Maquiagens ganham cada vez mais espaço entre os brinquedos infantis

O pediatra Daniel Becker faz um alerta para os riscos dessa tendência; para a educadora parental Mikaela Övén é importante ajudar as meninas a crescer com liberdade e sentido crítico

61
Duas meninas usam maquiagem em frente a espelho
Brasil é o terceiro país que mais vende produtos infantis de higiene e beleza
Buscador de educadores parentais
Buscador de educadores parentais
Buscador de educadores parentais

O uso frequente de produtos de beleza por adolescentes ganha contornos ainda mais preocupantes com o lançamento de linhas de maquiagens voltadas para crianças pequenas. No Brasil, essa tendência pôde ser vista na Abrin, Feira Internacional de Brinquedos, realizada em março em São Paulo. Paletas de sombra, batons e kits de skincare marcaram presença nos estandes de lojistas e fabricantes, consolidando uma categoria de brinquedo infantil, como mostrou o perfil @spcriancas no Instagram, em um espaço antes dominado pelas bonecas.

“A boneca é o faz de conta, ela representa a fantasia, a imaginação, permite que a criança exerça o seu brincar de uma forma criativa, onde ela vai inventar uma historinha e vai treinar as habilidades que ela precisa ter para quando crescer e for cuidar de uma criança”, comentou o pediatra Daniel Becker. Em vídeo sobre o assunto, com cerca de 70 mil visualizações, ele faz um alerta para o espaço que as maquiagens vêm ganhando no universo infantil. “A gente está substituindo a boneca por maquiagem, a criatividade, a fantasia e o brincar pela necessidade de estar mais bonita”,

Becker ressaltou que esses brinquedos com maquiagem são diferentes da prática de passar batom, usar um vestido e salto alto da mãe, em que a criança brinca de ser adulto e tende a imitar sua genitora, numa diversão saudável se dentro de um contexto lúdico.

Um mercado em ascensão

Embora a venda de batons, brilhos e esmaltes em versões infantis exista há muitos anos — desde a época em que muitos dos pais de hoje eram crianças —, há um crescimento desse segmento com maior diversificação de produtos de beleza e cuidados com a pele, muitos deles, associados a personagens de filmes populares entre os pequenos. No ranking mundial de produtos infantis de higiene e beleza, o Brasil ocupa a terceira posição, com vendas que ultrapassam U$ 5,5 bilhões, segundo a Euromonitor, empresa que pesquisa mercados globais. 

Nos Estados Unidos, um estudo divulgado em 2024 pela Ulta Beauty, popular cadeia varejista de beleza, revelou que a Geração Alfa — crianças nascidas depois de 2010 — começa a experimentar produtos de beleza aos 8 anos de idade, sendo que nas gerações anteriores, tais práticas começavam por volta dos 12 anos nas meninas e 13 anos entre meninos.

Diversas marcas surgiram nos últimos anos voltados ao público infantil, entre as quais, a norte-americana Yawn, criada em 2024, que se define como uma coleção de maquiagem e cuidados com a pele para crianças a partir de 3 anos. No mesmo país, a Gryt, lançada em 2023, afirma que seus produtos são para pré-adolescentes e adolescentes, e recomenda, na página de perguntas frequentes sobre os produtos, que eles sejam usados em crianças a partir de oito anos. Já a Bubble, surgida em 2020 e presente nos Estados Unidos, Canadá, Europa e Austrália, diz que muitos de seus produtos são seguros para todas as idades, inclusive para menores de 14 anos. No Brasil, a Estrela Beauty, que iniciou suas vendas em 2018, diz ser uma marca de play make-up (brincar com a maquiagem, em tradução livre) e acessórios, pensados e desenvolvidos para a criança, que valoriza a diversidade, a experimentação e a autoconfiança. 

Recentemente, a CEO da marca indiana Sugar Cosmetics, Vineeta Singh, mencionou com orgulho que crianças também estavam consumindo os produtos da sua empresa. “Não é surpresa ver que a idade da primeira compra de maquiagem atingiu um dígito, mesmo além de Delhi/Mumbai, mesmo que seja apenas um gloss labial, um óleo labial ou um esmalte sem toxinas. Bem, chega de roubar coisas da mãe às escondidas!”, escreveu ela em rede social.

