado em casa, tentando manter a sanidade mental dos pais e dos filhos não foi moleza. Só quem experimentou o home office e a aula virtual, concomitantemente, com crianças entediadas, sem amigos para brincar, pode dizer sem medo e sem vergonha que pensou milhões de vezes em se entupir de ansiolíticos.

Então, veio 2021. E com ele, aquele gostinho amargo que o Brasil parece sempre possuir de caçar esperanças em seu nascedouro. O objetivo aqui não é falar de política, desgoverno, disfuncionalidades institucionais, crime de responsabilidade e omissão. Sendo assim, passemos, então, à experiência dos pais no novo ano.

Na escola em que minha filha estuda, começamos no virtual, por uma semana. Depois, a escola investiu tudo no presencial, como prioridade, com rígida observância dos protocolos. Minha família optou por continuar no virtual, por vigilância e solidariedade civil, medo, descrédito nas políticas públicas do país, e, sobretudo, pela chocante estatística de mais de mil mortes diárias por pelo menos 35 dias consecutivos. O Brasil cada vez mais mostra a sua cara. Eu não quero ver quem paga pra gente ficar assim. Não pode ser normal vivermos num país com 1.582 mortes em 24 horas e acharmos que “paciência, a vida continua”.

Na minha cabeça, 2021 seria o momento de desenvolver o aprendizado de 2020, de investir na riqueza da educação virtual nesses novos tempos, conciliando o digital com a tão necessária convivência com amigos, professores. O chão da escola. Nenhuma tela substitui esse afeto e essa troca. Mas eu realmente acreditava que em 2021 haveria a tentativa de implementação no Brasil, de fato, de um ensino híbrido, de qualidade. Achava que haveria investimentos em tecnologias, o repensar do ensino, das formas de aprendizagem. Não podemos negar a importância da linguagem digital para os nossos filhos, nem tampouco a necessidade de letramento e educação midiáticos. Tivemos muita chance de ver e de refletir sobre isso em 2020. Era o que eu imaginava. Ou sonhava, ingenuamente, mesmo sabendo que não somos a Dinamarca ou Cingapura.

Só que não. O sonho do ensino híbrido, como uma conquista, não como obrigatoriedade, não se concretiza. Para a minha surpresa, mais de 90% dos pais da classe da minha filha optaram pelo presencial. Nenhuma crítica. Totalmente compreensível e defensável. Cada família tem sua dinâmica, cada um sabe onde o calo aperta. Mas estávamos numa segunda onda ainda mais pesada da pandemia, as variantes surgindo aqui e em outras partes do mundo (o Brasil, claro, sempre liderando esses rankings nefastos), o recorde de mortes diárias veio em fevereiro. Mas tudo bem. Já tinha gente pensando em festa do cupcake.


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Vi pouca gente discutindo sobre a saúde dos professores e funcionários da escola que usam o transporte público lotado de São Paulo. Nós, os pais, deixamos nossos filhos na escola de carro. É bom refletir sobre isso, em algum momento. Nós também temos bons planos de saúde, boa alimentação. Não sabemos dizer pra onde a faxineira da escola vai quando ela ou seus filhos ficam doentes. Hoje, quando escrevo esse texto, 90% das UTIs de hospitais privados estão lotadas. A ocupação na rede pública em 17 capitais ultrapassa 80%. Governantes admitem que o colapso é questão de dias, semanas. As recomendações científicas mais sensatas são de isolamento rigoroso por pelo menos 15 dias.

Ainda assim, considerando o contexto, a escola queria reabrir. Os pais só faltavam derrubar aquele muro de Berlim que os impedia de colocar seus filhos dentro das salas de aula. Normalidade. Todo mundo queria normalidade.

Eu também quero, mas é preciso aceitar que ela não veio. Quem tem o mínimo de curiosidade de acompanhar as notícias aqui e acolá sabe que há inúmeros problemas na velocidade da imunização no Brasil e no mundo. No caso brasileiro, o buraco é ainda bem mais embaixo. E se vacinarmos, sabe lá Deus quando, já foi dada a largada àquela dúvida científica sobre o impacto das variantes do vírus, seu poder de transmissão e, mais ainda, de letalidade (a ciência corre para tentar nos dar respostas mais concretas).

