Por Sabrina Abreu
Colaborou Rafaela Matias
João Otávio, com sua mãe, a dentista Germane de Barros: quando ele perdeu a cadela de estimação,
sua família o ajudou a refletir sobre o assunto.
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Os comerciais de TV e as canções que tocam incessantemente dentro das lojas de departamentos avisam: o Natal está chegando. O feriado que comemora o nascimento de Jesus é uma das principais datas religiosas do Brasil — onde mais de 85% da população se considera cristã, segundo dados do último Censo. Diante da invasão de pinheiros enfeitados e botas de Papai Noel, famílias de diferentes religiões, ou mesmo sem religião declarada, aproveitam o momento para explicar às crianças os pontos de contato e de exceção entre suas convicções e o costume cristão. Os votos de paz e atos de solidariedade que se multiplicam nesta época do ano são vistos como práticas espirituais positivas. É importante inspirar os pequenos a levá-las adiante por todo o ano. “A religião tem um papel positivo na formação das pessoas, pois coloca em perspectiva o ser humano, como pequeno em relação ao cosmo”, afirma o doutor em psicologia social e professor da UFMG Cláudio Paixão. “Só conseguimos desenvolver noções de ética, moralidade e respeito ao outro se nos admitirmos pequenos”, explica ele. O professor, porém, faz uma diferenciação entre o que chama de “boa religião” e “má religião”. A primeira permite a coexistência entre diferentes tipos de fé, enquanto a segunda é aquela que se pretende dona da verdade e se coloca acima das demais. O ideal é que a convivência com o diferente e o respeito sejam valorizados desde a infância, inclusive no campo da espiritualidade.
Na Igreja de São Pedro, no bairro Floresta, crianças a partir de 5 anos aprendem sobre histórias bíblicas “Acreditamos que esse é o alimento para o espírito”, explica Patrícia Zuccherate, coordenadora da catequese de iniciação. “Como o corpo, o espírito precisa de nutrição.” Livros ilustrados e muitas músicas fazem parte do aprendizado ali. Patrícia diz que a forma de se alimentar espiritualmente vai mudando ao longo do tempo. Para as crianças, mais do que a doutrina católica, os princípios de amor e de justiça são o foco principal.
Trabalhar com o lúdico é a ideia também do rabino da Congregação Israelita Mineira, Uri Lam. Ele explica que há um antigo costume judaico de ensinar as crianças a escreverem as letras hebraicas usando mel. “Conectar a escrita a alguma coisa doce é maravilhoso, mostra que o aprender é algo gostoso”, afirma. O hebraico é a língua da Torah, composta pelos cinco primeiros livros da Bíblia. Para ele, o aprendizado da cultura e da religião judaica é uma forma importante de reafirmar a identidade de um povo que é minoria — há cerca de 15 milhões de judeus no mundo inteiro. “Sentimos a responsabilidade de levar o legado milenar dos nossos antepassados para o futuro.” Ele aconselha que as famílias de sua congregação expliquem a seus filhos a importância do Natal para os cristãos, embora não seja uma festa comemorada em seu calendário. “Gosto da palavra coexistência, não podemos nos isolar”, pondera ele. “Já o termo tolerância me parece ruim, como se fosse um mal necessário.”
Benjamin, que estuda em um colégio judaico: “Gostaria
de frequentar a sinagoga, como fazem vários de meus
amigos.
