Tristes 9 meses: grávidas de fetos com malformação vivem luto no pré-natal

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    Joana Suarez, para a Agência Pública

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    “O Gael não veio para casa, mas fez parte da nossa vida”, conta Jordana, que perdeu o filho há seis meses
    Foto: Flávio Tavares/ Agência Pública

    No consultório:

    – Como você está, Claudilene? pergunta a obstetra.

    – Fisicamente? Estou bem, só o inchaço que está me incomodando…

    – E o coração? Como está em relação ao que o seu bebê tem?

    – Ah! Muito triste, né? Eu não queria isso. Entendo que meu bebê tem vários probleminhas, está muito doentinho e pode ser que ele não sobreviva.

    – O que você entende quando você fala “pode ser que ele não sobreviva”?

    – Sim, eu sei, é só uma questão de acreditar em Deus, mas eu tenho consciência.

    – Então você sabe que isso tem chance de acontecer na sua barriga, no parto ou depois que ele nascer?

    Ela afirma que sim com a cabeça.

    – Crença você tem que ter mesmo, é o que faz a gente seguir em frente –, conclui a médica.

    Quando a Pública esteve com Claudilene Ramos, o filho que ela carregava havia sete meses na barriga não tinha esperanças de sobreviver. Rins, pulmões, sistema nervoso e coração não se desenvolveram corretamente, e restava à vendedora de 30 anos acreditar em um milagre para suportar a gravidez. Tudo que os médicos podiam fazer era oferecer cuidados paliativos para essa mãe se preparar para a morte do filho antes mesmo de ele nascer.

    “Quando você perde um bebê, você perde… mas, quando você está esperando isso acontecer, é uma perda a cada dia”, diz Claudilene quase sussurrando, e emenda: “Mas são coisas da vida. Descobri que não sou só eu que passo por isso”.

    Segundo os dados mais recentes fornecidos pelo Ministério da Saúde (de 2015), a cada ano cerca de 7 mil mulheres enfrentam nove meses de gestação sabendo que, ao final, não terão um bebê para cuidar. “É o caso de fazer enxoval, doutora?”, elas costumam perguntar, desviando-se da questão dolorosa sobre quanto tempo poderão ter seus filhos no colo. “Ela não consegue perguntar se ele vai morrer. Entendemos o que está por trás e respondemos: ‘Vamos ver depois, esperar ele nascer’. E aí a paciente capta a situação, porque é muito difícil verbalizar”, contou a neonatologista Angélica Saraiva Teixeira, que muitas vezes é responsável por dar a notícia cruel para as aspirantes a mãe.

    Diariamente, no Brasil, morrem em média cerca de 20 bebês com malformação congênita, deformidades e anomalias antes ou depois de nascer. Essa é a segunda maior causa de mortalidade de recém-nascidos (até 27 dias) no país, perdendo apenas para complicações associadas à prematuridade. Entre as várias condições que impedem a sobrevivência do feto malformado fora do útero, apenas a anencefalia (falta de cérebro) tem previsão legal para a mulher interromper a gestação a qualquer momento, se assim ela desejar, por decisão do STF. Aquelas que estão grávidas de fetos com outros problemas, mesmo que incompatíveis com a vida, são obrigadas a cumprir todo o tempo de gestação.

    “Cárcere privado em seu próprio corpo” e “tortura”

    Grávidas de fetos com anencefalia foram incluídas entre os casos em que se permite o aborto legal no Brasil – os outros são os de vítimas de estupro e risco de vida para a mãe – em 2012 pelo Superior Tribunal Federal (STF). A ação que motivou a decisão do STF, movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde(CNTS) tramitou oito anos, com várias audiências públicas que reuniram cientistas, médicos, religiosos e movimentos de mulheres. Oito ministros foram a favor, acompanhando o relator, e dois contra: Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso.

    O voto do relator Marco Aurélio expressava que “a imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado final será a morte do feto vai de encontro aos princípios basilares do sistema constitucional”. Obrigar essa mulher a continuar com esse “tipo de gestação” seria uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, o que se assemelharia “à tortura”, nas palavras do ministro. Continua, porém, sendo a sina de mulheres grávidas de fetos com outras anomalias que os impedem igualmente de sobreviver.

