Como são as ‘crianças do movimento’, muitas vezes diagnosticadas com TDAH

A psicóloga Cecília Antipoff faz um alerta sobre a tendência a diagnosticar e medicalizar as crianças que são "agitadas" demais

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Menina estica a mão com punho fechado enquanto se balança no parque
A criança entende o mundo se movimentando, diz Cecília
Buscador de educadores parentais
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“Meu filho não para nunca.” “Ele vive ligado no 220.” “É agitado demais, um furacão.” Crianças com essas características tendem a ser mal vistas e estigmatizadas pela sociedade, sendo comumente associadas a distúrbios como o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno do espectro autista (TEA), entre outros. Porém, o fato de serem mais “agitadas”, não ficarem muito tempo sentadas, quietinhas e até não se dedicarem aos estudos, não significa necessariamente que tenham uma disfunção. “Há crianças que, independentemente de qualquer diagnóstico, têm uma necessidade de movimentação e experimentação maior e não precisam de medicação mas sim de compreensão, de um mapeamento do contexto de vida e das relações, precisam de tempo e espaço para se expressarem”, explica a psicóloga mineira Cecília Antipoff, que lançou este ano o livro Crianças do movimento – por menos diagnóstico e medicamento.

Em TEDx Talk gravado no ano passado, Cecília começa a apresentação dizendo que se tivesse que escolher uma palavra para representar todas as crianças, essa palavra seria movimento, visto que a criança se comunica, se apropria e entende o mundo se movimentando e experimentando. “Só que algumas crianças apresentam essa necessidade para além quando a gente compara com outras.”

No vídeo, ela cita personalidades como Albert Einstein, Walt Disney e Eric Clapton, que foram repreendidos por se comportar “mal” na escola, e diz que crianças como essas não devem se ajustar para corresponder às nossas expectativas. Segundo Cecília, a educação tradicional insiste em padrões de comportamento e desempenhos que nem sempre correspondem com o que as crianças são.

Em entrevista à Canguru News, a psicóloga contou que já nos atendimentos de estágio durante a faculdade começou a perceber uma tendência a rotular os pequenos que eram mais agitados. “Enquanto educadora parental, comecei a trabalhar, nos últimos anos, orientando mães e pais, escutando as queixas, as demandas, para ajudar a entender como lidar com a “criança do movimento” de uma forma mais leve, para que ela possa ser a potência que ela é, e não para que os pais a descaracterizem.” 

O trabalho se tornou ainda mais significativo quando nasceu o seu segundo filho, Ian, há quase cinco anos. “Ian é uma criança que não começou a andar, ele começou a correr. Ele não fica sentado à mesa o almoço inteiro, ele levanta várias vezes, assiste algo na TV, pula no sofá, dá cambalhota, vai brincar com terra, com tinta, e espalha no corpo, ele precisa desse aspecto sensorial.”

Ao compartilhar suas vivências sobre o filho em grupos de mães e amigas que atendia, e nas redes sociais, ao invés do olhar de estigma, de criança terrível e impossível, ela passou a chamá-lo de o menino do movimento. “Comecei a contar para as pessoas que por trás do movimento tem inteligência, tem potência, que o natural da criança é a experiência, é o movimentar.

A ideia era mostrar a importância de valorizar suas habilidades, assim como os pais costumam incentivar o filho que tem um dom para a música ou leitura, por exemplo, desde cedo. De acordo com a educadora, a nossa cultura tende a valorizar a criança quietinha, organizada, estudiosa, prejudicando as que não têm esse perfil. 

A psicóloga ressalta que não é contra os diagnósticos, mas chama atenção para a maneira superficial como eles são elaborados por alguns profissionais da infância que, segundo ela, desconhecem o desenvolvimento infantil. “Eu sou psicóloga infantil e familiar, seria irresponsável e antiético da minha parte ser contra o diagnóstico. A minha bandeira é para ir com calma, tomar cuidado com essa banalização e com a pressa com que estão se fechando diagnósticos”. A seguir, veja outros trechos da entrevista com a especialista.

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Quais as características de uma ‘criança do movimento’?

É uma criança que tem uma necessidade muito grande de se movimentar, e dá um trabalho danado, incomoda o mundo adulto. Ela vem para tirar o professor, a mãe e o pai do sossego, e mobilizar neles uma entrega que muitas vezes o adulto não sabe e não quer dar, criando uma expectativa de que o filho tem que ficar quietinho. Quando ele senta à mesa, por exemplo, ele tem que sentar e terminar a refeição sem levantar. Mas uma “criança do movimento” não é assim. Querer prender essa criança na mesa vai gerar um estresse e um problema desnecessários, já que ela se alimenta, embora de forma “movimentante”. O Ian, meu filho, levanta várias vezes ao longo do almoço. E não é sobre eu levantar com o prato e correr atrás dele. O prato fica à mesa, ficamos todos à mesa almoçando. Ele levanta, dá uma volta, pega uma coisa e volta para a mesa porque o alimento está ali. Isso incomoda a ordem que o mundo adulto espera e dá medo nas mães e nos pais, que ficam na dúvida se o filho tem um problema. No meu TEDx e no meu livro recém-lançado faço um convite para o mundo adulto olhar para a inteligência por trás do movimento de uma outra forma, levando em conta a necessidade da criança e não o trabalho que ela dá.