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De formação católica, a designer Ana Tereza Carneiro é casada com o artista plástico Rogério Fernandes, que não tem uma religião definida. Por referência de amigos e pela proximidade geográfica, o casal escolheu a Escola Theodor Herzl para matricular os três filhos: Valentina, de 3 anos, Aurora, de 6, e Benjamin, de 7. Lá, as crianças têm contato com a cultura e a religião judaica. “Eu gostaria de frequentar a sinagoga, como fazem vários de meus amigos”, conta Benjamin. Em casa, ele e suas irmãs fazem orações ao estilo católico, dirigidas ao anjo da guarda. “Peço para ele me proteger de pesadelos”, diz o garoto. A história da família Fernandes lembra o parecer do antropólogo Roberto DaMatta, segundo o qual a linguagem religiosa do brasileiro é “um idioma que busca o meio-termo, o meio caminho, a possibilidade de salvar todo o mundo e de em todos os locais encontrar alguma coisa boa e digna”. É o caso de João Otávio, que aos 6 anos de idade não é um frequentador de igrejas ou templos, mas acredita na importância de rezar e agradecer a um ser superior. Seus pais, a dentista Germane Medeiros de Barros e o advogado Gustavo Monti Sabaini, defendem o valor de uma vida espiritualizada, independentemente de religiões. “Eu e o João rezamos juntos em casa à noite e quando eu esqueço ele até pede”, afirma Germane. Além disso, quando o pequeno perdeu sua cadela de estimação, pôde refletir sobre a existência de algo maior. “Eu sei que a Lilica está no céu, com Deus, lambendo a cara dele, fazendo festa como fazia comigo”, diz João Otávio.
A psicóloga Sat Kartar, que é adepta do sikh dharma, com Dharam Raj:
“Um dia, ele pediu ao infinito que todas as crianças tivessem arroz e brócolis”
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Outros exemplos de “linguagem religiosa do brasileiro” não faltam. O xeque Mokhtar El-Khal, líder da comunidade muçulmana de Belo Horizonte, é marroquino e criou seus três filhos no Brasil, dando a eles presente de Natal. “Tentei evitar o choque cultural, ao mesmo tempo em que ensinava a eles a tradição muçulmana”, afirma. No Natal, a psicóloga Sat Kartar, que é adepta do sikh dharma há dez anos e adotou seu nome a partir do contato com esse estilo de vida oriental, aproveita para falar a Dharam Raj, de 4 anos, de uma “luz que nasce dentro das pessoas”. Apesar de na Índia, país de origem do sikh, ele ser considerado uma religião, no Ocidente o movimento chegou como uma filosofia de vida, que inclui a meditação, o vegetarianismo e a busca pelo bem das pessoas e dos animais. “Não nos dirigimos a um deus, buscamos nos conectar com o infinito, ser um só com ele”, ensina Sat Kartar. Ela garante que se esforça para passar ao pequeno mais do que o nome e a dieta, mas seu interesse por ajudar as pessoas. “Um dia ele pediu ao infinito que todas as crianças tivessem arroz e brócolis”, orgulha-se.
A publicitária Miriam, que está preparando uma feira
de trocas e doações, e Sara: “É bom aprender
o prazer de compartilhar desde cedo”
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De acordo com o professor Carlos Paixão, quando praticadas sem excluir os fiéis em outros credos, as religiões têm vários pontos positivos em comum. Como estimular o altruísmo. A publicitária católica Miriam Barreto e a servidora pública batista Raffaella Matos demonstram isso. Mãe de Sara, de 4 anos, Miriam escolheu o Colégio Arnaldo para matricular a menina, por se tratar de uma escola de princípios cristãos. A mesma justificativa é usada por Raffaella, cuja filha, Laura, de 5 anos, estuda no Colégio Batista Mineiro, unidade Buritis. As duas tentam refutar o consumismo como um efeito colateral do Natal. Idealizadora do blog Na Pracinha, Miriam tem a intenção de organizar uma feira de troca e de doações para que crianças com muitos brinquedos presenteiem aqueles que têm menos. “É bom aprender o prazer de compartilhar desde cedo”, pontua. Raffaella também aproveita a data para escolher, junto à filha, bonecas e jogos a ser cedidos a outras crianças. “Ela recebe presentes, mas não deixa de passar seus pertences para a frente”, observa. Laura diz que conversa com Deus em suas orações e já recebeu respostas. “Pedi para Ele não deixar chover no meu aniversário, pois queria colocar uns brinquedos na área externa da casa”, lembra. “E não choveu!”
Laura e a servidora pública Rafaella: “Pedi
para Deus não deixar chover no meu
aniversário. pois queria colocar uns brinquedos
na área externa da casa. E não choveu!