    “Não é só o anencéfalo que é incompatível com a vida extrauterina sem possibilidade de reversão. Talvez a nossa sociedade não esteja preparada. O anencéfalo já tem a morte cerebral. Essa é a diferença”, apontou a obstetra Alamanda Kfoury, especialista em medicina fetal. Ela cita alguns casos em que a mãe deveria ter a possibilidade de decidir: “Na trissomia do [cromossomo] 18 e do 13 [síndrome de Edwards e de Patau], anomalias cromossômicas mais graves, agenesia renal [ausência de rim], displasias ósseas, que vai nascer e não vai sobreviver, cardiopatias complexas [doenças no coração]”.

    Durante dois meses, a reportagem da Pública acompanhou os atendimentos no Ambulatório de Medicina Fetal do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, coordenado por Alamanda. Ali chegam oito novas mulheres por semana, vindas de todo o estado. Em cerca de 5% das pacientes, o bebê não tem chance de viver, tamanha gravidade da malformação fetal. As médicas propõem, então, os cuidados paliativos e priorizam a mãe, que deve ser motivada a continuar o pré-natal porque, como em toda gravidez, existe um risco materno que aumenta junto com a barriga.

    “O curso da doença do neném está definido, não tem nada que a gente possa fazer para mudar o prognóstico [o que vai ocorrer no futuro]. Nosso enfoque é manter a gestante com a pressão controlada, sem diabetes, reduzir as complicações”, explicou Angélica, integrante da equipe do ambulatório.

    Mulheres em risco

    Também a mãe fica exposta a um risco muito alto. “Tem neném que tem problema no sistema nervoso grave, é tão fraquinho que não engole o líquido amniótico e vai acumulando, a barriga da mãe fica gigante, ela não consegue dormir de falta de ar, o útero fica esticado, quase rompendo, mas tem que levar a gravidez adiante”, exemplifica a médica Angélica para, na sequência, questionar se “é justo com essa mulher, que é sadia, que quer ter outros filhos, pagar esse preço por um bebê que não vai sobreviver?”.

    O filho da psicóloga Jordana Cristina de Lacerda, de 32 anos, tinha um tumor que pegava as estruturas internas do pescoço. “O tumor crescia o mesmo tanto que o bebê. Eu reclamava de inchaço e a barriga ficou muito grande. Era como se fosse uma gravidez de gêmeos”, relembra. No caso dela, havia uma esperança, ainda que pequena, de tentar um procedimento “heroico”, disseram os médicos, no dia do parto, mas isso poderia fazê-la perder o útero. O filho, no entanto, morreu 40 minutos depois de nascer. Ela não perdeu o órgão, mas terá que esperar mais dois anos para engravidar de novo.

    Isso sem falar no risco emocional, que às vezes supera o físico, como conta Cristina do Nascimento Silva, 38 anos. “Eu queria morrer, queria [me] suicidar. É tão traumático que sua vida perde o valor”, descreve Cristina, que perdeu Davi aos oito meses de gestação, quatro meses após ter recebido o diagnóstico de que seu bebê tinha a trissomia do 18, conhecida como síndrome de Edwards (uma falha na divisão cromossômica, no DNA do feto, que gera diversos problemas, malformação grave do coração, da parede abdominal, da coluna, entre outras anomalias). Cerca de 95% dos bebês com essa doença morrem na barriga.

    A legislação brasileira permite que a mãe que corre risco iminente de morrer por causa da gravidez possa abortar, mas só em casos de exceção, explica a médica Angélica, como um problema de coração gravíssimo que ameaça a vida da mulher. Cristina, que quis se suicidar, argumenta que esse “risco” é subjetivo, que não tem como medir o sofrimento dessa mãe.

    “Quando eu descobri, minha vontade era de tirar, era revoltante, muito pesado, mas depois fui entendendo. Não é que eu tinha ilusão que ia nascer e ficar bem, mas aceitei o tempo de vida dele. Tem clínicas que oferecem [o aborto], mas não apareceu nenhuma na minha reta”, afirma. Passados três meses da morte de Davi, ela considera que a decisão da interrupção tinha que ser do casal, não do Estado [através da lei]. “Eu chorava dia e noite. No trabalho, ia para o banheiro chorar, fui fazendo assim até Deus finalizar isso. Passava noites sem conseguir dormir, até hoje meu sono não voltou.”

