Cultivar na rotina piadas que parecem inofensivas, mas reforçam estereótipos de gênero e diminuem as mulheres, incentivar a ideia de que certas brincadeiras são “coisa de menina” e de que meninos não choram são apenas alguns dos comportamentos que podem ser comuns entre os pais, mas que contribuem para a perpetuação de ideais machistas entre as crianças.
Pensar numa educação que, na prática, combata esse tipo de comportamento é parte da aplicação direta do feminismo e seus ideais na infância. Essa é uma das premissas que Jordan Shapiro, filósofo, PhD e escritor norte-americano desenvolve em seu livro “Como Ser Um Pai Feminista”, lançado em novembro de 2021 pela Editora Melhoramentos.
O feminismo, compreendido como um movimento contra o sexismo e desigualdade entre gêneros, defende a luta das mulheres por seus direitos e a quebra de ações que não só as colocam em uma posição de inferioridade, mas também impõe expectativas de como os meninos devem agir para não demonstrarem suas fraquezas e sentimentos – evidenciando qualquer sinal de quebra em sua ‘masculinidade’. Essa reflexão a respeito do impacto do machismo e a importância de pais refletirem sobre o feminismo como um instrumento de mudança para as futuras gerações é desenvolvida por Shapiro em seu livro.
O autor usa exemplos de sua vida e vivência como pai divorciado, aborda aspectos de sua relação com os próprios filhos, cita pesquisas e dados sobre o assunto, além de trazer referências de séries e filmes e citações de pensadoras feministas. Shapiro enfatiza a importância de se adotar a postura feminista sob a ótica da paternidade.
“Ideias equivocadas sobre pais estão embutidas em nossas crenças tidas como certas sobre desenvolvimento infantil, vida adulta e sucesso profissional. Essas ideias podem ter sido úteis antes, mas no mundo atual mais atrapalham do que ajudam”, diz o autor ao longo da introdução da obra. Assim, para que uma criação livre de machismo seja possível, sustenta, é essencial que mães e pais possam refletir em conjunto sobre o feminismo na infância dos filhos, dividindo cuidados para com as crianças e se questionando a respeito dos comportamentos que deixam como exemplo para os pequenos.
Feminismo é também para homens
Ser feminista pode parecer algo destinado apenas a mulheres – ou até mesmo a um grupo seleto delas – mas, na verdade, as noções machistas, fruto de concepções culturais patriarcais de família, também afetam e devem ser refletidas pelos homens.
Marcos Piangers, jornalista, palestrante e escritor do best-seller “O Papai é Pop”, escreve o prefácio do livro de Shapiro. Piangers passou por um processo de conscientização e transformação a respeito do feminismo depois de ter suas duas filhas. Ele relata esse processo no prefácio e defende que a mudança de comportamentos comece dentro de cada um, a partir da reflexão sobre questões do dia-a-dia que podem passar despercebidas. “A convivência com minhas duas filhas me abriu os olhos para uma série de diferenças entre os gêneros, e suas consequências terríveis”, escreve Piangers.
“Fui, aos poucos, entendendo o que significava ser um pai feminista: um aliado das minhas filhas na luta delas por respeito”
Marcos Piangers em trecho do prefácio do livro “Como Ser Um Pai Feminista”, de Jordan Shapiro
Guia para pais reconhecerem sistemas opressivos
Dentre a importância de se pensar em uma postura menos machista e na introdução do feminismo na infância dos filhos está o fato de que esse conjunto de expectativas a respeito de homens e mulheres é capaz de influenciar a própria dinâmica familiar e postura dos pais.
Um dos impactos e legados do machismo na sociedade contemporânea é a concepção não só de que é uma responsabilidade das mães cuidarem de seus filhos, mas de que os homens que desafiam esse padrão, exercendo uma paternidade ativa, são “menos homens” por isso. É o que aponta um estudo da Ipsos em parceria com o Instituto Global para a Liderança Feminina do King’s College London: aproximadamente um quarto (26%) da população brasileira pensa dessa forma, de acordo com a pesquisa.
Para aqueles que buscam a mudança, o processo é de aprendizado e transformação gradual. Apesar de soar como uma espécie de guia, Jordan Shapiro ressalta que sua obra a respeito do feminismo e a paternidade na infância não funciona como uma receita ou manual de conselhos para se tornar um pai feminista. “É mais um guia para uma autointervenção. Ele tem como objetivo ajudá-los a reconhecer coisas – coisas comuns, corriqueiras, cotidianas – que replicam atitudes problemáticas e reforçam sistemas opressivos”, diz Shapiro em seu livro. Entretanto, uma das bases mais importantes citadas para uma reformulação de comportamentos é o exercício de uma consciência crítica, defendida também por Piangers:
“O ponto de partida para uma mudança é exercitar algo que nós homens não somos incentivados: humildade. Os comentários feministas sempre soam como chateações para homens, como se fossem reclamações de mulheres mal resolvidas. Humildemente, precisamos ouvir e refletir sobre o que sofrem nossas mães, irmãs e filhas, e como nós mesmos somos parte do problema – e da solução.”
