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Menores fora das redes: a exclusão da Austrália é cuidado ou ilusão?

Crianças e adolescentes com menos de 16 anos estão oficialmente proibidos de acessar redes sociais como TikTok, Instagram, Facebook e YouTube na Austrália. As plataformas que descumprirem a nova lei podem pagar multas que chegam a 49,5 milhões de dólares australianos (cerca de R$ 179 milhões). A decisão, inédita no mundo, nasce de uma preocupação crescente com os impactos das redes sociais na saúde mental e na segurança de jovens — e está sendo observada atentamente por outros países, inclusive o Brasil.
Enquanto a medida traz alívio para alguns, para outros, levanta um alerta: será que proibir é eficaz para proteger? De acordo com a pedagoga Mariana Ruske, fundadora da Senses Montessori School (SP), a motivação do governo australiano parte de um lugar compreensível. “A tentação de proibir nasce do medo. As redes expõem crianças e adolescentes a riscos reais, e muitos pais sentem que perderam o controle. A proibição parece uma resposta rápida, quase instintiva, especialmente em contextos de sobrecarga familiar”, analisa.
Mas ela faz um alerta central: proibir não educar e educar é o que realmente protege. “A proibição pode aliviar a ansiedade dos adultos, mas não forma autonomia, pensamento crítico nem capacidade de autorregulação. E são justamente essas habilidades que blindam as crianças quando os adultos não estão por perto”, afirma.
Controle ilusório
Confiar apenas na proibição pode criar uma falsa sensação de segurança. “A adolescência é a fase de testar limites. Quando algo é proibido, não desaparece — apenas se desloca para espaços mais difíceis de supervisionar”, explica. Contas falsas, perfis clandestinos, celulares emprestados, VPNs e plataformas menos reguladas entram rapidamente em cena. “O que protege de verdade não é a ausência de risco, mas a capacidade de lidar com ele. Quando proibimos sem educar, tiramos o celular, mas não colocamos diálogo, senso crítico ou vínculo no lugar. A criança segue desprotegida”, diz.
Esse deslocamento para a clandestinidade, segundo a pedagoga, transforma um problema educativo em um problema de saúde pública. “O uso escondido tende a ser mais intenso, menos regulado e mais perigoso. E, quando o diálogo some, o jovem não conta se sofre assédio, se recebe pornografia inesperada ou se entra em conflitos online”, alerta.
E no Brasil?
A educadora traz a conversa para o contexto e brasileiro e destaca um ponto sensível. A pesquisa Meninos, Criando Homens, do Instituto Papo de Homem, mostra que muitos meninos crescem sem referências positivas de masculinidade dentro de casa. “Nesse vazio, eles buscam modelos na internet: influenciadores radicais, youtubers agressivos, pornografia. Os maus exemplos prosperam onde os bons faltam”, afirma. Por isso, ela defende que a metáfora mais honesta não é “tirar o peixe”, mas ensinar a pescar. “Educar para autonomia, pensamento crítico, responsabilidade emocional e vínculos afetivos fortes é algo que a proibição, sozinha, não faz”, avalia.
A neuropsicopedagoga Isa Minatel, autora dos livros Crianças Sem Limites e Temperamentos Sem Limites, avalia a decisão australiana como “corajosa e necessária”, mas entende que é uma medida também bastante complexa. “O efeito imediato tende a ser menos tempo de exposição às plataformas mais viciantes, com feed infinito e design pensado para capturar atenção”, explica.
Ela alerta, porém, para um impacto emocional importante nos primeiros meses. “Pode surgir um vazio social real: ‘onde eu encontro meu grupo?’, ‘como eu pertenço?’. Isso não é futilidade. Pertencimento é uma necessidade humana básica e, na adolescência, ela grita”, afirma. “A identidade não nasce da rede; a rede amplifica. Ela virou um palco, muitas vezes, de performance constante e performar o próprio ‘eu’ o tempo todo cobra um preço alto, especialmente em uma fase emocionalmente tão sensível”, aponta.
Efeitos colaterais
Isa concorda que o risco de migração para espaços menos regulados é real. “Quando o paradigma é só proibir, a resposta costuma ser escapar. Por isso, leis assim só funcionam bem se vierem acompanhadas de estratégias de redução de danos: educação digital, conversa, supervisão e caminhos seguros de socialização”, diz ela.
A neuropsicopedagoga lembra ainda que a proibição pode reduzir um fator de risco para a saúde mental, mas não resolve as causas profundas de ansiedade, depressão e baixa autoestima. “Sono ruim, estresse, bullying, conflitos familiares, traumas e neurodivergências continuam existindo — com ou sem redes”, diz.
O papel da escola e das políticas públicas
Tanto Mariana quanto Isa são enfáticas ao apontar a escola como peça-chave. “Não faz sentido alfabetizar em matemática e linguagem, mas não alfabetizar para o uso digital, que hoje determina relações, autoestima e até comportamento político”, afirma Mariana. Letramento digital, compreensão de algoritmos, reconhecimento de discursos de ódio, educação socioemocional e debates sobre gênero, consentimento e convivência online precisam fazer parte do currículo, especialmente em um país marcado pela desigualdade. “Para muitas crianças brasileiras, o celular é companhia, janela para o mundo e, às vezes, o principal recurso educativo. Proibir rigidamente, sem oferecer alternativas, pode aprofundar ainda mais a exclusão”, alerta Mariana.
A discussão levantada pela Austrália vai muito além da idade permitida para usar redes sociais. “A pergunta não é se adolescentes podem ou não usar redes”, ressalta Mariana. “A pergunta é: quem vai educá-los para usá-las? A família, a escola e a sociedade — ou o algoritmo, que não foi feito para cuidar?”, questiona.
Proibir pode até fazer parte da estratégia. Mas, sem educação, vínculo, presença adulta e responsabilização das plataformas, seguirá sendo apenas uma barreira que adolescentes aprendem a contornar rapidinho. No fim das contas, o que protege de verdade não é cortar o acesso, mas ensinar a pensar, sentir, escolher e pedir ajuda.
Canguru News
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