Semana passada estava conversando com meu primo e ele me revelou que a filha dele foi diagnosticada com TDAH. Eu tenho alguns amigos que têm filhos com TDAH, mas não tinha noção de quais são os desdobramentos que surgem de um diagnóstico. Para quem não está familiarizado com essa sigla, TDAH significa Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade.
Segundo a Associação Brasileira de Déficit de Atenção, o TDAH é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade.
A conversa com meu primo durou horas, com muitas trocas de informações, porém, no final descobrimos que só sabíamos o que a internet nos apresenta sobre o TDAH, e olha que temos alguns amigos em comum, diagnosticados com TDAH. Foi aí então que resolvi sair dessa posição neutra de pesquisador de internet e decidi explorar o que é real sobre o tema. As entrevistas que apresento a seguir são três versões diferentes sobre um mesmo assunto, o TDAH.
LEIA TAMBÉM:
Nilton Ricardo, pai preto de 4 crianças, Arthur (7anos), Heitor e Gael (ambos 5 anos) e Helenna (4 anos), é um grande amigo que promove rodas de conversas paternas no Brasil e em Portugal, atualmente tem um podcast onde entrevista convidados para falar sobre paternidades e masculinidades.
Seu filho mais velho, Arthur, foi diagnosticado com o Transtorno de Espectro Autista (TEA), nível 1, que é considerado um “autismo leve”, e também está sendo investigado a possibilidade de ele ter TDAH.
Nilton conta que foi a escola quem levantou a possibilidade da criança ter algum transtorno e orientou a família a buscar orientação de especialistas – psicopedagoga, psicólogo, neuropediatras e fonoaudióloga.
Segundo o pai, com o passar do tempo, alguns comportamentos do filho foram se acentuando. Entre eles, hiperfoco, seletividade alimentar, apego aos detalhes, andar com a ponta dos pés, dificuldades em ter autocontrole, esquecimentos, pensamentos e falas aceleradas, distrações e gesticulação de mãos e pés em excesso.
Arthur possui o laudo de TEA, e para Nilton a busca por um diagnóstico técnico foi justamente para auxiliá-lo no processo de saber como lidar com tudo isso, como se fosse ganhar um manual de explicações.
Hoje ele entende que existem várias camadas dessa história e entende também que para lidar com tudo isso ele precisa deixar fluir as emoções (algo que não é tão fácil para alguns homens).
“Apesar de eu ter consciência de todos os degraus que eu e minha família iremos passar, ainda continua muito pesado. A sociedade como um todo não está preparada para viabilizar e acolher as emoções e sentimentos masculinos.”
Letícia Lopes é uma amiga de longa data, feminista que mora na França trabalhando com marketing. Hoje ela está com 32 anos e foi diagnosticada com TDAH aos 28 anos.
A história da sua infância se confunde com as de muitas crianças que não têm suporte ao real diagnóstico e acabam sendo “excluídas” do padrão categorizado como “normal” pela sociedade.
Lê me contou que sofreu bullying em toda sua infância, justamente por seu comportamento hiperativo, e não somente pelos alunos, mas também pelos professores, taxada sempre como uma criança “esquisita”.
Quando ela me contou que quem tem TDAH não consegue literalmente “desligar o cérebro” logo imaginei como seria esgotante para uma criança ter que lidar com tudo isso literalmente sozinha.
Seus pais que também não tinham suporte ao que era o TDAH na época, só conseguiam ajudar como podiam, preenchendo seus horários com muitas atividades, porém ela me disse que para uma pessoa com TDAH o acúmulo de atividades pode ser ruim, pois a chance de enjoar muito rápido é enorme.
Em sua vida adulta (antes do diagnóstico) compreendia que não podia confiar nela mesma, ou melhor, não podia confiar em seu cérebro. Ela conta que chegou a fazer 3 vias do seu RG só por precaução de perdê-los.
Em um tratamento para depressão foi que enfim recebeu o diagnóstico, “Pelo que você está me contando, tudo indica que são sinais de TDAH”, disse o psicólogo.
Letícia me relatou que, nessa hora, uma avalanche de sentimentos se ergueu em seu peito: estava feliz e aliviada por saber que existia um diagnóstico e um tratamento para os sintomas que ela apresentava. Ser desligada, sem foco, como muitas pessoas diziam, tinha uma explicação. Por outro lado, ela também sentiu uma tristeza e revolta por saber que sua infância poderia ter sido completamente diferente.
No início do tratamento com o medicamento, ela conta que a emoção foi fantástica, ela finalmente conseguiu organizar seus pensamentos e não tinha mais aquela inquietude que vivia dentro da sua cabeça.