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A conexão entre feminismo e maternidade
Mesmo com um papel chave no debate sobre igualdade de gênero e beneficiadas pelas lutas do movimento feminista, nem todas as mulheres possuem consciência do problema e das consequências que certos comportamentos podem trazer para si mesmas e para as outras mulheres, o que pode levá-las a reforçar estereótipos entre os filhos. Assim, a fim de que as crianças possam crescer em um ambiente que desconstrua modelos machistas na infância, entender como não ser uma mãe machista também é determinante.
Segundo Bebel Soares, arquiteta, escritora e fundadora da rede feminista de apoio Padecendo no Paraíso, uma criação feminista é importante também para evitar que a mãe seja vista como a responsável por todas as questões que envolvem os filhos, e não cultivar essa ideia para as gerações futuras.
“O feminismo evita a sobrecarga materna, porque entende que a mãe não tem que dar conta de tudo sozinha”, diz Bebel Soares.
Isso irá impactar no desenvolvimento de crianças com uma perspectiva mais igualitária a respeito de questões de gênero, capazes de moldar uma sociedade que valorize o indivíduo de forma independente de ser homem ou mulher. “Se queremos equidade, se queremos que nossas filhas tenham as mesmas oportunidades que os filhos, precisamos dar a eles uma criação feminista. Só assim, no futuro, eles terão as mesmas chances no mercado de trabalho, por exemplo”, completa.
Essa perspectiva também é compartilhada pela feminista Ana Emília Cardoso, jornalista, escritora, autora do best-seller “A Mamãe é Rock” e companheira de Marcos Piangers. Para ela, as atitudes e o caráter de uma criança se formam a partir de exemplos de diversas pessoas. Caso as crianças não sejam ensinadas sobre a importância do respeito e de um tratamento igualitário, observando exemplos em casa, os filhos talvez tenham necessidade de um olhar feminista na fase adulta, explica. “Certamente filhos de mães machistas vão ser confrontados por pessoas mais livres e que respeitam o ser humano de forma mais ampla. Vão se frustrar, vão perder namoradas, vão aprender de outra forma”, diz Ana.
Além disso, seguir com a perspectiva de que a mãe possui o papel exclusivo de se responsabilizar por tarefas domésticas e desenvolvimento dos filhos, sem refletir sobre a atuação da figura paterna, pode ter sua relação com os filhos afetada, e impactar na saúde mental e socioemocional da própria mãe.
“Uma mãe que faz tudo em casa, que acha que é a sua missão divina dar conta sozinha de tudo que envolve a família vai estar sempre sobrecarregada, sem tempo e irritada”, explica a escritora. “O feminismo serve – também – a isso, a questionar a divisão do trabalho doméstico, a ensinar que meninas podem sonhar grande, que meninos podem ser gentis e que todo humano merece respeito.”
O feminismo na prática: exemplos no dia a dia
Apesar de a teoria ser essencial para que se compreendam os princípios, história e formas possíveis de aplicar o feminismo na criação dos filhos, de acordo com a vivência de Bebel Soares, Ana Cardoso e Marcos Piangers, a melhor forma de educar crianças feministas – e abandonar de vez as atitudes machistas na paternidade e maternidade – é dando os exemplos na prática.
Para Bebel Soares, explicar a teoria do feminismo na infância para os filhos não é a parte mais importante para que haja mudanças práticas em sua postura ao longo de seu desenvolvimento, mas sim, o exemplo. “Não adianta nada explicar toda a teoria e, na prática, fazer tudo diferente. Se existe o exemplo, tudo bem explicar a teoria quando houver oportunidade, aproveitando alguma situação cotidiana para exemplificar”, pontua.
Mesmo abordando discussões complexas, o feminismo em parceria com a maternidade e paternidade na infância, aplicado na prática, traz para a criança a compreensão de como respeitar o outro e ter consciência da liberdade que as mulheres possuem hoje e não possuíam há anos. Além disso, a visão feminista, dizem os especialistas, ressalta formas de continuar na luta por mais igualdade.
“É importante entender as pautas e os diversos feminismos para saber o que faz sentido para você e, à medida que seu filho for crescendo, ensinar valores e atitudes novas para ele, diferentes das de antigamente. Afinal, o mundo mudou e você precisa criar um filho para o futuro, não da mesma forma que seus avós criaram seus pais”, ressalta Ana Emília Cardoso.
Marcos Piangers completa: “O machismo está impregnado na forma como vemos o mundo, no olhar de homens e mulheres. E, da mesma forma que agride mulheres, também incentiva um comportamento autodestrutivo nos meninos. Ou seja, vencer o machismo é cuidar melhor de nossos filhos, independente do gênero. Conversar a respeito, se informar e mudar a atitude no dia a dia, por mais amedrontador que seja em um mundo tão violento, é responsabilidade de todos nós”.
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