“O que você vai fazer, devolver a sua filha”? A provocação sem rodeios da médica me pegou de surpresa na antessala da UTI Neonatal. Eu tinha em mãos exames de imagem do cérebro de minha Alice, então com 4 meses de vida. Em profunda angústia, procurava entender o que era a paralisia cerebral, que havia ficado como herança da prematuridade extrema e da parada cardiorrespiratória de 26 minutos que ela tinha sofrido. Eu não fazia a menor ideia de como seria nossa vida dali por diante, mas o incômodo comentário que acabara de ouvir me despertou para algum alívio. Agora, eu conhecia a condição de minha filha. Ela estava viva. Por ela, com ela, eu abraçaria o mundo! Por mais temeroso que tenha sido aquele momento, o diagnóstico foi, para nós, libertador. Tornou-se nosso ponto de partida para uma pesquisa incessante sobre todo tipo de tratamento, dos alopáticos aos alternativos, e de abordagem terapêutica para a habilitação da Alice.
Foi um princípio de compreensão que nos convocou ao enfrentamento. Meu primeiro impulso como mãe foi buscar todas as alternativas que potencializassem a estimulação e, consequentemente, as chances de habilitação de minha filha. Até os momentos de prazer e descanso eram comprometidos pela preocupação com a estimulação. Vivíamos para combater os efeitos da condição neurológica de nossa filha, como se isso fosse tudo o que existia sobre ela. Eu reverberava a crença impregnada em nossa sociedade de que a pessoa com deficiência precisa dedicar o máximo esforço à superação de sua condição, a fim de pleitear algum lugar no mundo. Pouco a pouco, fui aprendendo a ver nossa pequena à frente de qualquer doença ou condição. Compreendi que ela não precisa superar nada, não precisa surpreender expectativas. Jamais permitirei que esse fardo pese sobre sua existência, especialmente sobre sua infância.
Desviei das idealizações no exato instante em que as percebi limitadoras da realidade. Confisquei da disfunção neuromotora e das demais doenças a dimensão que se pretendia totalizadora da existência da pequena Alice. Pude, então, admirar minha filha com o coração pleno de amor e o olhar farto de liberdade. Alice não é minha filha com paralisia, ela é apenas a filha que tanto amo. Percebi, com nitidez, sua suprema capacidade de entusiasmo, sua vontade de descobrir a si mesma e também o mundo. A maneira como ela se entrega à vida passou a ser minha fonte inesgotável de aprendizado e de encantamento. Por isso, sinto-me grata por saber que Alice não é minha filha idealizada. Ela é muito, muito melhor.
por Mariana Rosa