Ligar ou não a câmera: as fronteiras da intimidade na pandemia

Escolas insistem para que a câmera fique ligada na aula online, mas os alunos relutam em fazê-lo, por questões que incluem exposição de privacidade e até receio de sofrer cyberbullying

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Ligar ou não a câmera na aula online: as fronteiras da intimidade na pandemia; garoto olha para a tela do computador em que aparece uma mulher segurando um papel escrito
Ao mesmo tempo em que a câmera ligada favorece a interação, também expõe os alunos, que receiam em mostrar sua casa, a família e a si próprio nas aulas
Buscador de educadores parentais
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Os professores insistem, mas os alunos resistem: são poucos os que deixam a câmera ligada na aula online. Após mais de um ano de pandemia e ensino remoto, o uso da câmera traz à tona uma série de questionamentos: ao mesmo tempo que a ferramenta permite uma maior interação, também expõe a todos de maneira nunca antes imaginada, levantando discussões sobre privacidade, respeito e mesmo cyberbullying. Enquanto as escolas pedem que a câmera e o áudio fiquem abertos durante as aulas, e os professores tentam fazer com que os alunos sigam a orientação, crianças e adolescentes relutam em utilizá-los por motivos diversos. Receio de que os amigos reparem na casa ao fundo, na roupa usada, na cara de sono, no irmãozinho que não para de fazer barulho ou na mãe que insiste em saber se o filho vai bem na aula. Cada um com os seus anseios, o fato é que ligar ou não a câmera nas aulas online tem sido um dilema para crianças e adolescentes – pela exposição da casa, da família e, principalmente, de si mesmo – em um formato novo de ensino e aprendizado cujas regras têm sido pouco discutidas.

Para Luciene Tognetta, professora doutora do Departamento de Psicologia da Educação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, no interior de São Paulo, é preciso lembrar que “a presencialidade remota é uma nova forma de aula, que professores e alunos nunca tinham experimentado e ainda se acostumam a usá-la”. Segundo a professora, “uma coisa é você estar na escola, outra coisa é a escola vir até você e adentrar esse espaço que não é um espaço público mas sim um espaço de intimidade, que é a casa do aluno. Está em jogo aí uma relação público-privada muito frágil e sofisticada que precisa ser avaliada e estudada nesse novo contexto”.

Luciene ressalta que há diferenças entre acordar cedo, trocar de roupa, tomar café e ir até a escola e o momento atual em que todo esse ritual foi abolido. “Não estou dizendo que é certo que o aluno fique de pijama e lembre da aula um minuto antes de ela começar, mas é o que ocorre. Não posso simplesmente dizer ao aluno para ligar a câmera. Mais que impor a obrigação é preciso discutir o seu uso. A câmera aberta dá acesso a uma fronteira da intimidade que ainda não existe, não está construída e isso pode interferir na convivência com os pares e entre professores e alunos”, relata a professora, que também coordena a linha de pesquisa “Convivência na escola: virtudes, bullying e violência” no Gepem (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral), da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), no interior de São Paulo. Ela diz ainda que o professor precisa negociar e pensar em um formato de aula que fique bom para todos. “Há inúmeras maneiras de fazer o aluno participar, por meio de dinâmicas, perguntas ou ‘brainstormings’, por exemplo.”

“A câmera aberta dá acesso a uma fronteira da intimidade que ainda não existe, não está construída e isso pode interferir na convivência com os pares e entre professores e alunos”, diz Luciene Tognetta.


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Vergonha de mostrar a casa ou de se mostrar

Tatiane Ferreira Asakawa, mãe de Eric, 9 anos, Clara, 13, e Gabriel, 18, que vivem em São Paulo, diz que os meninos não se importam de ligar a câmera na aula online, mas Clara sim, porque tem vergonha de mostrar a casa. “A gente está fazendo reforma e ela não quer que os amigos vejam. Por isso, assiste às aulas de seu quarto, de um lugar que quando ela liga a câmera só se vê a parede”, conta a mãe. Para compensar a câmera desligada, Tatiane diz que a filha interage bastante, mostrando-se sempre interessada nas discussões durante as aulas, visto que isso conta ponto como participação nas aulas.

Ninfa Parreiras, psicóloga e professora de literatura do ensino fundamental 2 e do ensino médio, no Centro Educacional Anísio Teixeira (Ceat), no Rio de Janeiro, diz entender as várias questões que levam os alunos a não querer usar a câmera na aula online. “Muitas vezes, o aluno está em casa com a mãe, o padrasto, um primo ou a faxineira e não quer mostrar sua intimidade. Além disso, alguns não se arrumaram e assistem a aula deitados na cama de pijama, descabelados. Para o adolescente, principalmente, a questão da imagem pesa muito, ele não quer se ver e se preocupa com o que os outros veem dele”, relata a professora. Para ela, o mais importante é incentivar o aluno a participar da aula, mesmo que seja com a câmera desligada.

“Claro que a pandemia está prejudicando o ensino, mas temos de pensar no que é possível fazer agora. Se o aluno consegue ficar na aula, mesmo sem câmera, já é bom”, analisa a professora Ninfa Parreiras.

Em Jacareí, no interior de Sao Paulo, Víthor, de 11 anos, também fica apreensivo nas aulas online por causa da câmera. Segundo a mãe, Hellen Modesto, a escola pede que os alunos liguem a câmera – e por isso ela insiste para que o filho apareça – o que para ele tem sido um tormento.

