É entre os 6 e os 12 anos que, geralmente, a criança começa a sofrer abuso sexual. E não se trata de uma única vez – 69% dos casos são recorrentes, ou seja, o agressor – geralmente, alguém da família ou próximo a ela – pratica o crime com regularidade, na sua casa ou na casa da vítima. Apesar de haver dados sobre o assunto, a maioria dos casos ainda são subnotificados. Estima-se que apenas 10% das ocorrências de violência sexual contra crianças sejam registradas – outras 90% sequer chegam ao conhecimento da sociedade.
Ainda assim, dentre as violações de direitos a diversos segmentos sociais – como idosos, mulheres e pessoas com deficiência – as crianças e os adolescentes são as principais vítimas: 55% das denúncias em 2019 referiam-se ao público infantojuvenil, segundo dados divulgados nesta terça-feira (17) por uma pesquisa da ONG Visão Mundial, com base em relatório do Disque Direitos Humanos, o Disque 100.
“Esse problema não é visto e não é falado. Quando não sabemos sobre ele, também não sabemos como agir e como identificar uma questão como essa”, afirma Eva Dengler, gerente de programas e relações empresariais da Childhood Brasil, organização que faz parte da World Childhood Foundation, e atua em causas a favor de crianças em situação de vulnerabilidade em todo o mundo.
Eva explica que o abuso sexual não tem classe social, nível de escolaridade nem localização, atingindo crianças de diferentes condições socioeconômicas. “Na verdade, crianças e adolescentes de qualquer idade e de qualquer família podem ser vítimas de violência sexual”, diz, embora ela reconheça que questões de pobreza e desigualdade estejam entre os principais motivos relacionados a esses crimes. Além deles, situações de machismo, racismo e homofobia também pesam nesse contexto. Assim como o fato de que o abuso é cometido geralmente pelo pai ou padrasto, e a mãe, mesmo ciente, se nega a denunciar o companheiro pelo receio de perder o vínculo ou por questões de dependência econômica.
Neste mês de campanha do Maio Laranja, que busca jogar luz a esse problema tão sério, a Canguru News conversou com Eva Dengler. Leia abaixo a entrevista e ouça em áudio trechos de algumas de suas respostas.
Qual o perfil e a idade das crianças que sofrem abuso sexual?
A violência sexual contra crianças e adolescentes, tanto o abuso quanto a exploração, não tem classe social, não tem nível de escolaridade, tanto do agressor quanto da criança, e também não tem localização, ou seja, acontece tanto no meio rural quanto no meio urbano. Na verdade, crianças e adolescentes de qualquer idade e de qualquer família podem ser vítimas de violência sexual. Naturalmente, o abuso é a violência mais comum, e a exploração sexual está sim relacionada a uma questão financeira, a uma questão de desigualdade social, ou até mesmo a questões de abandono. Mas vale ressaltar que, em todas as classes sociais esse problema acontece.
Os casos ocorrem principalmente entre família?
O abuso sexual intrafamiliar é a violência sexual mais denunciada e a mais comum, principalmente praticada pelos próprios familiares, como pai, padrasto, tio e avô. Normalmente é um homem praticando com uma menina.
Esse não é um problema novo, porém, persiste. Por que é tão difícil combatê-lo?
A violência sexual é um problema multicausal, ou seja, como ela não tem uma única origem ou um único motivo, esse é o principal desafio do combate. Hoje nós identificamos como principais fatores de risco as questões sociais, ligadas tanto à questão da pobreza e da desigualdade social, quanto às situações de machismo, racismo e homofobia. As pessoas tendem a deixar essas questões em grande invisibilidade, por isso é tão difícil enfrentar esse problema. Ele não é visto e não é falado. Quando não sabemos sobre ele, também não sabemos como agir e como identificar uma questão como essa.
Muitas mães resistem a acreditar que os(as) filhos(as) sofrem violência, quando estes resolvem denunciar o criminoso. Por quê?
Quando existe uma revelação espontânea do filho ou da filha, sobre uma situação de violência sexual, e ela é contada para a mãe, é muito comum que haja uma resistência em avançar com a denúncia sobre essa questão. Existem algumas razões vinculadas a isso. Uma delas é o medo do agressor, até porque geralmente é o marido dela, então pode ser o pai da criança, ou o padrasto, ou até mesmo o avô ou tio, sendo que as relações mais difíceis são marido ou padrasto. O primeiro medo é a perda do vínculo com o seu companheiro, a mulher adulta não quer perder esse vínculo afetivo, e muitas vezes existe uma grande dependência econômica, o que a leva a não querer enfrentar a situação. Por incrível que pareça, também existe a possibilidade dessa mãe acreditar que foi a própria filha que provocou essa situação, principalmente quando já é um segundo ou terceiro casamento. Existem essas dúvidas constantes que justificam muitas vezes a não denúncia e o não enfrentamento e dificultam romper esse ciclo de violência.
O que pode ser feito para reduzir os casos de violência sexual?
No caso do Brasil, nós acreditamos que a redução da violência sexual contra crianças e adolescentes depende da prevenção. A prevenção é um dos aspectos mais complexos desse fenômeno, porque atualmente a nossa sociedade é conservadora e não aceita muito bem a educação sexual nas escolas. Pensando nisso, temos sugerido uma nova metodologia que desenvolve habilidades e condições nas crianças, para que elas estejam preparadas para enfrentar essa situação. Isso vem através da autoproteção, de forma que desde pequenas as crianças são ensinadas sobre os riscos que elas correm em determinadas situações, explicando não de um ponto de vista sexual, mas de um ponto de vista com a autoproteção, com cuidados relacionados ao próprio corpo e a pessoas que elas não conhecem. Principalmente, ensinamos que elas não precisam se sujeitar a determinação de nenhum adulto que elas não conhecem, ou até mesmo, de um adulto que elas entendam que seja de confiança, mas que exige delas um segredo. Devemos ensinar, desde pequenas, atitudes auto protetivas.
O que outros países conseguiram fazer com êxito sobre o assunto?
Apesar de ser um problema global, percebemos que em países de primeiro mundo, principalmente na Europa, as pessoas são mais esclarecidas sobre esses assuntos. As pessoas conversam mais abertamente com seus filhos sobre questões de auto proteção e até mesmo sobre a vida sexual, desde muito pequenos. Isso faz com que, naturalmente, essas crianças cresçam com mais capacidade de reagir diante de situações e ameaças em que são colocadas.
O quanto e de que forma a violência sofrida impacta o futuro dessas crianças?
A violência sexual contra crianças e adolescentes gera na criança um trauma muito grande, porque ela afeta tanto o desenvolvimento físico quanto o desenvolvimento emocional e psicológico dessa criança. Uma situação praticada em uma idade e em um momento da vida em que ela não está preparada pra isso, e o impacto emocional quando essa violência é gerada por alguém com quem essa criança tem uma relação afetiva muito grande, principalmente alguém muito próximo da família, como pai, padrasto, avô e tio, gera um trauma ainda maior. Gera um sentimento de culpa muito grande, de maneira que essa criança ou adolescente passa anos carregando uma culpa, achando que foi ela que provocou essa situação, quando não há uma devida responsabilização desse agressor. Por isso é tão importante não aceitar que nenhuma situação de violência contra crianças ou adolescentes fique sem solução, sem denúncia, solução e encaminhamento. Não podemos deixar que essa criança fique sem um cuidado posterior, do ponto de vista emocional e psicológico. Os traumas são muito grandes e podem afetar toda vida adulta dessa pessoa.
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