O autocuidado não é um luxo, é tão necessário quanto comer e beber, e evita que a gente adoeça, pois se adoecermos, além de ser algo ruim para nós mesmos, não poderemos cuidar dos filhos. O autocuidado, portanto, é uma responsabilidade que cabe aos adultos e são eles que têm de pensar em soluções para, se preciso, pedir ajuda que garanta a sua saúde, afirma a pedagoga e educadora parental Maya Eigenmann, mãe de dois filhos.
Ela explica que a prática de olhar para si também inclui revisitar situações da infância que nos fizeram e seguem fazendo mal, para não replicá-las, e assim quebrar o ciclo de violência que se reproduz ao longo das gerações em uma família. Para Maya, ainda é muito comum o abuso de poder do adulto sobre a criança, baseado num ensinamento que se pauta pela dor. “A ciência é muito clara quanto a isso: não é na dor que nós aprendemos. Sim, nós somos marcados pela dor, mas o aprendizado não é positivo; é de medo, que nos acua e encurrala”, relata.
Em conversa com a Canguru News, a especialista, pós-graduada em educação positiva e neurociência, fala sobre a relação entre situações de violência constante em casa, níveis elevados de cortisol e estresse tóxico – uma sucessão de fatos nocivos que prejudicam o desenvolvimento infantil. Para que a criança alcance o potencial máximo, ela destaca a importância de haver prosperidade amorosa, segurança e tranquilidade no lar. “É isso que precisamos providenciar para os nossos filhos, e o foco do meu segundo livro é exatamente esse”, pontua. “Pais feridos, filhos sobreviventes – e como quebrar este ciclo”, segundo livro da autora, está em fase de pré-venda e já chegou a aparecer entre os mais vendidos da Amazon, tendo lançamento previsto para o dia 7 de agosto.
Apesar do sucesso de sua primeira obra – o best-seller “A raiva não educa, a calma educa”, lançado em setembro de 2022, com mais de 100 mil exemplares vendidos -, e de sua popularidade em redes sociais – Maya tem 1,2 milhão de seguidores no Instagram – ela diz que o interesse pela educação positiva cresceu, mas ainda está longe do ideal. “Existe muita gente que ainda acredita que é, sim, batendo que se resolvem as coisas, que a educação positiva é uma frescura, que é mimimi, “geração Nutella” e por aí em diante”. A seguir, leia os principais trechos da entrevista com a educadora parental.
1. O livro propõe aos leitores uma reflexão sobre a própria criação, feridas e crenças que podem nos provocar gatilhos. Gostaria que falasse sobre esses gatilhos e como eles podem afetar a educação de nossos filhos.
Maya Eigenmann: Gatilhos são registros neurológicos de situações de perigo. Então, para exemplificar: se eu era uma criança que não comia tudo que estava no prato e, toda vez que fazia isso, meus pais gritavam e brigavam comigo, me humilhavam, constrangiam e envergonham, então o não comer virava uma situação de perigo para mim. Eu pagava um preço por não comer tudo o que estava no prato e aquela situação de risco fica registrado no cérebro como memória. Na vida presente, essa criança agora adulta está, por exemplo, diante do próprio filho ou filha, que não come tudo o que está no prato e novamente registra o perigo como algo iminente. Isso porque o cérebro não diferencia passado, presente e futuro. Ele foi afetado por essas experiências na infância e está vendo diante dele novamente uma situação de perigo: “Comida no prato. Atenção! Alerta! Nós já sofremos por conta disso, é perigoso!” Então, reclamo com o meu filho, exerço esse poder em cima dele porque eu sinto que é ele que está causando novamente essa situação de risco. Sendo que, na verdade, o que causou o registro, obviamente não é a criança, mas a nossa própria história. E se o adulto não se conscientiza desses gatilhos, pode passá-los aos seus filhos, que por sua vez, pode repassá-los aos netos e assim por diante. Vamos supor: o avô, quando era criança, apanhava por não comer tudo que estava no prato. Ele cresceu, teve filhos e exerceu o mesmo controle sobre o filho. E esse filho também cresceu e agora vem o neto. Vai passando de geração em geração, a não ser que alguém entre essas gerações perceba que não é por aí e que consiga começar a quebrar esse ciclo. Vem dessa tomada de consciência.
