O ensino à distância, sem dúvidas, tem sido muito desgastante e desafiador para as crianças e as famílias. Neste contexto que estamos vivendo, muitas crianças desistiram de praticar as atividades extracurriculares online. Porém, as artes podem ser um respiro em meio a esta sufocante pandemia. Não é fácil adaptar as diversas formas artísticas para o ensino remoto. A Canguru News conversou com pais, professores e artistas que não desistiram das práticas com os pequenos, mesmo com todas as limitações, e desenvolveram estratégias para utilizar o mundo tecnológico da melhor maneira possível.
Cantando pela tela
Quando se trata de aula de música virtual, há muitos obstáculos para superar. “Como cantar em conjunto se os alunos estão separados? Como a qualidade sonora vai chegar pra eles? Como tocar arranjos musicais se eles não tem instrumento em casa?”, indaga Jéssica Dias, professora de música do ensino fundamental I no Colégio Waldorf Micael. A escola adotou o ensino híbrido durante a quarentena, o que dificultou a aprendizagem da disciplina. Não foi fácil conseguir transmitir o espírito artístico através de uma tela. “As aulas de música perderam sua qualidade intrínseca. Tudo, exatamente tudo, precisou ser adaptado”, afirma a educadora.
Para segurar a atenção dos estudantes no online, a professora recorreu a atividades e desafios corporais, em que as crianças se movimentavam, faziam percussão corporal e criavam danças. “Crianças são puro corpo, nada melhor do que propor atividades onde o corpo delas cante, dance e crie em sua mais livre expressão”, diz Jéssica. Para os pequenos conseguirem fazer música, utilizavam utensílios do cotidiano, como colheres, copos, garrafas e chaves.
Já que não era possível cantar em grupo, foram realizadas dinâmicas de pergunta e resposta, que os alunos apelidaram de “jogo do eco”. A professora também explorou bastante a escuta musical, o que gerou aulas muito interessantes sobre a cultura brasileira e suas influências. “Uma sala de aula virtual nunca antes foi navegada. Transformamos nossa profissão para dialogar com a internet, foi uma loucura!”, conta.
Segundo Jéssica, os familiares das crianças apoiaram muito a escola durante a quarentena. Além de reuniões e conversas com os responsáveis, também foram feitas palestras sobre educação, desenvolvimento infantil, ensino híbrido, saúde e medidas sanitárias. Como o colégio apresenta alunos de diferentes classes sociais, foram realizadas ações sociais em que receberam doações da comunidade escolar para conseguir internet e aparelhos eletrônicos para todos os estudantes.
Apesar de todas as condições adversas, Jéssica crê que é possível ensinar a disciplina, mesmo virtualmente: “Acredito que música é música em qualquer lugar, nós consumimos música digital o tempo todo”. Para ela, o importante é garantir que as crianças tenham oportunidades de experienciar a arte da música. “Essa vivência artística que toca a alma e o sentimento constrói um ser humano mais íntegro para a sociedade”, aponta a professora.
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Nas pontas: o ballet infantil no modelo digital
Apesar de ganhar maior visibilidade apenas ano passado, o ballet online é um movimento que já vinha crescendo há alguns anos. “Eu confesso que nunca fui a maior fã desse método, devido às suas muitas limitações”, conta Flora Andrade, diretora do Estúdio Miosótis: Expressões do Corpo. A dança exige um espaço apropriado, é necessário uma sala de aula com linóleo, piso flutuante e uma barra, para que os bailarinos consigam realizar os exercícios adequadamente e com menor risco de se lesionar. Por isso, foi bastante desafiador para os alunos e professores se adaptarem para o meio digital.
“Acho que a aula remota, se feita com muita atenção e supervisão dos professores, consegue surtir bons resultados”, opina Flora.
Em relação ao ballet infantil, Flora explica que primeiro tentou evitar ao máximo realizar atividades práticas online com as crianças, pois tinha receio que as pequenas poderiam se machucar em casa. “Elas ainda não sabem o que é o ballet, o que é a dança, e elas não tem base técnica. Cada movimento precisa ser muito bem estudado”, diz. No início da quarentena, quando pensavam que a pandemia iria durar pouco tempo, a equipe do Miosótis estavam suprindo a falta de aulas práticas com tarefas culturais para as aluninhas. “Pedíamos para as crianças assistirem a filmes de dança, fazerem desenhos, ouvirem a música e criarem uma coreografia. Procuramos introduzir atividades lúdicas focadas no aprendizado cultural”, aponta a diretora.
A partir do momento em que percebeu que a quarentena se estenderia mais do que tinha planejado, Flora resolveu aderir à aula online, porém, apenas particular. Quando começou a ver que os alunos estavam mostrando bons resultados, ela decidiu realizar aulas em grupo. Para sua turma de baby class, a adaptação foi mais simples. “No ballet infantil, a maior parte dos exercícios não tem grandes saltos ou passos de muito impacto. São realizados mais exercícios de base que, inclusive, as crianças fazem sentadas”, explica Flora. Já para as crianças maiores, foi bem mais desafiador. Muitos exercícios de giros e saltos que exigem mais espaço precisaram ser retirados do roteiro de aula.