Criaram-se, então, duas categorias de famílias e duas categorias de crianças, conforme a minha experiência: as presenciais e as virtuais. Sem um ensino híbrido, a aprendizagem e a oferta do conteúdo não é a mesma para esses dois grupos. Eles pouco se cruzam. Ou se cruzam numa dinâmica ainda sem sentido, sem didatismo, sem integração. O ensino vira excludente. Depois de tudo o que vivemos, não era hora de incluir, de estarmos todos juntos, no mesmo barco, buscando saídas, respeitando escolhas? Mas, assim como a política interditou as tentativas de consensos, parece que reproduzimos isso na sociedade brasileira. Sinto dificuldade de diálogo na comunidade escolar. E tenho pouquíssimas forças para os debates sem conteúdo dos grupos de pais do WhatsApp.

Preocupada com as consequências dessa divisão para uma saúde mental já frágil de uma criança, e insatisfeita com esse modelo educacional, fui pesquisar outras dinâmicas, o que está acontecendo em outras escolas. Uma barafunda. Tem escola que se recusou a fazer o presencial. Tem escola que resolveu ousar e de fato implementar o tal ensino híbrido, oferecendo presencial pra todo mundo, virtual pra todo mundo, alternadamente. Uma semana no presencial, quinze dias no virtual. Dois dias da semana no presencial, três no virtual. Professor dando aula de casa. Professor dando aula dentro da escola para alguém que está em casa. Telões, aplicativos novos. Escolas com 100% do ensino presencial (ainda que isso descumpra as normas estaduais, em São Paulo), e não se fala mais nisso. Tem de tudo.

O Brasil virou um festival de inúmeras modalidades de ensino. E os pais estão contentes? Aposto cinco caixas de cloroquina que não, ou pelo menos têm ressalvas em todos os modelos. No meu caso, tenho várias. A pior é o fato de não haver a opção de sermos iguais. A partir do momento em que prioridade da escola é o presencial, e as crianças que ficam no virtual não compartilham a mesma experiência dos demais, claro que nos diferenciamos.

É fato que não fazer o presencial neste momento foi uma escolha da minha família. Mas digo com toda sinceridade que se houvesse ao menos a possibilidade de uma experiência alternada eu talvez cogitasse, sim, mandar a minha filha para a escola, mesmo com o coração na mão. Pode ser que em breve eu me sinta tão encurralada que não haja outra opção: eu não posso privar minha filha do convívio com os amigos e deixá-la numa aula virtual onde ela não recebe o mesmo conteúdo dos coleguinhas presenciais e não convive diariamente com 18 das 19 crianças da sua classe. Ou pode ser que, em questão de duas semanas, com o colapso iminente, todos voltemos para a experiência virtual.

Resisti aos ansiolíticos em 2020, mas cada vez mais percebo que nós, pais, aqui neste Brasil, só sobreviveremos se soubermos ser híbridos. Pacientes e irritados. Tolerantes e raivosos. Condescendentes e exigentes. Mentes abertas e mulas empacadas. Esperançosos e pessimistas. Que falta faz um Ministério da Educação. Mães e pais híbridos deste Brasil, uni-vos! Essa é a única alternativa que nos resta. E lutar pela melhor educação de nossos filhos é nosso dever.

*Malu Delgado é mãe da Nina, 8 anos. Jornalista, tem mais de 20 anos de experiência em coberturas políticas para veículos como “Valor Econômico”, “O Estado de S. Paulo”, “Folha de S. Paulo”, revista “piauí”, “Jornal do Brasil”, “iG” e “Globonews.com”. Pós-graduada em Gestão de Políticas Públicas, atua no momento como colaboradora da Deutsche Welle Brasil, freelancer e consultora de comunicação da Canguru News.


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