Qual a diferença da “criança do movimento” para a que tem um transtorno como o TDAH? 

Vamos falar de uma criança que de fato tenha o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). O que marca a importância de fazer um diagnóstico e, após o diagnóstico, a gente pensar nas intervenções e até em uma medicação, que em muitos casos é bem-vinda, são os prejuízos que a criança apresenta. Se ela está tendo prejuízos na autoestima, por uma dificuldade de autocontrole, dificuldade no relacionamento, por uma impulsividade na relação com o outro e na frustração, ou ainda dificuldade de finalizar tarefas – e não estou falando de prova nem de nota, mas de tarefas e atividades que devem ser feitas no cotidiano – essa criança está apresentando prejuízos, especialmente no tripé autoestima, relações sociais e produtividade. E se tem prejuízos, a gente vai precisar olhar para isso e fazer uma investigação mais criteriosa para, se for o caso, fazer avaliações neurológicas, por exemplo, e avaliações contextuais na família e na escola, que permitam identificar que a gente está diante de uma criança com um transtorno do desenvolvimento ou um transtorno neurobiológico.

No seu TEDx, você fala em infância patologizada e crianças medicalizadas. Você poderia explicar esse cenário e por que ele é cada vez mais comum?

Não é um cenário atual, mas atualmente isso está muito, muito gritante. Eu trago até alguns dados que acho importantes: a Anvisa fez um estudo comparativo de nove anos e identificou que em 2020 aconteceu um recorde na compra de psicoestimulantes no Brasil. De fato, 2020 foi um ano assustador, atípico, mas dentre esses psicoestimulantes mais procurados está o metilfenidato, que é a medicação utilizada para o tratamento de TDAH. E em 2019 um outro estudo feito no Brasil constatou um boom nos casos de crianças com TDAH. E quando foram investigar a causa desse boom, identificaram erros nos diagnósticos, feitos de forma apressada, descontextualizada. Isso acontece quando um neuropediatra ou neuropsicólogo, por exemplo, fecha um diagnóstico tendo como base apenas o relatório de comportamento na escola e o comportamento que o profissional viu ali em uma única consulta. Isso é um diagnóstico apressado e descontextualizado porque o comportamento que a criança apresenta não pode ser o nosso ponto de chegada para fechar um diagnóstico, ele é nosso ponto de partida. Então, se a criança está com um comportamento muito agitado, desatento, impulsivo e agressivo, eu não posso fechar um diagnóstico só com base nesses relatos. É preciso entender o que pode estar por trás disso, visto que a criança se comunica pelo comportamento. Já atendi várias crianças extremamente desatentas e agitadas, que quando a gente ajustou o contexto de vida, a rotina, as relações e a comunicação familiar, a criança se centrou mais, se organizou, se acalmou. 

Poderia dar um exemplo desses ajustes?

Por exemplo, uma vez eu atendi uma criança que a escola tinha certeza que era um quadro de TDA (transtorno do déficit de atenção), porque ela não conseguia focar. E a mãe relatava que ela não conseguia terminar nada que ela começava. Só que quando fui me informar da rotina da criança descobri que, além de ir para a escola das sete horas da manhã às três da tarde, ela tinha mais cinco aulas especializadas ao longo da semana. E fazia o “para casa” às nove e meia da noite. Uma criança exausta, exaurida, hiperestimulada que jamais iria conseguir focar, fechar e finalizar. Eu falei com a família e sugeri que tirassem a criança de três atividades. Com o ajuste de rotina, em dois meses, o déficit de atenção entre aspas desapareceu. 

Os equívocos no diagnóstico têm sido comuns?

Sim, há uma banalização de diagnósticos por profissionais da infância que desconhecem o desenvolvimento infantil. Recebo dezenas de relatos diariamente de mães nas redes sociais, nos atendimentos que eu faço. Tem 21 anos que eu atendo famílias e nos últimos três anos tenho visto com frequência pais que levam o filho no neuropediatra ou psiquiatra infantil, numa sessão de 30, 20, 10, 5 minutos, e já saem com laudo e com a prescrição de uma medicação tarja preta. Isso é um crime. Isso é patologizar a infância. 