    Claudilene Ramos acabou desenvolvendo diabetes gestacional, teve que cortar o doce de que ela tanto gosta, pão e outros carboidratos, fazer uma dieta rígida para controlar o problema que surgiu no sétimo mês de uma gravidez. Como o rim do bebê não funciona, não produziu líquido suficiente na placenta para ver se era homem ou mulher. “Eu chamo de neném”, diz ela quando conversa com ele tocando na barriga que está sempre mexendo: “Eu sinto ele aqui e choro o tempo todo. É muito complicado pensar que ele vai…”, não consegue completar sem engasgar.

    Tocam na barriga: “Que linda, é menino ou menina?”

    Quando Claudilene descobriu que estava grávida, a vontade de ter um filho era enorme. O diagnóstico do bebê aos três meses foi um baque. “Mas ainda tenho muita vontade de ter um bebezinho no colo”, desabafa. À medida que a barriga cresce e as pessoas passam a perguntar sobre o bebê, ela se sente exposta. “Falo que está tudo bem, que não deu pra ver ainda e desconverso. Tem hora que me afasto e vou chorar, mas tenho que aceitar ou desenvolvo uma depressão”, disse a vendedora.

    A médica Angélica orienta essas pacientes a dividir esse problema na gravidez com poucas pessoas de confiança. “Ninguém merece enfrentar isso sozinho, mas não precisa falar com todo mundo, porque é uma questão muito dolorosa e, a cada vez que conta, ela sofre, ela se emociona de novo”, aconselha a neonatologista.

    E as perguntas não cessam com o fim do barrigão. Quando o filho de Jordana nasceu e faleceu, as pessoas que a viram grávida perguntavam em sequência: “E o neném?”. “A gente não está preparada para ouvir que algo saiu do normal. Sinto que agora elas evitam falar de gravidez comigo. O Gael não veio para casa, mas fez parte da nossa vida”, conta Jordana, que perdeu o filho há seis meses.

    A interrupção seria um caminho natural se não vivêssemos em uma cultura que tem essa incapacidade de lidar com a morte, acredita Alamanda. “É um enfrentamento, é uma gestação difícil”, comentou a obstetra. Elas tendem a se isolar na dor, silenciar tudo que queriam dizer.

    Esperança

    Durante toda a gravidez, Jordana não teve certeza do diagnóstico do filho. Por ser um tumor raro, a chance de ele não sobreviver era grande, mas ela se apegava à mínima possibilidade que surgisse. Desse processo angustiante, participaram o marido, Thales Leonardo Machado, e a filha, Laura, de 6 anos, que continua querendo muito um irmãozinho. A pequena foi preparada por nove meses para a possibilidade de Gael não chegar em casa. Apenas os familiares mais próximos sabiam da doença grave. “Meu pai só perguntava se estava tudo bem, não queria dar conta disso. Mas quando compramos as fraldas ele comentou: “Você nem sabe se ele vai usar”. Mas, se ele não usasse, outra pessoa usaria”, afirmava Jordana para o pai e para si.

    E foi com esse pensamento que eles prepararam o quarto do Gael junto com o de Laura, compraram roupas, carrinho de bebê… “Era a chegada do irmãozinho mesmo sabendo da gravidade”, recorda Jordana. O mais difícil foi justamente contar para Laura que Gael não chegaria naquele quartinho. “Ela criou uma expectativa muito grande, por mais que a gente trabalhasse com ela a ideia. Contar para ela foi pior do que saber que ele tinha falecido.”

    A foto tirada dos pais com Gael na despedida foi para o porta-retratos da sala de casa, mas Laura pediu que guardassem, porque dava saudade. As lembrancinhas do irmão ficam guardadas em uma caixinha, que a garota faz questão de mostrar durante a entrevista. “Eu falava que queria ter dois filhos, já tive. Não sei se quero um terceiro, mas ela quer um irmão”, relata Jordana.

    O diagnóstico por volta do terceiro mês de gestação

    Saber que o filho que carrega no ventre está fadado à morte precoce acaba sendo um baque maior do que o desfecho. “Mesmo sabendo que o Davi poderia ter um tempo de sobrevida, quando confirmou o diagnóstico da trissomia do 18, incompatível, fiquei esperando o tempo de Deus, porque não tira, né?”, lembra Cristina.