Um problema do online é a falta de contato dos alunos com outros alunos. “Às vezes eu tenho duas crianças fazendo o mesmo exercício de modos diferentes, ambos estão certos, mas uma tem uma expressão facial diferente que muda completamente o sentido daquele exercício”, diz a professora. Outra grande dificuldade é a falta de contato direto dos bailarinos com os professores. No presencial, é muito mais fácil de corrigi-los. Flora conta que, muitas vezes, precisou pedir para que as crianças repetissem o exercício de diversos ângulos para conferir se estavam efetuando os movimentos corretamente.
Apesar dessas desvantagens, há alguns fatores benéficos do digital. A diretora diz que focou bastante em exercícios de força, o que no presencial, muitas vezes era deixado de lado. Estes exercícios ajudaram os alunos a aprimorarem sua técnica. “No ano passado, eu vi bons resultados, sim”, afirma. O Estúdio Miosótis também contou com grande apoio dos pais dos bailarinos, pois acreditavam que a aula online era a melhor forma de garantir que os filhos conseguissem praticar as atividades em segurança. Inclusive, a escola de dança apresentou o espetáculo “Quebra-Nozes” no fim do ano para uma plateia digital.
“O que a professora não tem de presença física ela tem que ter de presença emocional”
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Comodidade do online
Outra vantagem do digital é o fato de os dançarinos não precisarem se deslocar para o estúdio para conseguir fazer a aula, o que facilita acessibilidade para muitos. Este é o caso de Leila de Carvalho e sua filha, que foi aluna do Estúdio Miosótis. Ano passado, a família se mudou e seu novo endereço era bem mais distante da escola de dança. Demorariam cerca de uma hora para chegar às aulas, mas, com o modelo online, o problema da distância foi sanado.
Leila reorganizou toda a dinâmica da sala e, junto com a sua filha, montou uma barra para utilizar nas aulas. “Aqui em casa a gente se redescobriu e se reinventou”, conta. Além do aspecto da comodidade, o ensino à distância também abriu outras oportunidades. Leila explicou que a filha se adaptou facilmente e também participou de workshops que não conseguiria se fossem presenciais. A maior dificuldade foi não poder encontrar as amigas de dança, entretanto, como a filha tinha bronquite, o online foi a melhor forma de continuar as atividades.
No início deste ano, quando as aulas presenciais foram retomadas, Leila precisou mudar sua filha para uma escola de ballet mais próxima da sua nova casa. Então, despediu-se do estúdio que frequentou nos últimos 3 anos. Mesmo de forma digital, Leila acredita que é possível que a dança demonstre bons efeitos nos pequenos. “As crianças se entregam. A dança é uma maneira lúdica de fazer atividades físicas. Mesmo online, qualquer tipo de exercício é bem vindo, é muito gratificante”, aponta.
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As peripécias circenses são possíveis dentro de casa?
“Eu tinha 20 alunos no meu curso regular de circo, frequentando o galpão. Depois da pandemia, apenas 5 ficaram nas aulas remotas. E, no final do ano de 2020, apenas 2 alunos”, conta André Carvalho, professor de circo do Grupo Namakaca. Foi muito difícil conseguir manter o estímulo dos alunos à distância, mas André disse que procurou manter a alegria: “Minhas aulas eram sempre muito animadas com dinâmicas em grupo e sempre com muita palhaçada envolvida”.
O professor precisou fazer muitas adaptações. No online, manteve atividades de acrobacia de solo, como cambalhota e estrela. Também incluiu muita manipulação de objetos: malabarismo com bolinhas de meia, movimentos com cabo de vassoura e sacos plásticos. Uma enorme desvantagem é a falta de acesso aos materiais de circo. De forma remota, não é possível realizar exercícios no trapézio, tecido acrobático e com equipamentos de malabarismo. Apesar disso, uma grande vantagem foi a capacidade de acessar alunos de outras cidades.
André conta que recebeu bastante apoio dos pais. Diziam que as crianças ficam ansiosas esperando chegar o dia da aula e se divertem muito e ficavam felizes em ver os filhos saindo do sofá para fazer alguma prática física. “Acho que as atividades online podem ser de grande ajuda no combate à depressão e ansiedade. É um momento para dividir angústias e compartilhar algo que estamos todos vivendo”, opina.
O Grupo Namakaca trabalhava nas ruas e praças do Brasil inteiro. Desde 2004, já fez mais de 1500 apresentações. Porém, com a pandemia, teve que se adaptar. Para isso, criou oficinas de circo on-line, lives e apresentações virtuais. “Também estamos criando um canal no YouTube e a Namakaca TV para expandir o alcance de nossa arte e das aulas de circo”, afirma André.
O setor cultural já vinha sendo desvalorizado pelo governo há um tempo. Com a quarentena, sofreu ainda mais, pois foi o primeiro a fechar e, provavelmente, será o último a abrir. André declara que irá persistir durante este difícil momento e continuar espalhando a magia do circo: “Seremos resistência, por acreditar no bem de cura do riso e das artes cênicas”.
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