“Você tem filhos?”, “Com quem eles ficam quando estão doentes?”. Perguntas como essas, comuns durante entrevistas de emprego com mulheres, mostram como o preconceito em relação à maternidade ainda está presente nas empresas. “Existe a crença de que a mulher não vai querer se dedicar ao trabalho depois de ter filhos”, diz a cofundadora da consultoria Maternidade nas Empresas, Luciana Cattony, mestra em Parentalidade e em Design Estratégico, e mãe de um menino.
Mudar esse olhar enviesado, que vê o cuidado dos filhos como um impasse à carreira, está na pauta da consultoria, criada em 2017 para promover ações de acolhimento e valorização de mães, pais e outras figuras parentais no ambiente corporativo, e assim fortalecer a representatividade feminina, principalmente, em cargos de liderança. A ideia é que as mulheres, ao tornarem-se mães, sintam-se apoiadas a manter o emprego – um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que quase metade delas deixa o trabalho no primeiro ano após a chegada dos filhos. Ao mesmo tempo, os pais são incentivados a participar dos cuidados com os filhos, de modo a aliviar a sobrecarga das parceiras.
Muitas acham que não “darão conta” e se pressionam demais quanto às tarefas profissionais. “É preciso desconstruir narrativas que não favorecem as figuras parentais, mostrando que parentalidade é autodesenvolvimento”, destaca Susana, sócia na consultoria, mestra em Equidade de Gênero pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mãe de duas crianças.
O cenário é desafiador: segundo o Índice Global de Disparidade de Gênero, do Fórum Econômico Mundial, divulgado em junho deste ano, a paridade de gênero só será alcançada em 134 anos. Mas vale a pena antecipar essa conquista: para as corporações, ter mulheres e homens em número igual em cargos de alta gestão traz resultados, afirmam as cofundadoras. Elas contam que o trabalho de consultoria já impactou cerca de 400 mil pessoas em mais de 80 empresas nacionais e multinacionais. No ano passado, criaram o Pacto pela Parentalidade, um ecossistema de pessoas e empresas para monitorar a cultura parental nas companhias e identificar pontos de melhoria. Abaixo, veja alguns dos principais trechos da entrevista concedida pelas especialistas à Canguru News via videochamada.
1. Por que associar a valorização da parentalidade à equidade de gênero nas empresas?
Luciana Cattony: Não tem como falar em equidade de gênero no espaço corporativo se a gente não fala sobre maternidade e não envolve os homens na pauta do cuidado, para que eles também possam cuidar de seus filhos e filhas, e assim as mulheres tenham condições de dedicar mais tempo a suas carreiras. Existe a crença de que a mulher não vai querer se dedicar ao trabalho depois de ter filhos, nem assumir projetos desafiadores. Nosso foco é reduzir o turnover (taxa de rotatividade dos colaboradores) e aumentar a presença feminina em cargos de alta liderança. Muitas das mulheres que estão em funções de média gerência se encontram na faixa etária em que desejam ser mãe e isso impacta muito a carreira. Lembrando que ao falar em valorização da parentalidade, nos referimos a uma cultura parental que respeite e acolha todos os colaboradores que exercem a tarefa do cuidado, incluindo mães, pais e outras pessoas de diferentes configurações familiares. Nesse mundo de diversidade em que vivemos, é importante levar isso em conta.
2. Tanto a equidade de gênero quanto o reconhecimento da parentalidade são temáticas ainda desafiadoras nas organizações, não?
Susana Zaman: Sim. Tem uma pesquisa sobre licença-maternidade da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que aponta que 48% das mulheres mães interrompem suas carreiras devido à maternidade, no primeiro ano após o parto. Além do preconceito que enfrentam, elas mesmas se pressionam por achar que não vão “dar conta” das demandas. Mas se a gente trabalha com o letramento da liderança e muda esse olhar que vê a tarefa do cuidado como um obstáculo, podemos construir um ambiente acolhedor a todas as pessoas do time. É preciso desconstruir narrativas que não favorecem as figuras parentais, mostrando que parentalidade é autodesenvolvimento.
3. Quais habilidades do mundo materno podem ser úteis à carreira?
Luciana: Quando a gente se desenvolve como pessoa a gente também está se desenvolvendo enquanto profissional, não dá para desvincular essas duas coisas. Dizemos, portanto, que a parentalidade é potência e serve de impulso à carreira, porque tudo que aprendemos sendo mãe e pai podemos usar no trabalho para nos desenvolver profissionalmente. O LinkedIn, em 2021, listou as habilidades mais requisitadas no mercado. A primeira era resolver problemas, algo que a mãe e o pai fazem no seu dia a dia o tempo inteiro – quando surge uma gripe ou alguma outra questão, a gente tem sempre que ter o plano A, o plano B… Pensamento crítico é uma outra habilidade requisitada, que com a chegada dos filhos se torna um exercício diário. Inovação também é uma característica que nós, mães e pais que cuidamos, temos sempre presente, pois estamos a todo momento inovando. Ainda, criatividade, habilidade para lidar com a complexidade e comunicação são todas habilidades que mães e pais desenvolvem no seu dia a dia. A gente aprende, por exemplo, a ler os sinais do corpo, expressões, choros, e nos tornamos muito mais empáticos. Passamos também a nos entender melhor e aprendemos mais sobre os outros. Claro que tem jeito de desenvolver essas habilidades de outra forma, mas ser mãe e ser pai ajuda muito nesse desenvolvimento.