    O luto começa no consultório: o momento em que o médico fala o que está acontecendo fica cravado na memória. Dali para a frente, elas oscilam entre uma impressão de sufocamento e de amor materno. “Aquele bebê que ela idealizou, o ‘bebê Johnson’, cai por terra e ela tem que desconstruí-lo”, aborda Alamanda Kfoury.

    No terceiro andar do HC, no ambulatório da medicina fetal, a grávida Marcela* ouviu atentamente, sozinha, a explicação da médica residente Daniella Ferreira Melo juntamente com Alamanda: “Vimos no ultrassom que seu bebê tem algumas alterações graves. Ele tem os dois rins com dilatação, uma bexiga grande, o que mostra alguma doença no aparelho renal, e a urina não consegue sair do corpo do neném. Como ele está na sua barriga, você faz a função do rim por ele, mas, quando ele nascer, vai ter que fazer isso sozinho. A gente precisa fazer um exame que colhe o xixi dele para ver se ainda tem como tentar preservar a função do rim, mas, se ele não consegue mais eliminar as impurezas, passa a não ter o que a gente fazer. A expectativa de vida fica muito prejudicada. O neném que não produz líquido não desenvolve corretamente o pulmão, e essa passa a ser mais uma dificuldade. Você entende o quê disso tudo?”.

    “Entendo que tem muita coisa complexa, tanto que eu estou desesperada… Eu não queria entender nada disso.”

    Marcela abaixa a cabeça com a mão no rosto e cai em prantos. Alamanda tenta confortá-la: “A gente te entende perfeitamente, as notícias não são boas. É compreensível que você não queira saber, mas é importante você estar bem informada… Não sabemos se ele vai viver cinco minutos ou horas, só sabemos que ele tem uma doença renal grave. Vamos te acompanhar e fazer tudo que pudermos em termos de tratamento ou de cuidados”.

    A equipe médica do HC busca dar esse prognóstico quando o companheiro, o pai, está junto com a grávida, mas nem sempre é possível, pois muitas vão sozinhas e os cuidados paliativos devem se iniciar o quanto antes.

    Rede falha

    Janaína* já estava com oito meses de gravidez quando recebeu, também sozinha, o diagnóstico da doença grave que causava a malformação cerebral. Ela tinha percorrido 700 km do norte de Minas Gerais até Belo Horizonte. Na sua cidade, ninguém soube diagnosticar o problema do bebê, perceptível desde os três meses, e ela foi encaminhada para o HC. Como ela não tinha onde ficar em Belo Horizonte, as médicas do ambulatório avaliaram não ser preciso que ela retornasse para fazer o exame de confirmação, pois era melhor aguardar o parto no mês seguinte. Mas Janaína, que viveu até ali sua gravidez com outras expectativas, recebeu a “bomba” para se preparar para a possível morte do filho nas próximas semanas: “Uma das nossas suspeitas é que o bebê tenha um tumor, uma massa que cresce de um jeito desordenado na cabeça dele e o cérebro não funciona direito. Isso é muito sério, porque o cérebro é o computador da gente, controla todo nosso corpo e o dele está muito comprometido. Então, ele corre risco de falecer depois que nascer porque está com excesso de líquido na cabeça, como se fosse uma cabeça de adulto no corpo de bebê. Você entende?”.

    Ela faz um aceno afirmativo com a cabeça, encolhe-se, e durante 40 segundos só se ouve o choro de Janaína na sala.

    Segundo as médicas, além da demora no encaminhamento, Janaína provavelmente passou por um pré-natal precário no interior, onde se faz apenas um ultrassom básico – o Projeto Diretrizes do Ministério da Saúde considera isso o suficiente –, ou o médico da cidade não tinha experiência para identificar a malformação. Quanto mais avançada está a gravidez, mais riscos corre essa mãe por não ter se planejado para não receber o bebê. “Na obstetrícia, o mais importante é a informação. Uma paciente orientada é uma paciente segura”, afirmou a obstetra Marina Victoria Mariz, também da equipe de medicina fetal do HC.