Com seu tratamento encaminhado e feliz por isso, ela foi atrás de entender mais sobre quantas pessoas tinham a mesma história, e devido às redes sociais ela descobriu que não estava só, e nunca esteve, existem muitos adultos que têm o transtorno, porém nem todos são cientes disso. Ela não era mais a “esquisita”, encontrou uma tribo em que pudesse se comunicar, sem ser taxada, pois nas palavras dela:
“O TDAH está saindo do armário agora, muitas pessoas já estão falando dele, mas ainda não é um assunto que eu me sinta 100% confortável em dizer para qualquer um. Gostaria muito de chegar no meu trabalho e dizer que tenho TDAH, mas gostaria de dizer isso abertamente para pessoas que entendam realmente o que é o transtorno, acho que é por isso que estou contando a minha história para você”.
Carlos Eduardo Corrêa, mais conhecido como Cacá, é o pai do José e o pediatra neonatologista mais querido de muitas famílias, e quando digo muitas, é muuuitas mesmo. Preparem as cabeças, pois o Cacá oferece várias reflexões sobre o assunto.
Cacá já começa a entrevista comentando que em muitos sites, inclusive os de organizações não governamentais, as informações sobre o TDAH normalmente são baseadas num diagnóstico clínico, o que levanta vários questionamentos, visto que se trata de uma questão comportamental.
Imagine que em um período difícil para uma criança (mudança de escola, por exemplo, ou qualquer outro ponto) ela apresente comportamentos que têm alguma característica de TDAH. Se o médico não investigar isso, será mesmo que o diagnóstico é válido?
A subjetividade pode ser tão perigosa que o pediatra relembra que alguns anos atrás o diagnóstico de descontrole emocional em adultos era esquizofrenia dentro do sistema público e o mesmo diagnóstico em sistemas privados era de transtorno bipolar.
A grande preocupação do Cacá em relação ao diagnóstico é o quanto isso está impactando na qualidade de vida da criança ou da família.
Para ele é preciso uma investigação não somente focada exclusivamente no comportamento da criança, mas uma investigação em todo ambiente que ela vive e principalmente nas relações que ela constrói.
A observação é o primeiro estágio para identificar alguns comportamentos que podem levar a um diagnóstico de TDAH, porém muitos adultos, mesmo observando, não conseguem dar espaço para a expressão dessa criança, ou melhor, não conseguem explorar formas de deixar certos controles e padrões pessoais de lado.
O que nos leva a um outro estágio da conversa.
Cacá diz que quando ele recebe uma criança em seu consultório e dentro da sua observação percebe na criança certos sinais de excitação neurológica em excesso, a primeira ideia de intervenção que vem a sua cabeça é tentar achar algum meio de ajudar essa criança a achar o caminho para uma conexão.
A criança que tem dificuldade de estar com ela mesma em uma certa atividade, não necessariamente pode ser diagnosticada com TDAH, talvez ela só não esteja encontrando esse caminho, e é aí onde o profissional (psicólogo por exemplo) pode ajudar e estabelecer essa conexão.
Para ele, o vínculo que a criança consegue desenvolver em relação a atividade proposta, ao ambiente em que está ou as relações humanas mostram que o diagnóstico não é totalmente fisiológico, existe muito da questão comportamental, neste caso intervenções de medicamento podem ser até mais prejudiciais.
Outra questão muito perigosa do diagnóstico precoce é a questão da criação de uma máscara que acompanha a criança por toda vida.
Cacá me contou a história de uma paciente que hoje é uma artista circense que sempre teve uma característica de explosão corporal muito intensa, porém em sua infância ela sempre foi responsabilizada por ser muito desatenta, hiperativa, etc.
Nem os pais e nem os profissionais da época deram conta de criar uma conexão para que ela entendesse que existia a possibilidade de outros caminhos, lembrando muito a história da Letícia. Hoje ela tem muitas dificuldades de se encarar como uma pessoa intelectual e não somente corporal.
Finalizo essas 3 entrevistas e o texto, sobre as 3 visões e vivências diferentes sobre o TDAH com uma incrível frase do Cacá:
“Para mim, dentro de um problema de desenvolvimento, o diagnóstico não vem em primeiro lugar. Para mim, vem a possibilidade de alguma intervenção que dê conta de apaziguar um sofrimento e abrir mais possibilidades de conexões”.
*Este texto é de responsabilidade do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Canguru News.
LEIA TAMBÉM:
Parei de ler a partir do momento que li , “Pai Preto…”. Não é a raça e sim a mente.