Por Adriana Amaral* – Cada dia mais cedo, bebês, crianças e adolescentes recebem diagnósticos de algum transtorno mental ou neurológico. Não que sejam ilegítimos em sua etiologia e sintomatologia, mas parece que não há mais chances para outras possibilidades. O especialista manteria em seu poder uma espécie de varinha que define a que transtornos essas crianças devem obedecer na infância?
Recentemente, uma criança que ainda não havia completado dois anos, chegou ao consultório trazido por sua mãe, visivelmente abalada pelo triplo diagnóstico dado por uma neuropediatra: Transtorno Opositor Desafiador (TOD), Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Com apenas 1 ano e 10 meses, não teve a chance de mostrar que a oposição em soltar seu brinquedo, diante de um estranho – o médico especialista – estava de acordo com sua faixa etária e ao apego aos seus adultos de preferência: seus pais.
Buscando analisar a origem da palavra “transtorno” na língua portuguesa, me deparei com vários questionamentos: 1. ato ou efeito de transtornar, ou situação que causa incômodo a outrem; 2. contratempo; situação imprevista e desfavorável; contrariedade, decepção, e por último, 3. qualquer perturbação da saúde. Se transtorno é o efeito de transtornar, será que os vários transtornos da infância não servem ao ofício de transtornar a disfuncionalidade dos ambientes em que estão imersas, numa tentativa de sinalizar e pedir socorro para a urgência atencional que demandam dos adultos?
Transtorno pode ser lido como uma situação que causa incômodo a outrem. E quem seria esse outro que não suporta os “excessos” do comportamento infantil? A escola que não suporta o descontrole ou apenas manifestações de alegria e entusiasmo? A família, que não suporta a fala descontrolada ou o corpo em constante movimento quando deseja o silêncio? Não seria apenas um ressentimento por não poderem brincar livremente como seus filhos, já que se tornaram adultos e, portanto, não há espaço para o lúdico?
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Imprevisto. Ninguém imagina que algo sairá do controle quando se planeja um filho. Há desejo de controle, fantasia do dar conta. Nessa imensidão de desejos inconscientes (ou conscientes!) a vida nos prega peças, os filhos não são nossos. Ou são: os nossos imprevistos. É justo adoecer aquilo que não conseguimos controlar? Seriam imprevistos desfavoráveis ao nosso narcisismo parental?
Contrariedade. Decepção.
Embutidos nos transtornos da infância, um mar de significados obscuros e pesados. Qualquer perturbação na saúde nos transtorna. Seria correto dizer então que os nossos transtornos da idade adulta perturbam a infância, transtornando-a?
“A psicologia infantil tornou-se a ciência do comportamento estranho da criança, em um lugar estranho, com pessoas estranhas, pelo menor período de tempo possível.” (Psicólogo russo-americano Urie Bronfenbrenner).
Um estudo publicado na Psychiatry Research em 2019 concluiu que os diagnósticos psiquiátricos são cientificamente sem utilidade no diagnóstico de alterações leves na saúde mental. Dentre os achados desse artigo, alguns pontos se fazem bem relevantes:
1. Existe uma grande sobreposição de sintomas entre diagnósticos, isso torna muito sutil a diferenciação entre os possíveis diagnósticos e, consequentemente, dificulta o direcionamento da melhor intervenção;
2. A maioria dos diagnósticos mascara ou não leva em consideração o papel do trauma ou eventos adversos: eles focam mais em características biológicas. Isso acaba produzindo um reducionismo ao olhar o quadro do paciente;
3. Os diagnósticos não levam em consideração a individualidade do paciente e qual tratamento eles precisam. Por mais que o objetivo seja uma descrição geral dos transtornos, é necessário levar em consideração, mesmo que minimamente, as características individuais. Essa informação interfere diretamente no tratamento e intervenção a serem escolhidos.
Bronfenbrenner desenvolveu a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano, fundamentada no paradigma sistêmico e na perspectiva do curso de vida contextual aplicada ao estudo do desenvolvimento familiar e humano. O paradigma sistêmico teve origem após a Segunda Guerra Mundial, na década de 1950, sob influência do biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy, que considerava limitado o poder explicativo do paradigma positivista sobre os organismos por deter as características deterministas e unidirecionais; diferentemente, o organismo é um sistema complexo, constituído por vários elementos interconectados, que devem ser compreendidos em suas particularidades e correlatamente como totalidade. Para Bronfenbrenner resumir a psicologia do desenvolvimento somente pelo viés avaliativo-conclusivo, seria como transformá-la (ou transtorná-la?) numa “ciência do comportamento desconhecido da criança em situações desconhecidas com adultos desconhecidos pelos períodos de tempo mais breves possíveis”.
“A infância é o chão por onde caminharás o resto da tua vida” (Lia Luft)
O novo paradigma sistêmico oferece um novo olhar para o todo, sendo ele muito mais complexo do que apenas a soma das partes. A vida é um território complexo, a infância se desenrola sobre a vida, portanto não será diferente. Reconhecer essa complexidade é vital para que se permita que crianças sejam crianças, ou será que a infância estaria com os dias contados? Não a infância como contagem de tempo, mas o conceito de infância ameaçado por um mundo que adultiza a criança e infantiliza o adulto, como descreveu o crítico social Neil Postman em seu livro “O desaparecimento da infância” (Ed Grafia, 1999). Cabe a leitura e a reflexão.
Pensar sistemicamente nos leva a incluir uma palavra familiar aos que trabalham com linguagem, como eu: contexto. Se há contexto quando se fala em ser humano, há relação. Sem observar contextos e relações, se cai no determinismo do comportamento observável como o único fiel dado a ser avaliado, reduzindo as possibilidades da criança de “estar passando” por alguma turbulência. Reforço em aspas a possibilidade do temporário na vida das pessoas.
Crianças emparedadas
Não há uma conclusão a fazer na minha escrita, é justo um mar de questionamentos que nos fazem humanos em busca de soluções e novas possibilidades de existir. Nosso contexto histórico atual nos conta sobre o emparedamento da infância, termo atual representativo do afastamento que impomos às crianças dos ambientes naturais; diminuição ou eliminação do tempo de brincar através de exageros de compromissos com agendas lotadas, hiperconexão digital, relações empobrecidas e distantes e dependente de grandes figuras midiáticas que ditam regras e costumes, além do pouco tempo dedicado ao descanso dentro de uma cultura de produtividade, para elencar alguns dos fenômenos sociais contemporâneos.
Então, antes de pensarmos em algum transtorno, não seria interessante ao adulto refletir o quanto ele próprio anda transtornado? E não para se auto-culpabilizar, talvez para compreender que a criança que foi ainda pode estar em fuga, procurando um lugar seguro e liberto onde possa ser apenas criança.
“O que as crianças aprendem quando ficam presas? A fugir.” Ailton Krenak
*Adriana Amaral é terapeuta relacional, fonoaudióloga e psicomotricista, especialista em neurociências da aprendizagem, mestre e graduanda em psicologia e orientadora familiar. Colaboradora do Nupeden (Núcleo de Pesquisa, Ensino, Divulgação e Extensão em Neurociências) da Universidade Federal Fluminense (UFF), professora convidada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e escritora.
*Este texto é de responsabilidade do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Canguru News.