    “Aqui não tem nenhum médico competente para lidar com seu caso”

    Jordana de Lacerda descobriu logo no primeiro ultrassom particular que havia algo errado com o segundo filho. Era quinta de Carnaval quando, junto com o marido, eles foram ao plantão hospitalar comum, pelo plano de saúde, levar o exame para o obstetra. Ouviu do médico que teria que procurar um serviço especializado e foi encaminhada para o departamento do Hospital das Clínicas de Minas Gerais, que é a única residência médica e referência em medicina fetal no estado. “Ninguém quer receber feto com malformação. Existe uma insegurança grande do que fazer nesses casos”, diz o obstetra da equipe Gabriel Costa Ozanan.

     

    São poucos especialistas e a demanda no ambulatório é grande, a fila pelo atendimento especializado chega a dois meses de espera. Todo o serviço fica sobrecarregado, inclusive o berçário. Em torno de 3% das gestações são de fetos de alto risco, mas a maioria tem possibilidade de intervenção e tratamento. E esse bebê que tem mais chance de sobreviver precisa ocupar a vaga na alta complexidade hospitalar por um bom tempo. O ideal, então, seria que os casos em que não há alternativa terapêutica voltassem para o pré-natal de origem. A grande dificuldade é que toda a rede já abandonou essa mulher (grávida de um feto incompatível com a vida) e a referência de acolhida dela é no HC, onde eles proporcionam cuidados paliativos.

    Quatro obstetras, neonatologista, pediatra, geneticista, seis residentes e 12 alunos trabalham no limite da capacidade para atender 40 gestantes por semana. Antes, a equipe tinha psicólogo que atendia essas mães a partir do diagnóstico, durante o pré-natal. Mas esse profissional foi remanejado para outras áreas do hospital. “Eu precisei desse atendimento psicológico no início e não tive. Fui encaminhada à psicologia só depois do parto, achei tarde demais, era para ser junto com o pré-natal”, diz Cristina Silva.

    “O que eu fiz de errado?”

    O mais importante é que a mãe não carregue a culpa além do peso físico e emocional da barriga. “Queria entender o porquê. O que eu fiz?”, perguntava Claudilene. “Eu acho que o problema foi comigo mesma, o meu óvulo, por causa da idade”, afirmava Cristina, aos 38 anos, revelando que a culpa recai muito sobre a mulher. “A gente tende a assumir isso.”

    A primeira coisa que os médicos explicam é que as malformações surgem por um acidente genético, uma conjunção de fatores. “Quando ela pega o exame de gravidez, isso já está programado geneticamente. É grave, mas não foi nada que ela fez ou deixou de fazer. Essa culpa não existe”, destaca o geneticista Cezar Abreu, membro da equipe da medicina fetal. Ele acaba muitas vezes confortando essas mulheres nas perguntas seguintes à da culpa: “Vou poder engravidar de novo? Isso vai ocorrer novamente? Como vai ser o próximo?”.

    Para Claudilene, cujo bebê tinha rins e coração malformados, o médico respondeu que eles estudariam o caso para ver se chegavam a alguma síndrome que explicasse o que ocorreu. Depois do nascimento, quando é possível fazer mais exames no bebê, o diagnóstico é mais bem definido. Não se explicam todas as malformações, muitas se devem ao acaso, outras têm um risco previsto e, normalmente, é oferecido o aconselhamento genético ao casal após essa primeira experiência para entender a doença.

    “Tem casos que terão risco baixo, outros, elevado, de ocorrer novamente, mas a decisão [de tentar de novo] é do casal”, destacou o geneticista. Problemas hereditários ou relacionados à junção dos genes do pai e da mãe podem ter risco de repetição de até 50%. Se for uma síndrome cromossômica, que é uma falha na estrutura do DNA, a chance de ocorrer de novo, assim como da primeira vez, é raríssima – menos de 1% dos casos –, mas aumenta quando a mãe tem mais de 38 anos. “Hoje, com as mulheres demorando mais para engravidar, são maiores as ocorrências das trissomias do 18 e do 13, que são mais graves e com sobrevida de dias ou meses”, diz o médico.