4. Que tipo de programas vocês realizam nas organizações?
Susana: Temos soluções de prateleira e soluções customizadas de acordo com a necessidade de cada cliente. A gente pode fazer um diagnóstico da empresa e desenhar a sua jornada da parentalidade, identificando as principais dores e dilemas das figuras parentais daquela organização. Fizemos isso em clientes como a Suzano, a Comgás e a Mondelēz, mas nem sempre é preciso fazer esse diagnóstico individualizado, porque alguns dos dilemas são semelhantes a todas as empresas. Muitos clientes procuram soluções prontas como o programa de re-onboarding, que acolhe mães e figuras parentais na volta da licença, ou o programa de trilhas com mães com carreira. Oferecemos também palestras, rodas de conversa e o letramento de lideranças, solução muito demandada, que permite fazer um balizamento para que todos os líderes entendam como acolher a parentalidade da melhor maneira e passem essa cultura para suas equipes, de modo a promover uma gestão mais empática e inclusiva. Ainda desenvolvemos um index da parentalidade, que é uma ferramenta que ajuda a traçar um diagnóstico quantitativo para que a empresa identifique o grau de maturidade que ela tem em relação à cultura parental.
5. O que as empresas ganham ao investir em mais líderes mulheres?
Luciana: Já existem dados que mostram como a equidade de gênero nas empresas traz resultados de negócio. Uma pesquisa da Mckinsey do relatório Delivering Through Diversity, de 2018, aponta que quando há mulheres e homens em cargos de liderança, distribuídos de forma equitativa, as organizações têm 21% mais chances de atingirem uma lucratividade acima da média. A pandemia nos mostrou como é importante pensar no bem-estar das pessoas, fazer o certo, acolher e ter um ambiente onde elas se sintam pertencentes, pois isso gera engajamento, gera produtividade e resultado para as corporações. Acolher as figuras parentais, reconhecer que elas têm demandas com os filhos – com os pais ou mesmo com um pet – é a vida real, faz as coisas fluírem melhor. Assim, promovemos uma sociedade mais feliz, mais saudável e mais sustentável, inclusive nos negócios.
6. Quais as percepções dos colaboradores ao terem suas demandas parentais reconhecidas no ambiente de trabalho?
Susana: Fazemos uma pesquisa de clima nas organizações e a percepção de bem-estar, a relação e o espaço de confiança são os benefícios que mais aparecem em destaque. Na Suzano, por exemplo, as pessoas comentaram sentir uma mudança após a implementação dos nossos programas, em relação a poderem ter mais equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Temos números também que mostram a redução do turnover (taxa de rotatividade dos colaboradores), indicando que mais mulheres se mantêm nas organizações que estabelecem programas de re-onboarding, ao permitir que voltem ao trabalho mais seguras e tranquilas.
7. Em que consiste o Pacto pela Parentalidade lançado em 2023?
Luciana: O pacto é um compromisso de pessoas e empresas que tem como objetivo identificar pontos fortes e oportunidades em relação à jornada de parentalidade nas organizações brasileiras. A gente começou fazendo uma lista de ações que as pessoas, independentemente do seu papel da sociedade, poderiam fazer para valorizar a parentalidade. E este ano a gente lançou o pacto focado nas empresas que querem fazer algo maior, então montamos um ecossistema de organizações interessadas, que assinaram o pacto e com isso recebem uma série de benefícios. Realizamos encontros bimestrais para falar sobre temas recorrentes que acontecem nas companhias acerca da parentalidade, e a gente entrega um guia de boas práticas do que fazer para acolher as figuras parentais. Também fornecemos uma ferramenta, que a Susana falou anteriormente, que é o índex da parentalidade, para analisar o nível de maturidade da empresa em relação ao tema.
8. Qual tem sido a maior dificuldade ao lidar com o universo corporativo?
Susana: Não é todo o mercado que está preparado para trabalhar a parentalidade como impulso de pessoas. Há resistência de organizações, dos líderes e da própria sociedade. É preciso avançar mais, mas a gente já vem atuando com mais de 80 empresas que têm sim reconhecido esse tema como importante. Temos projetos lindíssimos e potentes, por exemplo, com a Vivo, que incluem o acolhimento – da notícia da gestação até o retorno -, e a jornada do luto parental, que dá apoio emocional e psicológico aos colaboradores que perdem um filho ou uma filha. Agora, se formos pensar sobre os desafios uma vez que os programas foram implementados, o principal é ter as pessoas lá dentro replicando as ações.