Algumas pessoas não têm coração. Outras parecem vir equipadas com mais de um. Minha mãe fazia parte do segundo grupo, e acho que dois de seus corações ficavam nas mãos. Se fosse possível partir minha saudade em pedaços, eu sublinharia a falta absurda do cafuné que ela me fazia durante suas conversas ao telefone — enquanto sua cabeça percorria dezenas de assuntos, a minha ficava estrategicamente posicionada sob as pontas dos seus dedos.
As mesmas mãos faziam pratos deliciosos aos domingos, construindo uma família em volta da mesa. Cedo tentei retribuir: em algumas noites eu fazia uma sopa de legumes, um dos nossos pratos preferidos. Com a ajuda dos caldos processados — pensava que aquilo era amor —, eu era rápida no preparo. Trazia a sopa fumegante, com orgulho idem. Era o nosso jeito de conversar.
Herdei da minha mãe o gosto por sabores ácidos, o desejo por sobremesas quentes e uma paixão cega por aquelas que levem banana. Mas, de seu talento para a cozinha, só me restou o livro de receitas. Ela se foi cedo demais para que eu tivesse tempo de aprender.
Comparado ao cardápio variado que mamãe preparava, meu repertório culinário se recolhe envergonhado quando o assunto é dar de comer ao meu filho. “Mamy, faz arroz perfeito?”, pede Francisco, sedutor. Meu arroz é bom mesmo: não uso pré-cozido — nem modéstia. Mas talento é o do menino para elogiar: enxergo cada fechar de olhos como uma estrela do Guia Michelin — paladar para isso, também tem: puxou ao pai. Ele, sim, cozinhava à altura de suas exigentes papilas gustativas. Fez questão de envolver nosso caso em geleia de morango caseira, carregada de açúcar — e afeto. Era o próprio amor no pote.
Um dos meus grandes desafios é agradar ao paladar do Francisco — o primeiro passo é o mais difícil: convencê-lo a experimentar um novo prato. Na tentativa de ensinar novos sabores, sou eu quem aprende. Descobri o prazer em picar legumes, passei a apreciar livros de receitas e faço da cozinha minha maior terapia. A cada novo preparo, aguardo ansiosa o veredito do menino. Que, diga-se de passagem, não tem garantia de longo prazo. Pode fazer a melhor cara do mundo e ser generoso na medida do elogio, mas só prova que gostou de fato ao pedir o preparo pela segunda vez. Ainda que nada até agora tenha superado o “arroz perfeito”, sigo com fé: ainda quebro esses nove anos de reinado.
Enquanto isso, vou amando com as mãos. Colocando em cada receita o meu gosto pela vida, alimento o menino de afeto — puro e orgânico. Tão intenso e concentrado que só uma pitada já fortalece.
Cris Guerra é publicitária, escritora e palestrante. Fala sobre moda e comportamento em uma coluna diária na rádio Band News FM e a respeito de muitos outros assuntos em seu site www.crisguerra.com.br. Na Canguru, escreve sobre a arte da maternidade.