    A mãe ainda tem que suportar crenças, preconceito e muito machismo da família e da sociedade. Claudilene, por exemplo, não viajou no último Natal para a cidade interiorana onde nasceu porque não queria expor sua gravidez “cheia de probleminhas”, como diz. A mãe dela, Maria das Dores Ramos, de 55 anos, sofre com as perguntas dos vizinhos. “O povo fala muito, em vez de confortar, diz algo que te deixa pior. Sem ela lá, eles já perguntam, falam que foi porque fez isso, fez aquilo”, comenta Maria, que mora longe e viajou nove horas até Belo Horizonte para acompanhar a filha na consulta. “É difícil vir, mas eu penso nela passando por isso todos esses meses e venho conversar com ela.”

    Além da mãe ao lado, Claudilene tem o marido, Ronan Moura, de 26 anos, que sempre que possível vai às consultas com ela. “No começo fiquei meio chateado, depois aceitei. Deus sabe de tudo”, diz. A preocupação dele agora é “cuidar para não acontecer de novo, ninguém merece passar por isso nem uma vez, quanto mais duas”, complementa Claudilene.

    Abandono do pai

    Muitas mulheres, porém, chegam ao serviço de medicina fetal desacompanhadas e enfrentam sozinhas a gravidez enlutada, como aconteceu com a manicure Rosélia Cardoso de Jesus, 40 anos, que não era casada com o pai do bebê. “Ele deu o apoio que ele achava que podia dar, a dor maior eu passei sozinha, eu e Deus”, conta.

    Mesmo casada, Cristina Silva também se sentiu sozinha enquanto pesquisava tudo sobre a doença que seu bebê tinha e o marido preferia não saber de nada. “A sensação que eu tinha era que ele estava em um mundo e eu em outro”, ela diz.

    Dois meses depois, Cristina ainda enfrenta a depressão pós-parto. “Emagreci cinco quilos em uma semana, estou tomando Centralina [remédio] ainda. É um vazio enorme que a gente sente no fim.” Durante a gravidez, ela sentia-se anestesiada, mas não tinha como “entregar os pontos, precisava ser forte, segurar”, afirmava. Davi quase não mexia na barriga, não era uma gestação normal, nas palavras dela, em que o casal pensa no nome juntos, compra coisas para o bebê. Eles fizeram algumas fotos “grávidos”, mas só para ter como lembrança. “Já tinha esse luto, não quis gastar, sabia que ele podia falecer”, justificou Cristina.

    O pai de Gael, Thales Machado, quis ficar com o bebê, mesmo sem vida, no colo, por mais de uma hora até que Jordana se recuperasse da anestesia para que ambos se despedissem do filho. “Foi muito difícil, mas ele era lindo, lembro da silhueta dele” – Thales refaz o gesto de como o segurava. Tudo tinha sido combinado entre a família e a equipe médica meses antes do parto. Fazia parte dos cuidados paliativos, da preparação para a partida do bebê.

    No hospital, os bebês podem ser batizados, tirar fotos, receber visitas, e a família tem o direito de fazer todos os ritos e despedidas. “É um bebê que vamos cuidar, que assim que nascer vai receber calor no colo, comidinha, remédio para dor, mas não vamos fazer procedimentos desnecessários nem causar maior sofrimento visando um resultado que não existe”, explicou a médica residente Daniella Melo à paciente que iniciava os cuidados paliativos. Algumas crianças recebem alta para viver seus últimos dias em casa, pois em casos mais raros podem sobreviver meses, e os cuidados por uma melhor qualidade de vida continuam.

    “A gente mostra para a família que queremos o bem-estar do neném. A medicina e a tecnologia hoje mantêm qualquer pessoa viva [em tubos no CTI], mas a que preço emocional e financeiro? É justo? É humano?”, indaga a neonatologista Angélica, e responde que, muitas vezes, não é digno, sobretudo, quando se tem certeza do diagnóstico. Nunca houve um processo judicial contra a equipe de medicina fetal. “Somos muito transparentes com a mãe, não podemos simplificar o problema e ela consegue entender”, destaca Angélica.

    Parto normal

    A maioria dessas mulheres faz o parto normal, mesmo se o bebê morre na barriga no fim da gestação. A cesariana, como em toda gravidez, só deve ser feita em circunstâncias restritas. “Muitas se revoltam quando recebem o diagnóstico, querendo fazer uma cesariana amanhã”, conta Alamanda, que explica para elas que, além de estarem proibidas de interromper a gravidez, os riscos de uma cesárea são maiores.

