Autonomia cada vez menor das crianças está associada à crise de saúde mental  

A partir de estudos do professor de psicologia Peter Gray, a terapeuta relacional Adriana Amaral reflete sobre como os pais helicópteros e o excesso de supervisão prejudicam a independência e o bem-estar mental dos pequenos

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Meninos correm sob banco de madeira em parque
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Por Adriana Amaral* – Ao observar as crianças brincarem nos parques, é interessante notar como elas ganham confiança à medida em que se arriscam, sobem, descem e se equilibram entre a instabilidade e a sensação de segurança. Elas trocam ideias entre si, se desafiam mutuamente, ao mesmo tempo em que se apoiam igualmente. São emoções estampadas nas faces de quem cuida e da criança que experimenta.

A vivência é da criança, mas muitas vezes, de acordo com a experimentação dos pais ou de quem está no cuidado, ocorre uma interferência grande no processo de aprendizagem – pelo visto, negativamente. Quem alerta para esse momento histórico crítico é o professor e pesquisador Peter Gray, do Departamento de Psicologia do Boston College (EUA). Ele é conhecido por seu trabalho sobre a interação entre educação e o brincar e por sua perspectiva evolucionista na teoria da psicologia. Gray fala não somente da experiência somática de organização e reconhecimento do corpo rumo à autonomia do movimento. Para ele, o modo como as crianças desenvolvem confiança, a capacidade de solucionar problemas, de ter controle e gerência de suas próprias vidas, e de enfrentar os inúmeros desafios têm base na experiência independente sobre situações e sobre si mesmas, ao conquistar gradualmente maior independência à medida que crescem – se deixarem – aí é que vem o alerta. 

Com a crescente crise de saúde mental que assola crianças e jovens, fica sempre uma pergunta persistente tanto no mundo acadêmico quando na vida como ela é: o que está acontecendo para que, tão cedo, crianças e jovens percam a fé na vida, desenvolvam crises de ansiedade, sintomas diversos e cheguem às vias do suicídio?  

Um artigo liderado por Peter Gray, publicado no The Journal of Pediatrics em fevereiro de 2023 cita dados alarmantes sobre uma “epidemia de psicopatologia” nos Estados Unidos, uma crise declarada como “Emergência Nacional”, com dados sobre a última década que não estão melhorando, muito pelo contrário. Na nossa realidade brasileira, as evidências são tantas e preocupantes, considerando o contexto das desigualdades.  

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Um estudo transversal com dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PENSE), de 2019, investigou 125.123 alunos de 13 a 17 anos, que deram respostas alarmantes: 

  • 4% mencionaram que não tinham amigos. 
  • 50,6% sentiram-se preocupados com as coisas comuns do dia a dia.
  • 31,4% sentiam-se tristes na maioria das vezes ou sempre.
  • 30% achavam que ninguém se preocupava com eles. 
  • 40,9% ficaram irritados, nervosos ou mal-humorados. 
  • 21,4% sentiam que a vida não vale a pena ser vivida.
  • 17,7% apresentaram autoavaliação para saúde mental negativa.  

A maioria desses indicadores foram mais frequentes em adolescentes de 16 e 17 anos, do sexo feminino, de escolas públicas. 

De acordo com o pesquisador, um fator pouco explorado nas pesquisas que ele correlaciona como altamente relevante é a notória diminuição da autonomia nas crianças e jovens. A principal causa do aumento das perturbações mentais é o declínio ao longo de décadas nas oportunidades para elas brincarem, vaguearem e participarem noutras atividades independentes da supervisão e controle direto dos adultos. Essas atividades independentes podem promover o bem-estar mental através de efeitos imediatos, como fonte direta de satisfação, e de efeitos a longo prazo, através da construção de características mentais que fornecem uma base para lidar eficazmente com o estresse da vida.  

A queda da autonomia não seria única causa dos graves problemas de saúde mental, mas há, de acordo com décadas de pesquisas, uma relação direta da atividade independente com o bem-estar a partir das perspectivas da teoria da autodeterminação e do descompasso evolutivo. O pesquisador ainda ressalta que essa queda começa algumas gerações para trás, na década de 1960, curiosamente quando surge o termo “Parentalidade Helicóptero”, metáfora que apareceu no livro best-seller “Between Parent & Teenager”, de Haim Ginott, que menciona um adolescente que reclama: “A mãe paira sobre mim como um helicóptero.”   

As crianças, antes consideradas competentes, responsáveis e resilientes, passaram a receber cada vez mais supervisão e proteção. Isso me lembra novamente, já citei em outro artigo, o psicólogo Albert Bandura, ao propor a Teoria Social Cognitiva, afirmando que todos os indivíduos possuem uma característica única – a agência humana. A agência humana consiste no gerenciamento que cada indivíduo faz acerca de suas ações. Estaríamos, dessa forma, com uma supervisão do tipo “helicóptero”, podando o agenciamento das nossas crianças?  Para os cientistas e na percepção de quem, como eu, trabalha com a infância a resposta é sim. Ao longo dos anos as crianças “Ganharam mais autonomia em alguns aspectos, como escolher o que querem vestir ou comer, mas perderam a liberdade para se engajar em atividades que envolvem algum grau de risco e responsabilidade pessoal, longe de adultos”, considera Gary em entrevista à BBC Brasil

Um exemplo de onde tudo isso vai parar fica por conta de prática que se tornou comum na China, em universidades como a de Tianjin, que vem construindo “tendas do amor” para acomodar os pais que querem acompanhar de perto os filhos matriculados, e dormem em esteiras dispostas no chão do ginásio, enquanto os jovens se adaptam à vida universitária. O fenômeno gerou um debate sobre o excesso de mimo e zelo dos pais e o quanto isso poderia prejudicar a independência dos jovens. 

Voltando às crianças no parque, muitas vezes há de se notar um efeito inverso na palavra estímulo: na sede por desenvolvimento saudável, as crianças brincam de forma tutoreada, com brinquedos prontos e participam de atividades dirigidas, sem livre demanda.  

“Brincar é uma das principais fontes de felicidade para crianças pequenas. Em brincadeiras e atividades independentes, nas quais estão fazendo as coisas por conta própria, elas se sentem bem, orgulhosas, têm a sensação de realização.” afirma Gray. Ele acredita que estamos causando o que ele denomina em seu artigo como “incompatibilidade evolutiva”, se reflexionarmos sobre o contraste entre as condições ancestrais em que as tendências e necessidades inatas das crianças teriam evoluído e as condições fornecidas para o desenvolvimento das crianças hoje. Temos muito a aprender com nossos ancestrais indígenas e a população ribeirinha, por exemplo. Muitas pesquisas realizadas mostram uma aproximação do brincar na natureza com o bem-estar integral da criança, conforme revela o aporte de artigos do programa Criança e Natureza, do Instituto Alana (para saber mais https://criancaenatureza.org.br/pt/nossas-acoes/nossas-publicacoes/). 

Será que nossa evolução (ou seria involução?) passará de crianças caçadoras-coletoras-brincantes para uma geração consumidora-imediatista-preguiçosa?  

*Adriana Amaral é terapeuta relacional, terapeuta familiar e mestre em psicologia psicossomática

Este texto é de responsabilidade do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Canguru News.

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