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2. Quebrar esses ciclos exige cuidar melhor de si para poder cuidar melhor dos filhos. Mas como fazer isso diante de tantos desafios e sobrecargas?
Maya Eigenmann: O cuidar de si vem primeiramente da autorresponsabilidade, compromisso muito sério que nós adultos precisamos ter com o seguinte fato: se eu não me cuido, eu não tenho condições de cuidar do meu filho. A gente deve entender que o autocuidado não é um luxo, mas é tão necessário quanto comer e beber, e se não faço essas coisas, por exemplo, eu adoeço. Se não me cuido, eu adoeço.
Outra questão, em termos de autocuidado, é a de que esperar que os outros me ajudem por livre e espontânea vontade é uma ilusão infantil. Não estou falando que as pessoas não empatizam ou que não querem ajudar, mas sim de ficar esperando isso sem pedir ajuda, sem nomear minhas necessidades, sem criar pontes com pessoas de confiança, até mesmo com as mais próximas, achando que essas pessoas vão se compadecer. É preciso, nesse processo, se responsabilizar, pensar: “Estou percebendo que não estou conseguindo cuidar bem da minha criança e isso está nas minhas mãos”.
Claro que existe um recorte social e racial, sem sombra de dúvidas. Mas, ainda assim, não é a criança que pode ser responsabilizada nesse processo. Dentro dessas diferenças, os adultos precisarão pensar em soluções. E essa responsabilidade é do adulto e não da criança.
3. O livro fala que “não é por meio da dor que nós prosperamos, e sim pelo amor.” Gostaria que você comentasse essa afirmação.
Maya Eigenmann: Uso essa frase na abertura do livro e também do meu Tedx. Por que ela aparece em ambos esses momentos? Porque a ideia do adultismo estrutural – que não vemos, mas que vivemos, do abuso de poder do adulto com a criança – é que a gente tem que ensinar pela dor. “Só quando apanha que aprende, tem que sofrer, a vida é dura.” Existe muito esse lugar do sofrimento, da escassez e da dor. Mas a ciência é muito clara quanto a isso: não é na dor que nós aprendemos. Sim, nós somos marcados pela dor, mas o aprendizado não é positivo; é de medo, que nos acua e encurrala. Não é um aprendizado abundante, que dá vontade de compartilhar com outras pessoas. É um aprendizado que vai te podar e não dar frutos.
Quando estou em uma situação de medo, perigo e ansiedade, meus níveis de cortisol ficam muito elevados. Uma diferença clara entre um cortisol “positivo” e um cortisol “negativo”: se saio de casa e vejo um animal selvagem, o cortisol me coloca em movimento para fugir desse animal. Ótimo! Funcionou, é para isso que ele serve. Mas se eu estou dentro da minha própria casa, convivendo com um perigo constante que pode vir de meus próprios pais, que ficam me batendo o tempo todo, gritando comigo, que não me trazem segurança e sim medo, estarei com esse cortisol elevado o tempo todo. A gente fala aqui de estresse tóxico.
Esse cortisol vai agir como um corrosivo, corroendo meu corpo, meu sistema imunológico e meu cérebro. Existem estudos que comparam tamanhos de cérebros e uma criança que passa por muitas experiências adversas tem um cérebro menor por causa dos altos níveis de cortisol. Então, no amor, estamos no nosso habitat ideal.
A gente precisa entender que não é na escassez que será alcançado o nosso potencial máximo, mas na prosperidade amorosa, segurança e tranquilidade, sem esse cortisol elevado. É isso que precisamos providenciar para os nossos filhos, e o foco do meu segundo livro é exatamente esse.