    Cristina descobriu que Davi tinha morrido na sua barriga aos 8 meses e foi internada para induzir o parto normal. Como ele era muito pequeno devido à trissomia do 18, ela só precisou de 5 cm de dilatação. No mesmo quarto, havia uma mulher interrompendo a gravidez de um bebê anencéfalo aos cinco meses, também pela via normal.

    Uma grande preocupação dessas mães é ficar em quartos de mulheres “sem filhos”, aonde não vai chegar um bebê para ser amamentado. É que dali elas terão que seguir para o enterro dos seus. Com a certidão de nascimento, recebem a de óbito. “Não fiz velório, não vale a pena fazer. Você fica querendo que aquilo passe logo”, revela Cristina, que assim como as outras já velava o filho grávida.

    Passado o enterro, elas enfrentam a segunda fase do luto, a do ninho vazio, de um bebê que saiu de dentro delas e não foi para casa. “Era para eu estar com um neném aqui, eu estranhei demais, não conseguia comer”, recorda Cristina.

    Decisão difícil, mas possível

    No cenário da anencefalia, quando as mulheres optam pela interrupção, só é preciso confirmar o diagnóstico, e essa paciente já é internada para fazer o procedimento. Em qualquer outra malformação de prognóstico ruim, a equipe de médicos, residentes e estudantes revela-se frustrada por ter que se restringir à lei, que proíbe o aborto. “Tem paciente que, se tivéssemos condição de oferecer [essa opção], aceitaria e isso resolveria, o que faz a gente ficar extremamente chateada”, afirmou a residente em medicina fetal Daniella.

    Contudo, não é porque essa mulher tem o direito que ela vai decidir abortar. As médicas do HC arriscam dizer que a maior parte das que recebem o diagnóstico de anencefalia escolhe manter a gravidez. Algumas se sentem acolhidas com os cuidados paliativos e aceitam o tempo imposto. Mas o tabu em torno da morte está no pano de fundo de muitas decisões. “Envolve questões religiosas, a mãe tem dificuldade de intervir no tempo de vida do bebê e se sente responsável pela morte do filho”, explicou a obstetra Alamanda, ressaltando que essa é uma característica do Brasil. “Em outros países, se fez ultrassom e deu alteração, vai na sala ao lado e interrompe”, acrescenta.

    Estigma

    Mesmo as mães que podem optar pelo aborto, como nos casos de anencefalia, sofrem com a decisão. A dona de casa Lígia Rodrigues Aguilar, de 30 anos, interrompeu a gestação aos cinco meses, assim que o ultrassom confirmou a ausência do cérebro. “O médico falou que minha pressão estava muito alta, eu podia correr risco e o bebê ia sobreviver poucos minutos. Foi difícil, a gente fica sentida, mas eu estava fazendo o melhor para os dois.”

    Ainda assim ela se sentiu culpada, vazia, e teve depressão pós-parto. “O peito ficou saindo leite depois, queria ter meu filho comigo, dar banho, cuidar…”, narrou Lígia, que tem quatro filhos adolescentes que precisam dos cuidados dela.

    O bebê de Rosélia Cardoso de Jesus, 40, tinha acrania (ausência de calota craniana) e evoluiria para anencefalia. Com cinco meses de gravidez, ela foi internada para induzir o parto. “Não tinha mais nada o que fazer pelo bebê, precisava cuidar da minha vida. Cada dia que passava era um sofrimento quando eles falavam que era incompatível. Só pude pegar ela [era uma menina] no colo, mas foi melhor pra ela e pra mim”, acredita Rosélia.

    O tempo de sofrimento não foi encurtado para Cristina, que teve que sentir a morte do filho na barriga para fazer o parto, por não ser caso de interrupção legal. Ela já poderia estar grávida de novo se não tivesse que ter aguardado oito meses. Hoje, ela percebe que viveu um intenso desgaste e que foi em vão. “Ele [o bebê] era incompatível com a vida, mas e eu, posso morrer?”, questiona e, sem demora, repensa: “Essa questão de tirar [o feto] envolve muito o nosso lado espiritual. Você não vive um sofrimento, mas vai viver o outro.” De tudo que passou, ela diz ter aprendido a dar mais valor à vida.

