Por Cris Guerra
Já fazia alguns dias que ele me mostrava um dos dentes de baixo, insistindo em dizer que estava bambo. Eu tentava balançar o dente, e nada. Entendi que o dente mole era só uma invenção para que ele se sentisse à altura do priminho dois anos mais velho.
Os dias se passavam, e a cena se repetia, sem que eu lhe desse crédito. Até que um dia, para minha surpresa, aquele dente apareceu mesmo amolecido. É a força do desejo, foi o que pensei. Se ninguém nunca foi capaz de me tirar uma ideia da cabeça até que eu a tornasse realidade, imaginei: o menino puxou a mãe.
E mostrar o dente tornou-se o seu passatempo predileto. Bastava alguém se aproximar para que ele abrisse a boca, didático. Apontava para o dente e falava, ao mesmo tempo, criando um ruído divertido que obrigava o ouvinte a deduzir – aquele era o próprio dialeto da alegria.
O novo é um desejo e uma necessidade. Cresce a cada dia, como cabelos que quando cortados voltam a aumentar de tamanho. E não me venha contar o de sempre
A novidade era um dente mole. Um futuro buraco. Que, quando se tornasse uma janela, viveria da esperança de um novo dente. A novidade era uma despedida – ou a preparação para a chegada de outra novidade. A novidade era esperar pela Fada do Dente. A novidade era uma janela, um buraco cheio de nada, um mundo de possibilidades.
O novo é um desejo e uma necessidade. Cresce a cada dia, como cabelos que quando cortados voltam a aumentar de tamanho. E não me venha contar o de sempre.
Quando criança, fazia minha vida em torno desses pequenos sonhos que levam uma ou duas semanas pra se realizar. A festa de aniversário do colega, o dia de ir à feira pra comprar roupas para as bonecas, a excursão da escola, o Natal, o presente. Enchia minha vida de simbólicos dentes moles que me abriam janelas no sorriso – e assim tudo fazia sentido.
De janela em janela, a vida caminhou. Foram-se vários dentes de leite, vieram novidades, uma após outra, algumas definitivas.
Hoje, penso menos no dente que virá. Me interessam mais as janelas, que é o nosso espaço de viver a vida.
De todas as minhas novidades, nunca houve alguma maior que ele. Ele é o meu buraco lotado de possibilidades, janela para tudo o que eu não esperava. Ele é minha ousadia de ser grande, amor que lateja por não caber. Com seu dente mole, ele me bambeia as pernas de tanto amor.
Essa pequena novidade que já está quase do meu tamanho pariu em mim novidades impensadas. De sua vinda fiz um novo caminho. Do novo caminho nasceram janelas-filhotes que não se cansam de crescer e gerar outras. Sempre novas.
De tantas janelas nasci outra, novidade para mim mesma. Eu era dente de leite e não sabia.
Cris Guerra é publicitária, escritora e palestrante. Fala sobre moda e comportamento em uma coluna diária na rádio Band News FM e a respeito de muitos outros assuntos em seu site www.crisguerra.com.br. Na Canguru, escreve sobre a arte da maternidade. É mãe de Francisco, de 9 anos, que fez a ilustração da coluna especial do mês das crianças.