LEIA TAMBÉM:

Influência dos pais e das redes sociais

Entre os fatores que contribuem para a expansão desse mercado de maquiagens infantis, especialistas citam a influência das plataformas de mídia social, que disseminam amplamente as tendências de beleza e contam com o incentivo de influenciadoras digitais, muitas delas mirins, que entre outras coisas, gravam vídeos get ready with me (arrume-se comigo, em tradução livre). Outro motivo que estaria influenciando um maior consumo de cosméticos infantis seria uma mudança de percepção dos pais, que adquiriram maior consciência da importância dos cuidados pessoais. Mas há quem diga que, para além dos cuidados com a saúde, pais preocupados em excesso com as aparências também são responsáveis pelo comportamento dos filhos. Frente a tantas variáveis, o desafio maior está em evitar a exposição precoce a padrões de beleza impostos pela sociedade, que podem levar a problemas de imagem corporal e prejuízos à autoestima desde cedo.

Além disso, o pediatra recorda que muitos desses produtos contêm substâncias de potencial tóxico como os parabenos e ftalatos, que podem atuar como desreguladores hormonais e afetar a tireoide, os ovários e outras glândulas, causando problemas, por exemplo, de crescimento, puberdade precoce, infertilidade e até câncer.

Dicas para ajudar as meninas a crescer com liberdade

A educadora parental sueca radicada em Portugal, Mikaela Övén, lembra que muitas meninas de 10, 13 e 17 anos já sabem o “melhor lado” para tirar uma selfie e onde pôr a mão no quadril para parecer mais magra. “Elas aprendem que ser bonita é um projeto e começa cedo”, diz Mikaela, autora de “Educar com Mindfulness na adolescência”.

Ela aponta que a internet não vende só produtos, mas também padrões, e ensina às meninas que beleza é um dever moral, que nunca termina. Em postagem sobre o assunto no seu Instagram, a educadora parental ressalta que, embora possam parecer futilidades, o skincare, o lip gloss transparente e a pose estudada para a selfie, por dentro, são tentativas de sentir controle, de pertencer e de receber aprovação.

“Às vezes, o “como estou na foto?” quer dizer:
“gostas de mim assim?”,
“sinto-me confusa com o meu corpo – ajuda-me a gostar de mim”, explica a educadora parental que descreve esse comportamento como uma ansiedade disfarçada de um ritual e medo de não ser suficiente.

Para ajudar essas meninas a crescer com mais liberdade, sentido crítico e amor próprio, Mikaela dá algumas sugestões para mães, pais e responsáveis:

  1. Fale com sua filha antes que o algoritmo das redes sociais o faça.
    Ela não está “brincando com filtros”. Está construindo sua autoimagem. Ela precisa aprender que tem valor por quem é, exatamente como está. E o algoritmo sozinho não vai contar isso.
  2. Escute os rituais. Não os ridicularize.
    Se zombarmos, desvalorizarmos ou reagirmos com sarcasmo, o que ela aprende é que as suas inseguranças são ridículas, e que não vale a pena partilhar conosco aquilo que está vivendo. Em vez disso, podemos perguntar com curiosidade e leveza: “O que você gosta nessa rotina?”, “Você vê muitas amigas fazendo isso?, Como você se sente?” “Quer mesmo fazer isso ou você sente que deveria querer?”. Não é sobre controlar. É sobre abrir espaço. Porque quanto mais segura ela estiver conosco, menos vai precisar de se provar ao mundo.
  3. Mostre outros espelhos. Mostre mulheres reais.
    Com dúvidas. Com força. Com expressão. Que dançam, falham, pensam e não vivem à procura do ângulo certo. Se és mãe, reflete sobre o exemplo que você dá. Se és pai, repara no discurso que tens e comentários que fazes.

“Tira a maquiagem da vida da sua filha e bota a boneca e o parquinho que é bem mais seguro e melhor”, sugere Becker. Ele recorda que a infância só dura 12 anos, um período de magia, aventura e descoberta. “É quando ocorre a formação mais importante da nossa personalidade, vivemos experiências que nos compõem como nós somos e que vão nos garantir uma vida melhor no futuro”, conclui.

Verônica Fraidenraich
Editora da Canguru News, cobre educação há mais de dez anos e tem interesse especial pelas áreas de educação infantil e desenvolvimento na primeira infância. Tem um filho, Martim, sua paixão e fonte diária de inspiração e aprendizados.

DEIXE UM COMENTÁRIO

Por favor, deixe seu comentário
Seu nome aqui