Víthor tem dificuldade em processar e interpretar o que ouve – problema conhecido como PAC, processamento auditivo central – o que lhe exige mais tempo para entender o que o professor fala. “Perguntas que para os outros possam ser óbvias, para ele não são, devido a essa dificuldade que ele tem. Na escola, ele sempre sentou na frente e tinha um canal direto e quase privado com a professora. Hoje, dentro do Google Meeting, ou ele faz uma pergunta escrita, que todos podem ler, ou abre o áudio e faz a pergunta e todos ouvem”, comenta Hellen.

No geral, Víthor costuma ligar a câmera apenas para marcar presença na aula, desligando-a logo depois. “Eu insisto para ele abrir porque isso é levado em conta na participação durante as aulas”, conta a mãe. Ela recorda que certa vez o filho chegou a chorar porque, assim que ele abriu a câmera, a professora lhe fez uma pergunta que ele não sabia responder. “Ele entrou em pânico e seus olhos se encheram de lágrimas. Eu disse para ele ficar calmo, os colegas tampouco tinham a resposta, mas ele ficou com a impressão que ao ligar a câmera chamou atenção para si”, relata Hellen.

É preciso ampliar a discussão sobre cyberbullying

Assim como Víthor, muitos alunos temem virar motivo de piada entre os colegas e até serem alvo de bullying. A professora da Unesp diz, porém, que essa prática de agressão faz parte de qualquer relação entre pares e logo pode ocorrer nesse meio também, mas a discussão deve ir além. “Precisamos pensar no que temos feito para formar nossos alunos para questões de respeito e justiça e ampliar a discussão sobre o cyberbullying. Vejo muito poucas discussões nas escolas sobre discursos de ódio e casos de nude, por exemplo, que são frequentes. E a tendência é que esses problemas se agravem, levando a mais casos de sofrimento emocional, meninas e meninos ansiosos e deprimidos”, relata Luciene.

“Precisamos pensar no que temos feito para formar nossos alunos para questões de respeito e justiça e ampliar a discussão sobre o cyberbullying. Vejo muito poucas discussões nas escolas sobre discursos de ódio e casos de nude, por exemplo, que são frequentes. E a tendência é que esses problemas se agravem, levando a mais casos de sofrimento emocional, meninas e meninos ansiosos e deprimidos”, relata Luciene.


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Ligar a câmera favorece engajamento das crianças na aula

Embora as escolas no geral não obriguem alunos a ligar a câmera, a orientação para deixá-la ligada é ainda mais forte no caso de crianças menores, da educação infantil e do ensino fundamental 1. A professora de ciências bilíngue, Marina Gabriela Fachini Cavilha Senem, diz que na escola em que trabalhou durante 2020, no interior de São Paulo, os professores são orientados a convidar cada criança a interagir pelo menos duas vezes durante cada aula online, de modo que todos tenham as mesmas oportunidades de participação.

“Essa cobrança da escola de a criança participar oralmente é preocupante, pois não leva em consideração que algumas crianças são mais sinestésicas, outras visuais, outras orais, e nem sempre elas vão se expressar verbalmente. Nós professores conseguimos entender e utilizar isso a favor da criança, mas talvez “forçar” um modo de expressão pode ter repercussões ruins para o aluno posteriormente”, explica Marina.

Por outro lado, ela ressalta que câmera ligada dá oportunidade de engajar o aluno utilizando objetos ao redor dele e relacionados à sua realidade social e cultural. “Assim podemos fazer intervenções mais pontuais com relação a como e por que estão ou não aprendendo algo. Isso torna as aulas momentos ainda mais ricos e de troca de experiências”, diz a professora que dá aulas no 1o ano do ensino fundamental e na educação infantil, mas atualmente está de licença-maternidade e vive em Florianópolis (SC).

“Essa cobrança da escola de a criança participar oralmente é preocupante, pois não leva em consideração que algumas crianças são mais sinestésicas, outras visuais, outras orais, e nem sempre elas vão se expressar verbalmente”, diz a professora Marina.


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Pais que insistem em participar das aulas no lugar dos filhos

Além de favorecer o engajamento, a câmera também pode facilitar a intromissão da família na aula. Segundo Marina, há uma pressão dos pais que querem que os filhos interajam e muitas vezes acabam respondendo no lugar eles. “Muitos pais nem esperam os filhos falarem e já respondem por eles, talvez por receio de os filhos não terem respostas prontas. Isso atrapalha demais a aula”, ressalta Marina.

Alunos mais tímidos – A professora de ciência bilíngue avalia que a obrigatoriedade da câmera ligada pode ajudar alunos mais dispersos a participarem de forma um pouco mais ativa, porém faz com que os alunos mais tímidos fiquem retraídos. “Em geral, quem é tímido se fecha mais ainda e fica na defensiva. Ao invés de usar a atenção no processo, esse aluno acaba gastando a atenção tentando se defender da exposição e isso dificulta o processo de ensino e aprendizagem”, afirma Marina.

Saúde mental em foco

Para além da timidez, a falta de participação do aluno na aula pode revelar alguma questão mais séria. Na pandemia, estudos mostram que aumentaram muito os problemas de saúde mental em crianças e adolescentes. Para ajudar a combater esses problemas, escolas buscam adotar estratégias que promovam a interação social, através de atividades remotas e ou presenciais. “Os alunos que não interagem, não abrem suas câmeras e não conversam com os professores nos preocupam”, afirma Maurício Walter Moura, orientador educacional da Escola Nossa Senhora das Graças (Gracinha), na zona oeste de São Paulo. Ele conta que a escola tem uma equipe de profissionais das áreas da saúde e educação que está atenta a cada um dos alunos. “Essa equipe estuda, troca estudos de casos com os colegas e está perto do aluno, da sua família e se necessário, dos profissionais da saúde externos que atendem os alunos”, diz.


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