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Também preocupadas com os valores passados em sala de aula, as mães Nilda Lira e Alexandra Morais tomaram uma decisão diferente. As duas matricularam suas filhas em escolas da rede pública, que consideram mais neutras. Convertida ao islamismo há um ano, a dona de casa Nilda busca inserir, aos poucos, os princípios e costumes da religião na vida da filha mais nova, Raíssa, de 7 anos, que estuda na Escola Estadual Pandiá Calógeras, no Santo Agostinho. Nilda observa as regras alimentares muçulmanas — que proíbe, por exemplo, ingestão de bebidas alcoólicas e carne de porco —, reza cinco vezes ao dia e veste-se de forma modesta. Raíssa, ainda sem obrigação de fazer as rezas, gosta de imitar a mãe no ritual. E também no uso do véu — obrigatório apenas para mulheres depois da primeira menstruação. Espírita kardecista, a pedagoga Alexandra leva a sério o ensino religioso da filha Geovana, de 6 anos, aluna da Umei Nova Esperança. A pequena lê livros espíritas adequados à sua idade e participa de uma reunião mensal com vários membros da família, entre tios e primos. “Meus avós já eram espíritas”, conta Alexandra. Tanto ela quanto Nilda acreditam que há desinformação no Brasil sobre suas religiões. “Apesar do preconceito, é importante preparar a criança para conviver na sociedade, não isolá-la dos outros”, diz Nilda.
A dona de casa Nilda Lira e Raissa:
a pequena ainda não precisa, mas gosta
de usar o véu, como a mãe, mulçumana.
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A ideia de que é dever da família introduzir a espiritualidade ao universo infantil perpassa diferentes credos, para os quais apenas após a adolescência o indivíduo se torna responsável por si mesmo diante de Deus. Boa parte dos protestantes, como os batistas, não batiza as crianças. Os católicos veem na crisma, realizada geralmente na adolescência, a conclusão de uma caminhada que se inicia no batismo, quando bebê, e passa pela primeira comunhão, por volta dos 9 anos. Em algumas religiões, há uma data certa para a mudança. Na tradição islâmica, por exemplo, esse momento se dá aos 15 anos. No judaísmo, a emancipação é aos 11 para as meninas e aos 13 para os meninos, após o ritual de passagem chamado bat (para elas) ou bar mitzvah (para eles). Além da herança de bondade, altruísmo, honra, gratidão, entre outros valores partilhados por diversas fés, líderes espirituais concordam que a melhor forma de ensinar uma religião ou estilo de vida é a partir do exemplo. “A criança vai aprender ao ver bem mais do que ao ouvir”, afirma o evangelista infantil Ulisses Braga Spagiaris, o Tio Uli, apresentador do programa Tio Uli e os Bonecos, do canal evangélico Rede Super. “Não adianta dizer para a criança ser educada ou generosa se os pais ou professores a seu redor agem de forma oposta ao que pregam”, aponta ele. “A criança é capaz de perceber as contradições.” A responsabilidade dos adultos, muito além de fazer orações, rezar ou meditar, é ser um bom modelo.
A pedagoga Alexandra Morais, com Geovana: as duas leem livros
espíritas e participam de reuniões mensais.
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Se eu puder falar com Deus
“Para o Natal chegar logo, porque está demorando muito.” Laura Matos, 5 anosPropusemos às crianças entrevistadas que contassem o que gostariam de pedir ao Criador
- “Um unicórnio de estimação.” Aurora Fernandes, 6 anos
- “Comida para pessoas e bichos.” Dharam Raj, 4 anos
- “Pizza e sorvete de casquinha.” Sara Barreto, 4 anos
- “Para ele contar como fez o mundo.” Raíssa Lira, 7 anos
- “Para ele explicar como fez o mundo.” Benjamin Fernandes, 7 anos
- “Brinquedos. Ele podia jogar lá do alto.” Geovana Morais, 5 anos
- “Uma caixa de Lego.” João Otávio Sabaini, 6 anos