Luciana Constantino | Agência FAPESP – Um grupo internacional de cientistas, incluindo brasileiros, reuniu 123.984 exames de ressonância magnética para mapear o desenvolvimento do cérebro humano desde as primeiras semanas do feto até os 100 anos de idade. Com esse banco, foram montados gráficos que mostram a evolução cerebral ao longo dos anos, incluindo fases de rápida expansão no início da vida e de redução do tamanho do órgão durante o envelhecimento.
Essa ferramenta sistematizando os processos de desenvolvimento típico e atípico do cérebro poderá servir como uma referência, funcionando de forma semelhante às atuais tabelas de acompanhamento de medidas de altura e peso de crianças. Além de base para novos estudos, a expectativa é que as curvas de referência tenham, no futuro, uma aplicação clínica.
O trabalho, liderado por pesquisadores das universidades de Cambridge (Reino Unido) e da Pennsylvania (Estados Unidos), foi publicado na revista Nature. Ao fornecer uma métrica por idade e sexo, a ferramenta permite comparações e poderá apontar caminhos, por exemplo, para identificar distúrbios que surgem em diferentes estágios da vida ou até mesmo alterações cerebrais capazes de sinalizar doenças neurodegenerativas progressivas, como Alzheimer e Parkinson.
O banco está sendo considerado o maior deste tipo – reúne exames de 101.457 pessoas de vários países. Apesar de haver uma predominância da representatividade de descendências europeia e americana, o estudo incluiu informações de indivíduos da América do Sul, da África e da Austrália. Porém, essa diversidade ainda é pequena se comparada ao total de informações. Por meio de um site, chamado BrainChart, os pesquisadores pretendem continuar alimentando os dados.
“O grande diferencial metodológico da pesquisa foi abrir a possibilidade de montar referências robustas e adequadas que até então não havia. Agora, ao estabelecer essas curvas, com as pontuações e percentis, é possível colocar cada indivíduo e entender como o cérebro está se desenvolvendo em comparação à trajetória padrão. Quando há um banco com tantas amostras é possível demonstrar pequenas diferenças com mais robustez”, explica à Agência FAPESP o médico Pedro Pan, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coautor do trabalho.
Pan é vice-coordenador do Estudo Brasileiro de Coorte de Alto Risco para Transtornos Psiquiátricos na Infância (BHRC na sigla em inglês), uma grande pesquisa de base comunitária que acompanha 2.511 crianças e jovens de Porto Alegre (RS) e São Paulo desde 2010.
O BHRC, considerado um dos principais acompanhamentos sobre riscos de transtornos mentais realizados no Brasil, faz parte do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes (INPD), apoiado pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O INPD, com mais de 80 professores e pesquisadores de 22 universidades, tem como coordenador-geral o professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) Eurípedes Constantino Miguel Filho.
O instituto dispõe de mais de 2 mil imagens cerebrais coletadas na última década. Parte delas contribuiu com o trabalho publicado agora na Nature, que tem entre os coautores os professores Giovanni Abrahão Salum, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Andrea Parolin Jackowski, da Unifesp, e André Zugman, do INPD.
Achados
Os pesquisadores usaram métricas de ressonância magnética quantificadas por pontuações em relação a trajetórias não lineares de mudanças estruturais cerebrais e taxas de alterações ao longo da vida. Foi utilizado um software de neuroimagem padronizado para extrair os dados dos exames de ressonância magnética, começando com o volume de substância cinzenta (células cerebrais, neurônios) e branca (que inclui as conexões do cérebro).
Depois, houve expansão para análises da espessura do córtex e volume de regiões cerebrais específicas. Para gerar os gráficos cerebrais, o grupo adotou uma estrutura implementada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para desenvolver as curvas padronizadas de altura e peso.
A modelagem adotada – a GAMLSS (sigla em inglês para modelos aditivos generalizados para escala e forma de localização) – permitiu alavancar o conjunto de dados agregados de neuroimagem ao longo da vida dos indivíduos, derivando os marcos de desenvolvimento do cérebro (ou picos de trajetórias) e comparando com a literatura atual.
Com isso, foi possível confirmar, e em alguns casos até mesmo mostrar pela primeira vez, marcos que haviam sido levantados por hipóteses. Entre eles estão a idade em que as principais classes de tecidos do cérebro atingem o volume máximo e quando regiões específicas do órgão chegam à maturidade.
Em relação ao volume de substância cinzenta, os cientistas mostraram que há um rápido aumento a partir da metade da gestação, atingindo o pico pouco antes de a criança chegar aos 6 anos de idade. Em seguida, começa a diminuir lentamente. Já o volume de matéria cinzenta na região subcortical – que controla as funções corporais e o comportamento básico – atinge o pico na adolescência, por volta dos 14 anos.
O volume de substância branca também aumenta rapidamente desde a metade da gestação até a primeira infância, atingindo o pico pouco antes dos 29 anos de idade. Seu declínio começa a acelerar após os 50 anos. “Isso mostra que o espaço de plasticidade dessas conexões vai até o início da vida adulta”, explica Pan.
A partir dos 60 anos, há um crescimento do líquido cefalorraquidiano, implicando redução do cérebro. “Atualmente esse marcador é usado na clínica como um indício indireto de envelhecimento cerebral, que pode ser associado a doenças neurodegenerativas. Algumas dessas referências para o cérebro ainda não tínhamos com essa fidedignidade”, completa o pesquisador brasileiro.
Até então, os cientistas sabiam que esse volume do líquido aumentava com a idade, já que normalmente está associado à atrofia cerebral, mas não tinham a dimensão da velocidade do crescimento em uma amostra tão significativa.
Cooperação
Ao contrário do que acontece na genética, em que os bancos de dados chegam à casa dos milhões, em neurociência os estudos tradicionalmente são baseados em conjuntos de amostras relativamente pequenas. Alguns fatores que contribuem para esse cenário são a dificuldade de coletar as imagens, por depender de estrutura física e de equipamentos de ressonância, e o alto custo.
Em março deste ano, um artigo publicado na Nature discutiu o tema, colocando em questão o fato de que muitas das pesquisas usando neuroimagem deixam de produzir resultados válidos exatamente porque tendem a incluir pequeno número de participantes, ficando aquém do necessário para gerar resultados confiáveis.
“O caminho para resolver esse ponto é trabalhar com amostras grandes e diversas, como esse grupo internacional se propôs a fazer”, afirma Pan, recordando da primeira reunião que teve com os pesquisadores Richard Bethlehem (Cambridge) e Jakob Seidlitz (Pennsylvania) em dezembro de 2020 para tratar da cooperação. Ambos são os primeiros autores da pesquisa sobre desenvolvimento do cérebro.
Para criar a amostra representativa global, os cientistas agregaram os exames de ressonância magnética de mais de cem estudos de diversos países. Em editorial na mesma edição da Nature, que trata sobre a autoria dos dados abertos, a revista destaca que “nem todos os conjuntos de dados estavam originalmente disponíveis para uso dos pesquisadores”.
Em entrevista ao site da Universidade de Cambridge, Bethlehem destacou que a cooperação permitiu reunir dados de todas as faixas etárias, possibilitando detectar mudanças precoces e rápidas do cérebro humano. “Uma das coisas que conseguimos fazer, por meio de um esforço global muito coordenado, é reunir dados ao longo de toda a vida útil”, afirmou.
O artigo Brain charts for the human lifespan pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41586-022-04554-y#Ack1.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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