4. A educação positiva está no centro de seu trabalho. Poderia explicar em que consiste essa abordagem?
Maya Eigenmann: Educação positiva não é um método que nós aplicamos, é uma filosofia de vida mesmo. Eu vivo a educação positiva. Seria como falar: “Vou aplicar respeito para com o meu marido”. Não tem como a gente aplicar respeito. Eu vivo o respeito, não é uma ferramenta. Começa desse lugar de tomada de consciência para perceber o tanto que a sociedade é centrada nas necessidades do adulto e que em todas as situações a gente está mais preocupado com a aprovação e o bem-estar do adulto, forçando a criança a se adaptar ao mundo dos adultos. É uma inversão de papéis pelo fato que o adulto já tem um cérebro maduro, ele não precisa ser acomodado. É a criança que não tem um cérebro maduro, ela que precisa ser acomodada. Então é, primeiramente, uma mudança de paradigma na nossa mentalidade. Falo muito disso no meu primeiro livro especificamente, no qual eu desconstruo o adultismo estrutural. Uma vez que entendo que a criança tem igual valor que os adultos e que tenho que tratá-la até melhor, com ainda mais cuidado e amorosidade, porque é um cérebro em formação, as coisas começam a melhorar. Assim, a gente começa a colocar a criança no centro e entender, também, que todas as disfunções sociais que nós temos começam na infância.
“Enquanto a gente não olhar para a infância e colocá-la no centro de tudo, as disfunções continuarão existindo”,afirma Maya Eigenmann.
5. Quais os benefícios físicos e emocionais dessa relação baseada no afeto, respeito e acolhimento?
Maya Eigenmann: Existe uma pesquisa de 1998, que é uma das mais relevantes, consistentes e robustas para a educação positiva, sobre as experiências adversas da infância. Nesse estudo, ficou muito clara a correlação entre experiências adversas na infância, ou seja, experiências negativas como violência doméstica, agressão contra a criança, negligência emocional contra criança, abuso sexual, entre outras categorias, e seus efeitos negativos na vida adulta em termos de saúde emocional e saúde física. Temos um aumento de doenças respiratórias, cardiológicas, hormonais, taxas de suicídio e abuso de drogas muito maiores em decorrência dessas experiências adversas na infância. Então já temos provas do quanto faz mal não receber o que se precisa na própria infância.
Também temos várias pesquisas que mostram o quão benéfico é para a saúde da criança crescer num lar pacífico, respeitoso e amoroso, que traz segurança. E isso não inclui somente a área da educação positiva, mas também nos estudos dos traumas emocionais e de como o nosso sistema nervoso é afetado negativamente por experiências que trazem perigo e insegurança, aumentando o nosso nível de cortisol e afetando o desenvolvimento do nosso cérebro e sistema imunológico.
Temos muitas provas científicas de como promover um lar pacífico, seguro, amoroso e respeitoso para a criança se torna praticamente uma prevenção ao trauma. O fato de crescer de maneira amorosa dentro de casa se torna uma prevenção ao trauma emocional e físico.
6. Como você avalia o fato de seu livro já ter figurado entre os mais vendidos da Amazon? Você vê uma mudança de mentalidade nas famílias no sentido de querer exercer uma parentalidade mais consciente?
Maya Eigenmann: Eu fico muito feliz em relação a isso. Acho que existe sim uma diferença de talvez 10 anos atrás ou até menos, em termos de interesse sobre a educação positiva. Com certeza há um crescimento em relação a isso no geral, mas confesso que estamos longe ainda do que seria o ideal. Tem, sim, um interesse e abertura maiores, mas existe muita gente que ainda acredita que é, sim, batendo que se resolvem as coisas, que a educação positiva é uma frescura, que é mimimi, “geração Nutella” e por aí em diante. Então há um crescimento, mas ainda é um crescimento pequeno.