    Mulheres na Justiça

    Uma via que as mulheres estão buscando – e conseguindo resultados – é a judicial. Os médicos fornecem laudos, ultrassom e relatórios falando da gravidade da doença, do mau prognóstico, que não há tratamento, e mandam para o juiz analisar. Já há uma série de ações em que o juiz se sensibilizou e usou a mesma justificativa da anencefalia para autorizar o aborto.

    “A exposição do processo judicial é um drama, muitas desistem, e se demorar muito não resolve o problema [por causa do tempo de gestação], mas os tribunais já estão compreendendo isso com mais facilidade”, explicou Gabriela Rondon, pesquisadora e advogada do Instituto de Bioética Anis. Ela incentiva mulheres com gestações comprovadas de fetos malformados a buscar o Judiciário, pois as sentenças têm sido favoráveis e ajudado a diminuir o sofrimento. “O Superior Tribunal de Justiça [STJ] já reconheceu que a decisão da anencefalia tem que ser estendida a outros casos”, aponta Gabriela. Segundo ela, a luta é pelo direito de a mulher escolher, “para aquelas que gostariam de interromper esse sofrimento mais cedo não ter que enfrentar esse processo torturante de uma gravidez até o fim. O contexto atual é muito cruel para as mulheres”, avalia.

    Enquanto tramita uma nova ação no STF para descriminalizar todo tipo de aborto, avançam na Câmara dos Deputados e no Senado projetos como a PEC 181, que pretende criminalizar novamente o aborto mesmo nas condições em que atualmente é permitido. “A liberação do aborto para a anencefalia foi o primeiro passo. Se tudo voltar a ser crime, vai retroceder demais. A gente não pode deixar que os conceitos pessoais, religiosos e filosóficos interfiram na escolha da paciente”, defende a médica Alamanda Kfoury.

    O obstetra Gabriel Ozanan rememora que o exame da translucência nucal, feito no início da gravidez, para verificar malformações, foi disponibilizado como objetivo de dar tempo de abortar nas primeiras semanas. “Em muitos países é assim, EUA, Inglaterra… nós que não temos essa cultura. Nas trissomias do 13 e do 18, deveríamos ser mais liberais”, avalia o médico. No Brasil, o exame só serve para sanar a curiosidade da paciente e para ela se preparar, dependendo do resultado. A classe médica, geralmente, é receosa em levantar essa questão para não ser tachada como “aborteira”.

    A Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM) incluiu, em setembro do ano passado, um documento (amicus curiae) na ação proposta ao STF para descriminalizar o aborto, emitindo opinião como especialista e pedindo para ser ouvida no julgamento. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 completará, em março, um ano desde que foi ajuizada pelo partido Psol e libera o aborto para qualquer mulher com até 12 semanas de gravidez. A SBGM pede que esse tempo limite seja estendido em casos de malformações graves e doenças crônicas dos fetos, já que tal diagnóstico pode demorar mais que três meses.

    Nas justificativas do pedido, geneticistas indicam um levantamento feito pelo Guttmacher Institute no qual se estima que, em 2014, tenham ocorrido entre 22,5 mil e 44 mil mortes maternas relacionadas ao aborto inseguro no mundo. A entidade expõe que os profissionais da área de genética “são colocados diante do sofrimento de famílias e, especialmente, das mulheres gestantes, sendo compelidos a encarar a temática do aborto, tendo em vista que muitas mulheres que se deparam com um laudo de malformação fetal manifestam o desejo de interromper a gravidez”.

    Se sai o contexto duro da criminalização, justifica a SBGM, e entra um cenário de respeito ao direito de acesso à informação, à integridade física e psicológica e à dignidade, torna-se possível prosseguir ou interromper a gravidez com as condições adequadas para cada uma dessas opções. “Importa ressaltar, nesse ponto, que a realização dos exames de pré-natal e os esclarecimentos sobre malformações ou doenças não possuem o condão de induzir a mulher a optar pela interrupção ou de colocar nas mãos do médico essa decisão”, finaliza o documento.

     

    *Nomes fictícios a pedido das pacientes

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