Eu tenho dito que está difícil ser criança hoje em dia. Se a criança está mais agitada, é porque tem TDAH,  se ela é quieta, é autista. Para cada característica, uma patologia. Parece que basta olhar para os comportamentos e já se fecha o diagnóstico. Isso é muito irresponsável, porque falar de transtornos do desenvolvimento, transtornos neurobiológicos – como TDAH, TEA (Transtorno do Espectro Autista), TOD (Transtorno Opositor Desafiador) – não é o mesmo que levar o filho no otorrinolaringologista por causa de uma dor de garganta, que o médico olha o sintoma e prescreve um antibiótico. 

Quando a gente fala de um transtorno, da possibilidade de diagnosticar isso, não é nessa lógica linear. É preciso um olhar psicossocial da criança, a sua história de vida, o contexto, a rotina, as relações, os estímulos que ela tem em excesso e os que ela tem em falta. E é preciso fazer um ajuste e dar um tempo para observar as reações da criança a esse ajuste. 

Quais os riscos de diagnosticar e medicar uma criança que não tem um transtorno?

São vários danos. Primeiro que quando eu faço um diagnóstico equivocado, eu coloco a criança num lugar, num rótulo. E os rótulos, muitas vezes, focam na limitação, no que falta. Infelizmente, o diagnóstico não deveria ser para isso. Além disso, o diagnóstico equivocado pode levar a criança a ser medicada desnecessariamente, tirando a vitalidade e a espontaneidade naturais, mobilizando além do custo, uma tensão e angústia na família ao ter de levar para profissionais e intervenções. 

Obviamente, que um diagnóstico bem feito, criterioso, quando a criança está com prejuízos na autoestima, no relacionamento, na produtividade, porque tem um transtorno de fato, é maravilhoso descobrir isso, porque mobiliza a qualidade de vida para a criança e para a família. A gente pode proporcionar intervenções adequadas e, se for o caso, medicá-la. 

Você diz que preocupante não é a criança que está o tempo todo desbravando, mas sim a que fica quietinha, por quê?

A criança quietinha é a que está na tela o tempo todo, hipnotizada, dependente desse universo. Ela não sabe inventar, não sabe brincar nem desbravar, se frustra, chora, grita, quer a tela, quer ficar quietinha. Isso é preocupante. Se o seu filho está mexendo, desbravando, inventando, tirando coisas do lugar, maravilha, sinal de saúde, sinal que ele é uma criança com sede de vida.

Por outro lado, é importante também que as crianças aprendam a ficar ociosas, num contraponto ao agito do dia a dia e dos eletrônicos, não?

É fundamental as crianças terem tempo livre, ocioso, sem estímulo, sem direcionamento. É nesse tempo ocioso, que a criança vai ficar entediada e vai poder criar. Às vezes, a minha filha Mel fala: “mamãe, não tem nada pra fazer”. Eu falo: “que ótimo, você pode inventar. Agora é a melhor hora que você vai inventar”. O tempo ocioso, o tempo à toa, fora das telas, fora da escola, fora de atividades direcionadas é vital para a criança criar, para ela descansar.

E para ela elaborar também o que vivenciou no dia, porque é no brincar livre e espontâneo que ela vai expressar os sentimentos dela, que ela vai encenar uma situação que ela vivenciou na escola, só que com os bonequinhos. Então, é extremamente importante esse momento. Uma das minhas linhas de frente para ajudar as famílias é justamente dizer que a criança precisa de tempo livre, ocioso, sem estímulo. Isso é fundamental.

Como a classe médica vê a sua defesa por essas “crianças do movimento”?

A classe médica atenta aos diagnósticos criteriosos, com olhar multiprofissional, vê com muitos bons olhos. Fiz o lançamento do meu livro agora em maio em Belo Horizonte, no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) e fiquei surpresa porque tinha muitos psiquiatras infantis, neuropediatras, psicólogos infantis, educadores, diretores de escola. Existem muitos profissionais que estão atentos a essa banalização. Claro que os diagnósticos são muito bem-vindos. Um diagnóstico precoce é importantíssimo. O quanto antes eu identifico que uma criança tem um transtorno é melhor para ela e para a família. Mas esse “o quanto antes” não quer dizer uma consulta, nem duas, nem três. Às vezes, um diagnóstico precoce criterioso vai demorar meses ou até um ano. Porque eu estou investigando, alinhando e ajustando o contexto, observando a reação da criança com esses ajustes, buscando um olhar multiprofissional. 

Das crianças que você recebe no consultório, você tem uma ideia de quantas têm algum transtorno?

No meu consultório, isso não é um dado científico, obviamente, mas 95% das famílias que me procuram são para ajustes familiares e contextuais. É que os adultos estão perdidos, assim como os estímulos que proporcionam. As crianças estão chegando hiperestimuladas com atividades, muito tempo de telas, pouquíssimo tempo ao ar livre, com a natureza. As mães e os pais não estão sabendo se conectar com os filhos, não sabem como criar tempo de qualidade, acha que é só ficar do lado, eu com o meu celular, meu filho com o dele e eu faço carinho nele. 

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