O salto

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    O saltoVocê compra um eletrônico pela internet e aguarda com ansiedade a chegada do aparelho. Quinze dias antes, o Correio toca a campainha para entregar seu manual de instruções — e só ele. Você folheia o livrinho como quem tenta ler em russo, sem poder colocar em prática nada do que ali está escrito. Quando o produto finalmente chega, você já esqueceu o manual em algum canto escondido da casa. Agora, vocês que se entendam.

    Tive mais ou menos essa sensação depois de frequentar o “curso do casal grávido” na maternidade. É claro que a experiência valeu a pena: serviu para amenizar a sensação de pânico diante da enormidade do que estava por vir. Mas a metáfora usada por meu marido logo após o curso caiu como luva quando o menino nasceu. “Acho que vai ser como o meu primeiro salto de paraquedas. Decorei cada palavra que o instrutor explicou, mas na hora H eu só me lembrei de pular do avião.”

    Francisco tem hoje 8 anos. Carregar no colo o menino magrelo e comprido é uma ameaça considerável à minha coluna vertebral. E não é que eu saltei? E sozinha, já que o inesperado retirou o pai da história.

    E foi tão rápido, e é tão intenso, que preciso deparar com fotos do Francisco ainda menor para redescobrir tudo do que fui capaz. Enquanto o menino crescia na minha barriga, eu procurava me convencer de que seria possível — afinal, eu pensava: toda mãe dá conta. Secretamente, porém, eu duvidava de mim.

    Saltei uma vez, saltei várias, e o desafio acorda a cada dia com uma pitadinha a mais de complexidade. Continuo me atirando em queda livre e só depois acionando o paraquedas, sem direito a treino — e desprovida de manual. O tal livrinho não existe, pois está sempre em construção.

    Cada criança é única, não há duas famílias iguais, e a experiência de criar filhos continua sendo um mistério, ou não teríamos tanto assunto. Costuma dar certo, na mesma medida em que também dá errado — e vivam os psicólogos, que também têm famílias para sustentar.

    A verdade é que o aprendizado cresce junto com o filho: a cada novo impasse escrevo mais uma página. Faço o caminho, depois desenho o mapa. E dá- -lhe emendas. Com o tempo entendo que aquilo que demorei a aprender é o mais urgente a ser ensinado. Não me apresso em apresentar a meu filho a palavra empatia, mas seu significado já está em nosso dia a dia. Quando o termo chegar, vai ser fácil reconhecer. Uma pena que, a caminho da vida adulta, ele também desaprenda. Com o passar do tempo, passado e futuro costumam crescer em demasia. E é cada vez mais raro se entregar ao voo com plenitude. “Quando eu era pequeno”, diz o Francisco ao me relatar alguma lembrança dos primeiros anos de vida. Continua pequeno, é verdade. Mas como eu cresci.

     

    Cris Guerra e o filho Francisco


    Cris Guerra é publicitária, escritora e palestrante. Fala sobre moda e comportamento em uma coluna diária na rádio Band News FM e a respeito de muitos outros assuntos em seu site www.crisguerra.com.br. Na Canguru, escreve sobre a arte da maternidade.

    contato   [email protected]

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